Em homenagem a Fernando Gaspar.
Numa noite amena de Dezembro de 1966 franqueou a porta principal do restaurante Adega dos Passarinhos, sito à rua Luís de Sá Pessoa, n.º 17, na Alta de Lisboa, aliás, um dos meus poisos habituais ainda e sempre que me desloco à capital, um homem vestido de preto, um homem que trazia arrastada atrás de si uma sombra misteriosa, inteiramente cerzida de desolação e negrume.
Era um homem de gestos nervosos embora firmes, cabelos negros se bem que esbranquiçados e vestia uns olhos frios, que nem por isso deixavam de ser brilhantes. Paradoxalmente, era um homem acima de tudo discreto e em simultâneo ofuscante; um homem totalmente desconhecido de todos os outros comensais, um homem com rugas vincadas na testa e as unhas sujas que nem sachos, numas mãos que, a um observador atento, se adivinhavam calejadas por décadas e décadas de labutas dolorosas nos cantos mais ínvios da existência; um homem com umas mãos que, em suma e para os poucos de nós que o conhecíamos e o fitávamos de revés – era notório se esforçava por ocultar, como quem tem vergonha dos seus dedos, ou pavor de que os outros vissem a nu a crueldade que deles emanava.
Eu, cliente da casa fazia uns dez anos e à semelhança dos mais antigos criados de mesa do afamado estabelecimento (trata-se de uma tasca que data de 1874 e que albergou em outros tempos memoráveis tertúlias do grupo dos Vencidos da Vida), entre os quais se contavam o sempre afável senhor António Gil, o insofismável apesar da careca senhor Paulo Gomes e o nunca por demais incontornável senhor Teixeira, reconhecê-mo-lo, de imediato.
Nenhum, de nós, no entanto, deu mostras de se lembrar do homem vestido de preto que daquela maneira invadira, bruscamente, abruptamente (porque não dizê-lo), uma noite que até essa altura se anunciara perfeitamente legislada na graça de São Salazar e do bendito clima temperado, tranquila na benesse dos cinco escudos que acabavam de me pagar, enfim, uma noite de Domingo, morna e aprazível, como são e sempre foram desde que me recorde todas as noites de Domingo na Adega dos Passarinhos no mês de Dezembro (interrompo esta narrativa para vos clarificar alguns pontos que, sendo do meu interesse, também poderão um dia vir a ser do vosso: necessário é dizer-vos que o homem vestido de preto era persona non grata da casa, muito embora, pela parte que me toca, e estou cem por cento seguro, pela parte que toca desde os empregados, passando pelas sopeiras da cozinha até à gerência, ninguém dos que ali o conheciam tivesse dele razão de queixa, bem pelo contrário). O homem vestido de preto Sempre pagou as suas contas e resolveu discretamente os seus assuntos particulares, com o superavit de oferecer a todos generosas gorjetas e sem jamais perder a compostura, apesar de ser seu hábito beber em demasia. Contudo, era persona non grata, vá-se lá saber o motivo, e essa certeza bastava para que fingíssemos ignorá-lo desdenhosamente.
Para além disso, fazia pelo menos seis anos que ninguém lhe punha a vista em cima; tinha-se, uma bela noite de Agosto, a primeira vez que o vira, seis anos antes, assim como chegara, pura e simplesmente volatilizado.
Então, o homem vestido de preto, de sapatos brilhantes e lustroso cabelo preto, com a gabardina de couro e as calças de flanela pretas, centrou-se no lobby de entrada da Adega dos Passarinhos, as pernas afastadas e os pés bem fincados no chão, como um tipo que nada tem a perder, armado em duro, como um tipo que desafia o mundo inteiro sem a ousadia ou o descaramento de o dizer claramente, e aguardou, impávido, soberano, que alguém dele se ocupasse.
Coube ao bom do velho Teixeira fazer-lhe as honras da casa; num aceno que guardava para os melhores clientes o idoso Teixeira inquiriu ao homem vestido de preto se desejava jantar ou se vinha por outro motivo.
O homem vestido de preto, reparando melancólico que uma mosca acabara de falecer - como que por acaso - electrocutada no moderníssimo aparelhómetro anti-insectos que o dono da Adega recentemente mandara instalar, acenou afirmativamente e, sem dizer palavra, despiu a gabardina, confiou-a ao pressuroso do Teixeira e foi sentar-se naquela mesa do canto, a única mesa do canto de onde se podia ver tudo e onde quase ninguém se sentava, estranhava eu nesse momento, quanto mais não fosse por nunca me ter lembrado disso, apesar de me considerar sujeito com olho para os detalhes.
Ao contrário da primeira vez em que o vira, quando comera carapaus em molho de escabeche, o homem vestido de preto pediu desta feita uma dose de entremeada de porco e um jarro de vinho tinto da casa, escuro, da pipa, quase negro.
