31.1.09
Pensamento da noite
Sábado, Palmela city
Lx, 31 de Janeiro
Já se escrevia...
Um texto à maneira, só para mandar cozer em banho tépido estes senhores e respectivas, lindas, vistosas, políticas e mentirosas e puta que os pariu a eles e a elas, todos e mais os acordos desortográficos ou estupidamente correctos e as crises económicas e financeiras, não era bom?
Era pois. Cambada de pessoas inteligentes, todos têm a solução à distância dum clique, até dá dó de tão pertinentes e espertos e intelectualmente avançados que são, mas enfim, siga a poesia, siga a escrita e não nos preocupemos mais com detalhes que nada adiantam à justa avaliação do ofício a que fazemos referência.
Foto via Shoot to kill.
Foda-se...
29.1.09
Ariel - Parte VII (revisão)
Ariel - Parte VI (revisão)
Acordei estremunhado, com um bafo de largar fogo, as unhas cheias de terra, a cara toda porca, com uma mistela irreconhecível colada ao cabelo, era lama, sim, era lama, os olhos vermelho fogo no espelho retrovisor e uma dor lancinante, terrível, dançando-me no cérebro, do hemisfério esquerdo para o outro, e de regresso e outra vez para lá, sentado, ao menos, a tentar ver para além da névoa que se instalara, já era dia, era dia e não estava nada bem, nada bem. Então arrotei. Liguei a luz. Não estava no meu carro, estava na porcaria do R7 do Hel. Tinha tido um igual, anos antes, um chaço velho, como todos os chaços velhos, estofos de flanela queimados por pontas de cigarros, conta quilómetros já na segunda ou terceira volta. Que fazia eu ali? Lentamente, fui reconfigurado o cérebro e os pensamentos, que dor horrível. Sim, já me recordava de tudo. Lentamente, é certo, mas já me recordava de tudo, até porque, como de costume, o que havia para recordar era só asneira, asneira atrás de asneira e mais asneiras. Levei a mão ao bolso do casaco e encontrei um maço de cigarros sem filtro, Gitannes, eu comprara aquela porra daquele tabaco no 23, tão amarrotado que poucos sobravam fumestíveis. Levei um aos lábios, só que não encontrava lume e, impaciente, reflecti, enquanto tossicava, que estava todo fodido, tinha os pulmões lixados, tinha frio no corpo e a minha cabeça era uma chispalhada alcoólica sem fim à vista e a continuar a fumar era para morrer; por isso, poisei o cigarro no lugar do morto ao meu lado, espreguicei-me, com uma indolência forçada e deu-me vontade de foder, mas não havia gaja alguma por perto, era quase dia, estava um frio enregelante, um nevoeiro dos diabos, essa é que era essa, recordava todo o tempo uma mulher ruiva, cabelo de fogo, seios pequenos mas firmes e tentadores, pernas de bailarina, olhos verdes de tentação lânguida, vozinha atrevida, como quem quer festa e julga que está a falar com lategos e os lategos a embebedá-la sem ela dar fé. Linda, insinuante, miúda, otária. Ao pensar em bebida deu-me náuseas e num vómito aliviei-me num só jorro para o chão do lugar do morto. Foi aí que me comecei a aperceber melhor das minhas redondezas.