Então, este vosso servidor, naquele êxtase confiante que medeia entre o segundo copo de três de verde e os restantes, fitou-o de modo descarado, longamente, mas o homem vestido de preto não se desconcertou. Pareceu-me que tinha mais cabelos brancos do que da última vez e que os seus olhos eram ainda mais brilhantes, ainda mais alucinados, se é que possível descrever tamanha alucinação como a que lhe vi luzir nessa - felizmente - já distante, numa noite, subitamente tornada gélida, em Dezembro de 1966.
Recordo-me ainda de que no aparelho de imagens a preto e branco o Braga dava uma tareia à Académica (o que me convinha a mim e aos da casa, ou não fossem eles e este vosso humilde criado acérrimos simpatizantes do FC Porto). A vinte minutos do fim, parecia o campeonato decidido, quando o Jorge, por demais conhecido como o bêbado do bairro, me chamou discretamente à atenção, «Lúcio, topa ali» (coisa no Júlio extremamente rara), para a mesa do canto onde se encontrava o homem vestido de preto.
Até hoje estou convencido de que se não fosse esse reparo tímido do bêbado do Jorge nunca mais me teria lembrado do homem vestido de preto, do homem de olhos brilhantes vestido de preto que sozinho não via ninguém e ao mesmo tempo parecia vislumbrar o Universo inteiro.
Foi quando o Jorge me desviou a atenção do jogo no qual o meu clube tantas esperanças depositava que me apeteceu dar ao homem vestido de preto um bom par de estaladas.
Porém, não o fiz. Li nos seus olhos algo de indizível, perturbador, angustiante, algo de que até hoje não me esqueci e estou em crer que é esse o motivo pelo qual vinte anos depois senti a necessidade de confiar ao papel este aparentemente prosaico episódio.
Incomodado, virei-lhe as costas, na minha vã determinação de desfrutar de uma noite de domingo normal, apreciando apenas os dribles de Sousa para Zé Miguel, os cortes de carrinho de Frasco, bem como as sempre incompreendidas acções dos bandeirinhas, que todos nós os da Adega dos Passarinhos logo comentávamos, acalorados, imbuídos de uma estranha fraternidade, a qual, como é óbvio, logo e ainda hoje se esfumava mal o apito final do árbitro se fazia ouvir, para apenas regressar no dia seguinte, isto é se a roubalheira fosse de monte.
Em vão, tentei ignorá-lo, dizia-vos, mas pareceu-me impossível regressar ao meu tão singelo e contudo tão elaborado prazer dos domingos à noite do futebol e do verde na Adega dos Passarinhos.
Na altura em que os meus olhos de novo recaíram sobre ele, quase que tinha terminado o seu repasto. Apanhei-o no preciso momento em que o senhor Teixeira, sem qualquer desdém e, até, num modo que me pareceu a mim respeitoso em demasiada, não prestando ao jogo do Braga que tudo decidia a mínima pevide, com uma clarividência que me pareceu por demais estranha, lhe perguntava, atencioso: «O senhor vai desejar mais alguma coisa?..»
O restaurante inteiro pareceu-me parar no tempo, suspenso da resposta do homem vestido de preto. Pareceu-me inclusive que até os que o não conheciam sentiam no ar que algo de grave estava prestes a suceder, embora ninguém pudesse, em abono da verdade, prever exactamente o quê, ou como, ou quem.
Por graça ou acaso do destino, na televisão uma lesão de Frasco, centro-campista do Porto, interrompera o jogo e o silêncio do ruído ecoava ensurdecedor a partir do estádio até vir embater de chofre nas paredes engorduradas da sala de refeições da Adega dos Passarinhos, num estribilho cadenciado de tribo de futebol que me lembrou uma canção diabólica.
Então, o homem vestido de preto replicou, naquela voz grave e seca que todos sem excepção reconhecemos com temor, naquela voz desprovida de qualquer sentimento, naquela voz que era como se fosse a de um homem morto e vivo apenas por segunda ou terceira ou sexta prestação interposta, num sorriso cúmplice que só o Teixeira pareceu compreender: «Hoje, Senhor Teixeira, apenas desejo beber um whisky e prestar atenção ao vosso jogo. Estou de folga, como de costume, sempre que vos venho visitar.»
E, como de costume, o Braga acabou por ser goleado pela Académica. Como de costume, o Porto acabou por perder o campeonato. E, como de costume, as nossas vidas acabaram por perder qualquer sentido nesse momento, sem que eu ou mais ninguém tivesse dado fé de que a história se repetia sempre quando o homem vestido de preto aparecia em público. Mesmo quando estava de folga.
Provavelmente, era por essa razão que o considerávamos persona non grata, era por esse motivo que o odiávamos como não odiávamos a mais ninguém. O homem vestido de preto tinha vindo visitar-nos.
Foto via Promenade du Feu.