O R7 cheirava a veneno de ratos, que porcaria de carro, ou seria do vómito, abri a janela, o ar frio e cortante da madrugada fez-me fungar, espirrei, meti a cabeça toda para fora da janela, numa agonia suprema, mas que até acabava por ser um alívio. Reconfigurei muito docemente o cérebro e sai do carro para ir cair de borco a rasar a raiz duma árvore. Deixei-me estar deitado, molhado até aos ossos. Que porcaria de situação. Onde estava? Deixei-me estar, no chão, a snifar o solo, deixei-me estar até tocarem mais campainhas de alarme, ainda indistintas, mas campainhas de alarme, para logo me erguer, cheio de frio, cheio de medo e me apoiar numa árvore ao lado a avaliar das minhas redondezas, da minha circunstância, a reflectir sobre a minha vida. Bem, era quase de madrugada, tinha coisas para fazer, montes de coisas para fazer, contas para pagar, não sabia quanto dinheiro gastara na véspera (em pânico levei a mão ao bolso das calças só para me certificar de que tinha guita, encontrei 300 euros espalhados nos vários bolsos, um livro de cheques e uma conta por pagar do 23, os porcos do 23). Um pouco mais aliviado, pus-me a observar-me mentalmente, a avaliar-me. Ali estava o senhor, o senhor engenheiro Lúcio Ferro. Estava todo porco, filhinho do papá, engenheiro agrónomo por especial favor, filhinho duma das maiores fortunas do país, morador num dos bairros mais chiques de Lisboa, cliente habitual da esplanada da Mexicana, agente secreto só para o próprio nos seus momentos de auto erotismo, a cheirar mal e a destilar ressaca, celibatário e putanheiro endinheirado, por todos os poros, ao lado dum R7 a cair aos pedaços, ao lado do carro do Hel, o meu único amigo, o único que nunca se tentara servir, nem de mim, nem do dinheiro do meu pai, nem dos contactos fáceis da minha vida ainda mais fácil e obscena, no meio do mato, encostado a um pinheiro qualquer, na borda dum R7 ferrugento, a vomitar a bílis, o Hel era um gajo que me respeitava. Acabei de vomitar, limpei a boca ao casaco, caí outra vez ao chão e reconfigurei. Reconfigurei tudo. Conhecera-o nos bancos da Faculdade de Agronomia, céus como eu demorara a finalmente concluir a licenciatura, e logo entre nós se gerara uma estranha cumplicidade, até porque mais diferente do que eu e do Hel não havia. Tinha quase idade para ser seu pai, ele era um aluno aplicado, cumpridor, tinha cabeça e nunca perdia a calma. É certo que gostava de miúdas como eu, mas não as levava para a cama por dá cá esta palha, apreciava músicos que tivessem algo para dizer, para cantar, coisa que eu nunca percebera, apreciava livros de mistério, a gramática da linguagem e também acreditava, parvoíce, na lealdade e na boa vontade entre os seres humanos.
Se calhar fora por causa dos livros de mistério, eu também gostava disso.
Talvez um pouco também pela frieza por vezes cínica da sua atitude, ou por ser um pouco a personificação daquilo que eu próprio poderia ter sido mas que nunca fora. Na volta era só por causa da gramática da linguagem. Todos os engenheiros agrónomos que conheço gostam de gramática, tem a ver com a linguagem das plantas a crescer, do alinhamento das sementeiras e das hortas em flor. Por outro lado, ele não era egoísta e não se importava se os outros o maldiziam por se dar com pessoas como eu. Fosse como fosse, tratava-se dum tipo honesto. Sorri, abri os olhos e olhei em volta. Fazia névoa. Cerrada. Pigarreei e escarrei satisfeito, estava cerrado o ar, cortei com a mão a névoa, não havia problemas, mais tarde ou mais cedo alguém tinha de morrer e aquela não era o dia em que eu morreria, na cama ou acompanhado, estava acordado, maldisposto, imundo, sujo, mas vivo.
Devagar, ergui-me e dei a volta ao R7, abri a porta do lugar do morto, saquei do tapete vomitado e atirei-o fora, a ver se via mais coisas minhas a esvoaçar, mas não, os meus outros papéis não estavam ali, é verdade, recordei com um nó no estômago, tinha-os deixado no meu R6. O meu R6 novinho em folha que o Hel levara e que se sumira no portão mais à frente. Trocara de carros com o Hel, pois era, isso era algo que se me afigurava complexo, estranho e sentei-me a matutar no assunto.
Então, finalmente, sem chegar a conclusão nenhuma e demasiado maldisposto para continuar a tentar, descobri um isqueiro e acendi um cigarro. O fumo, a névoa, os pinheiros, a noite ainda, a madrugada a chegar, a sensação de que tinha algo de importante a fazer, de que tinha perdido alguma coisa importante, de que havia um perigo qualquer a rondar-me, apesar do silêncio da noite, atrofiavam-me o pensamento e foi assim que reconfigurei. Reconfigurei, se calhar precisava mesmo de o fazer e então reconfigurei outra vez.
Ontem, não, hoje, hoje ao fim do dia. Noite de 20 de Dezembro de 2007. És tu Hel? ‘Bora beber um copo, mate? No clube 23, Lúcio? Yup, Hel. Boa, fixe, no 23 às 10 da noite, sim? Sim. No 23 já eu estava ao ligar-lhe. Com uma loira. Reconfigurei. Uma boazona. Puta até aos olhos. Gaja difícil, a vaca. Nem depois de dois copos de champanhe. Nisto, o Hel aparecera. Quatro ou cinco copos depois, reconfigurei ao acender mais um paivante, como vai a vida no ministério, senhor engenheiro? Óptima e tu, no departamento, quando é que te fazem professor doutor a tempo inteiro? Uma risada, mais uma passa, um esgar no rosto do Hel, conheço-o bem, mais um sorriso meu, uma outra passa no presente, e então a ruiva.
Pois, a ruiva. Muito gira a gaja. Pestanuda. Comprida. Alta, quero dizer. Dão-me lume? inquiriu. E O Hel que não fuma. Não tenho, disse ele. Eu, quieto, a loira a sugar-me a tesão toda, sentada no balcão do 23 de minissaia e meias pretas onde a deixara, fodida da vida,quando vira o Hel entrar.
Não faz mal, disse ela, magra mas curvilínea, botas vermelhas de salto alto, resolvi deixar de fumar, cuspiu na sua voz atrevida e, sem mais, virou-se para o Hel, toda fêmea, no pique da música do 23 e meteu-lhe a boca no ouvido.
Mau, percebera o que se passava e deitara abaixo a minha aguardente velha dum só trago. Então ela, outra vez à carga, o decote na cara do meu amigo, não te importas que me sente? Eu fodido e a loira, a tal da Telma, fria, malhas pretas, saia amarela, boa como o milho mas nem para criada chegava ao pé da ruiva, ciumenta, a deixar-se ficar, a conspirar com o bartender o Carlos, um monstro de dois metros de altura, que não me parecia mau tipo de todo, mas enfim, nunca se sabe na noite. Eles pareciam dois macaquitos a armar alguma, só que não ligara, de fascinado que estava com o filme que se desenrolava à minha frente.
Entretanto, o Hel, com a ruiva a insistir, olhara para mim, na dúvida. Na verdade, não era preciso duvidar, ela sentara-se na mesma, no meio dos dois, roçando-me a coxa ao fazer-lhe uma festa no resto e ao dizer-lhe que ele era um rapaz bonito, mesmo a provocar, rapariga nova nas lides do ataque, tinha sorte em dar comigo e com ele, visto que o Hel de aventureiras não sabia de nada e eu de tipas destas sabia até demais.
Reconfigurei. A ida para Cascais. A quinta da família do Hel. O quarto do Hel. Mais umas cervejas que comprara na ida, conduzia o carro do Hel e ele seguia no meu, o R6. Trocáramos de carro na partida de Lisboa e ele levara a ruiva com ele. Liguei o rádio do R7. «O primeiro-ministro disse hoje que o Governo nega qualquer envolvimento no tráfico de armas para o Médio-Oriente». Desliguei o rádio. Tráfico de armas, era comigo. Sabia que era comigo mas naquele momento não queria saber disso. Reconfigurei. O asfalto, a noite, a bebida, a rolar cada vez mais rápido, e o Hel seguro de mim, raios, o Hel confiava em mim. Mas eu também confiava nele. Eu. No carro de trás, o Hel no espelho retrovisor do carro da frente – o meu carro -, a auto-estrada para Cascais e a ruiva lá à frente a fazer um strip para o espelho retrovisor. Teria mesmo feitom isso ou era só a minha imaginação? O Hel a passar-se, o meu R6 a derrapar e ela totalmente marada, eu com os olhos, eu todo olhos, um carro atrás de nós, um Volkswagen e eu tentado transmitir-lhe a ela (será que percebera?) a calma necessária para o bacanal que inexoravelmente iríamos fazer.
Reconfigurei. A casa do Hel. O Hel no quarto com a ruiva. Eu cá fora a fumar um cigarro. As chaves do meu carro nas mãos do Hel. Uma troca de chaves, como se fosse de sangue, eu a poisar as chaves do Hel na secretária. Gemidos vindos do quarto do Hel. Eu a fumar um cigarro lá fora, demasiado cansado. As luzes dum carro grande e feio. Um Volkswagen, um Miura.
A loira à minha frente a desligar o Volkswagen. Um sorriso tão mentiroso quanto sexy, eu a encaminhar a loira para um dos anexos da quinta da família do Hel. Deitá-la e não sentir vontade de foder. Ela a perguntar: queres que te bata uma punheta? Eu que não, que não queria.
Fugir. Entregar a Telma à sua sorte, que se desinmerdasse. Que tinha eu a ver com isso? Fugir.
Entrar no quarto do Hel à má fila. Olá, estão bons? Eles a rirem, completamente vestidos e o que é pior os dois de pé, como amigos, e o Hel a dizer que iam dar uma volta.
A televisão ligada. Minto, era um plasma, a televisão ligada e o computador também. A cair. A ruiva linda a suster-me e depois o fim, a cama, o sono.
No relógio do R7 eram 20 para as cinco. Acendi mais outro cigarro. Estava muito frio e não havia maneira da neblina levantar. Sim. Liguei outra vez o rádio, por descargo de consciência. Ironia das ironias. Tocava «i can see clearly now». Foda-se, não podia ver nada «clearly». Estava frio. 20 para as cinco, certo? Bom, tinha mais o que fazer. Pois, onde estavam os documentos do ministério? Caralho, estavam no R6 que o porco do Hel levara. Escorreguei, aninhando-me no banco do R7. Um grilo dava os bons dias à natureza. Já era quase dia. Havia um cheiro a vómito dentro do carro que começava a irritar-me. Que fazia eu ali? Merda de carro e merda de cheiro. «I can see clearly now the night is gone, it's gonna be a bright, bright sunshiny day» ou pelo menos assim rezava a porra do rádio.
Reconfigurei.
A ruiva e o Hel, que par; faziam um par bonito, mas porque raio os seguira? Porque raio trocara de carro com o Hel? Porque diabo estava parado no meio do campo perto duma vedação alta ainda à noite e sem visibilidade quase nenhuma? Pois. Reconfigurei. O Hel. A ruiva. A loira. Dois carros atrás um do outro e outro ainda atrás destes e a quinta do Hel. E agora ali, no meio do mato?Abri o porta-luvas. Encontrei uma garrafa de whisky de meio litro, das que não se vendem em Portugal, Isle of Jura, provavelmente era a mesma que oferecera ao Hel quando regressara da minha última visita à Escócia. Bendito Hel, não a bebera. Desarrolhei, dei um longo gole e senti uma explosão no estômago. Força, poder, genica.
Reanimado, resolvi que tinha de fazer alguma coisa e, devagarinho, muito devagar, abandonei o R7 e trepei a um pinheiro que dava para a vedação onde o R7 estava parado. Ao subir, ouvi um grito feminino que quase me fez cair, mas não me desbanquei; estava no topo duma árvore e conseguia vê-la. Sim. A ruiva era puxada selvaticamente por um dos braços. Era ela sim, já me recordava. Reconfigurei. Ariel, dizia chamar-se Ariel, era isso mesmo.
Mar de rosas
27.1.09
Ariel - Parte V (revisão)
A ruiva, sem aviso, espetou-me a língua quente no ouvido e uma forte reacção por trás do fecho das calças não se fez esperar, uma saudação à língua dela no meu ouvido, movendo-se em lentos círculos. No entanto, e por muito empenhado que estivesse em continuar no meu lugar, com o corpo quente dela a roçar-se no meu e na companhia da aguardente do Lúcio, saltei da cadeira, «vou à casa de banho, tenho de ir à casa de banho!», apoiei-me na mesa com uma das mãos, apoiei o corpo, ainda num equilíbrio hesitante, e, incerto de para onde me devia dirigir, «onde raio é a casa de banho!?», pensei, em desespero face à perspectiva de me humilhar no 23, e, numa passada larga, agarrado ao estômago, lá a encontrei, por trás de uma porta de madeira, pintada de branco, mas já amarelada pelo tempo e pelo tabaco, uma casa de banho suja, porca, a tresandar a mijo e a vómito. Eu seria apenas mais um. Sem cerimónias, ajoelhei-me, prendi as mãos ao mármore e enfiei a cabeça na retrete. Levantei-me lentamente, já mais lúcido, se bem que ainda bêbedo, naquele estado de semi-lucidez ébria (ou semi-loucura sóbria, conforme se seja do tipo meio copo vazio, meio copo cheio), limpei a boca às costas da mão, avancei para o lavatório, abri a torneira, que chiou e se engasgou com o ar, e, com as mãos em forma do concha, levei água à cara, outra vez, e ainda mais outra, esfreguei os olhos e mirei-me ao espelho. Já me sentia bem melhor. «Não me devia meter nestas merdas», pensei, enquanto observava o espelho manchado e partido num dos cantos. «Com um avô ceifado por cirrose e um pai com problemas de úlceras, talvez fosse boa ideia dar um descanso ao meu estômago amargurado.» A propósito, estariam o Lúcio e a ruiva à minha espera, na mesa do bar? O mais provável é que se tivesse escapulido com a miúda. «Nããã», afastei esse pensamento da cabeça, «ele é meu amigo, não me abandonaria à minha sorte num bar mau reputado e num ambiente hostil como este». Ri-me dos meus próprios pensamentos… ambiente hostil… E a ruiva? Teria engraçado com o Lúcio? Não sei porquê, mas, por algum motivo, tinha ficado com a sensação de que fora à bola comigo, pelo menos, até fraquejar e correr como um menino para a casa de banho, merda de estômago doente e fraco. Que miúda tão bonita, bonita de mais para levar a vida que levava. Tinha um magnetismo que não se encontrava por aí aos pontapés. Aos poucos, monopolizara o espaço e o assunto, e isso não se devera somente ao par de longas pernas esculturais, busto convidativo, cabelo de fogo e lábios vermelhos e insinuantes. Sim, nada de ingenuidades românticas, eram, de facto, atributos que só favoreciam esse magnetismo; porém, havia um je ne sais quoi, algo nos seus olhos verdes que absorvera toda a minha atenção, esgotando-me a mente. A porta batia ruidosamente e parecia querer ceder nas dobradiças. Acordei, abanei a cabeça, voltando a agarrar-me à realidade. Já me sentia melhor. «Ó da casa, ainda demoras muito?» Ouvia os urros de um tipo, pelos vistos em pior estado do que eu. Abri a porta e, sem me dar tempo de sair, abalroou-me, quase tropeçando, e colocou-se na mesma posição e no local exacto que eu ocupara não fazia ainda dez minutos. Saí e fechei a porta, deixando o homem gozar a sua privacidade e entregue aos seus pensamentos, fossem eles quais fossem. Num ápice, e de olhos bem arregalados, corri as mesas em busca da ruiva e do Lúcio. Nada. Nem sinal dos dois. «Não é que o sacana me deixou mesmo sozinho?, aqui, a ver navios.» Enquanto perscrutava as mesas, dei com o tal homem que ocupava a mesa do canto, envolto em penumbra, o tal com quem a velha catatua fora ter depois de tentar a sua sorte comigo. Desta vez, estava acompanhado por outra mulher, bem mais apetecível e agradável aos sentidos, uma loira, a loira. Estava com o rosto quase colado ao do homem e conversavam em sussurros exaltados, cheios de secretismo e suspeitas. Ela recostou-se na cadeira, cruzou a perna coberta pelas meias negras, beberricou e levantou-se. Ia em direcção à saída, aparentemente insatisfeita com alguma coisa e os seus olhos escondiam uma estranha desilusão. Algo me disse que não seria boa ideia ser apanhado a observar estes dois e, dando um passo atrás, esperei discretamente, numa parte mal iluminada do bar, que a loira desfilasse por mim. Saí para a luz e tirei o telemóvel do bolso. Tinha de encontrar o Lúcio. «O seu saldo não lhe permite efectuar esta chamada, bla, bla, bla». É tramado não ter dinheiro. E agora? «Ó jovem! Jovem!» Fui acordado pelo bartender, que acenava e chamava por alguém, um pretenso jovem, que, supostamente, se encontrava na mesma direcção que eu. Era a segunda vez que me acordavam naquele bar. Olhei em volta e, com ar inquisitivo, virei um dedo para mim próprio. «Sim, sim, você! Venha cá!» Curioso por saber o que quereria o tipo, dirigi-me ao balcão. «Teria o Lúcio bazado sem pagar?» Ocorreu-me, assim, inesperado e alheio à minha vontade, este pensamento, reflexo, com certeza, da sova que levaria do segurança, consequência de quase não ter um tusto no bolso para pagar champanhe e aguardente velha. Chegado ao balcão, com ar hesitante, o sujeito (ele, também, um gorila gigante, que mais facilmente passaria por segurança do que por bartender) leu-me os pensamentos, sorriu e disse que não me preocupasse, «eu cá me entendo com o doutor, não se preocupe. Tome.» De debaixo do balcão, sacou as chaves do meu carro e entregou-mas, «o doutor deu-mas e disse-me para lhe dizer que está à sua espera em frente ao governo civil, na rua de cima». Balbuciando um agradecimento, ao qual o fulano replicou com um monocórdico «de nada», rodei nos calcanhares e dirigi-me para a saída. De repente, o meu telemóvel tocou, estridente, mas não o suficiente para se sobrepor à música. Saí, passei pelo segurança sem olhar, vesti o casaco e olhei para o visor luminoso do aparelho, que acusava o nome do Lúcio. Decidi pregar uma partida ao meu caro amigo:
- ‘Tou?
- Onde estás, meu?
- Isso digo eu, sacana, fugiste com o meu amor, fugiste com o amor da minha vida! – gritei, cheio de uma falsa raiva, gozando o prato enquanto sentia um silêncio pesado e desconfortável instalar-se no outro lado da linha. Tapei o bocal, ri em silêncio (reparei que o segurança também sorria, à porta, percebendo o meu esquema) e, em esforço, continuei: – ‘Tou, Lúcio, tás aí? Meu, vem buscar-me, ‘tou à porta do 23. Onde ‘tá o carro?
- ‘Tá onde o deixaste, meu melro, onde querias que estivesse?
- Ok... Er... Já vou, melhor ainda, anda cá ter, vem buscar-me!
- Não posso, meu caro, estou ocupado. – respondeu. ‘Tá quieta, miúda, não toques nisso, entra para dentro do carro! – ouviu-o dizer. Parecia que a ruiva ainda estava com ele. - Hel, meu, vem ter aqui ao governo civil e mexe-te!
- É mesmo ao lado do São Car…
- Sim, mesmo ao lado do São Carlos, mexe-te, que tenho um doce para ti!
- Foda-se, Lúcio, tu e as tuas surpresas maradas, estou a caminho. - Desliguei e sorri ante a surpresa do Lúcio, que já começava a adivinhar. Que se lixasse o dia seguinte e a Teresa! Só era jovem uma vez e esta noite apresentava uma oportunidade única.
Comecei a caminhar na direcção oposta ao governo civil, tinha de ir buscar o R7, tinha de ir buscar a chocolateira. Chegado ao local, enfiei-me no carro, saí do estacionamento e com o pé pesado no acelerador, galguei os metros que me separavam do governo civil. Quase a chegar, evitei mesmo à justa um enorme buraco, um dos muitos que decoram a baixa, e quase arranquei o espelho a um Volkswagen Miura, estacionado uns bons metros atrás do R6 do Lúcio. Travei a fundo ao lado do R6, uma paragem perfeita enfeitada por chiar de pneus e temperada com o subtil aroma a borracha queimada, abri o vidro, assomei à janela e espreitei para dentro do carro, «Então, Lúcio, esse doce é para hoje ou para amanhã?», perguntei num tom meio carregado de ironia, meio carregado de cumplicidade. Sem responder, levou a mão ao bolso do casaco e devolveu-me a carteira, ao mesmo tempo lançando-me aquele olhar cúmplice, um olhar que desenvolveramos entre nós ao longo de muitos anos de convivência, a plantar batatas e a colher couves, um olhar que não queria dizer nada, mas que, ao mesmo tempo, queria dizer tanta coisa, permitindo-me a janela de tempo necessária para mergulhar nos olhos verdes da ruiva uma vez mais. Ela devolveu o olhar e fixou nos meus olhos os dela, numa luta para ver quem os desviava primeiro.
- Hel! – Lúcio chamou-me e perdi a guerra de olhares. – ‘Bora, meu? – Mirei o Lúcio de alto a baixo e constatei que, apesar de sempre beber com profissionalismo, o meu amigo estava com os copos. Ainda por cima, já instalara a ruiva nos estofos em pele do seu R6 novinho em folha topo de gama.
- Lúcio, achas que estás em condições de conduzir? – perguntei, expressando uma preocupação sincera pelo meu amigo.
- Tenho de estar, não é? O carro não se conduz sozinho até Cascais! – respondeu, sarcástico.
- Claro, meu, claro, estou só a dizer que não devias arriscar, visto que estás com o teu carrinho novo e quê… se bates, é um desastre, o teu pai vai foder-te o juízo, e que és irresponsável, e que és um bêbedo. Porque não me deixas levar o teu carro? Levas o meu, também não se perde muito se lhe acontecer alguma coisa.
Percebi que a dúvida se instalara no espírito do meu amigo. Enquanto reflectia nas minhas palavras, voltei a mirar a ruiva, mas ela parecia absorta no seu próprio mundo.
- Ok, Hel, podes experimentar o meu brinquedo novo, mas cuidado, puto, nem um risco, tu tem cuidado! – avisou, paternalista, como se tivesse tirado a carta há dois dias.
- Lúcio, sou eu, estás a falar comigo. – comprimiu os lábios, algo que fazia quando concedia a vitória numa discussão, ainda duvidoso da sua derrota e ciente de que saíra a perder da situação. A ruiva não se mexeu para mudar de carro. «Estou mesmo atrás de ti, lead the way», disse-me. Trocámos as chaves num aperto de mão e metemo-nos nos carros. Eu no R6, o belo do R6, a cheirar a novo, travões ABS, direcção assistida, ar condicionado, estofos em pele e uma mulher deslumbrante sentada neles. O Lúcio entrou no meu carro e deu à chave. Por meu lado, podia jurar que o seu rosto espelhava uma certa nostalgia, talvez por voltar a conduzir um carro tão velho. Afinal, antes do R6, nos tempos da faculdade, conduzia uma banheira não muito diferente da minha. Virou-se para mim, «Como é, vamos?»
Palavras, tudo palavras
A propósito do escândalo em que este tipo se vê envolvido reparo como os pequenos detalhes nas palavras dão mais ou menos importância ao assunto. Assim, num canal de televisão o sujeito que terá feito umas falcatruas com a eventual cumplicidade de Sócrates é referido como «o tio materno do primeiro-ministro» e eu penso, ena, porra, um tio materno é uma coisa importante, devem ser muito próximos, tio e sobrinho... No entanto, rapidamente me desengano ao passar a outro canal, que se refere ao indivíduo como o «meio-irmão da mãe de Sócrates». Não deixa de ser tio, mas já não é a mesma coisa, pois não? Afinal, se nem um meio-irmão é a mesma coisa do que um irmão, o que dizer de um meio-tio?.. Podia dar milhares de exemplos similares mas não vale a pena, este caso é sintomático: estas diferenças de ênfase parecem insignificantes (para a maioria do público que não tem o treino para as topar e descodificar as implicações) mas não o são, quer sejam intencionais ou não cumprem um objectivo político, i.e., conferir ou retirar importância a algo e demonstram mais uma vez como na política e sobretudo no seu tratamento pelos média tudo são palavras, e toda a nossa percepção é moldada pelas palavras com que nos alimentam. Tenham um bom dia.
26.1.09
Fodo-a ou não?
Teve azar, O Je estava de pé (bêbado que nem um cacho, pois claro, mas nem por isso menos standing ou menos strong ou horny, coisas de quem bebe profissionalmente) e joguei-lhe a mão ao laço do vestido, silencioso, à má fila, ao vê-la de rabo no ar a tirar loiça da máquina.
Já a conheço há uns bons 20 anos, a cabra só não foi minha ama de leite porque não calhou. Tem umas belas mamas, dentes podres, sim, mas umas belas mamas.
A questão é a seguinte, desesperado e entornado como estou, fodo-a ou não?..
23.1.09
22.1.09
Ariel - Parte IV (revisão)
Deixei-me escorregar do banco, sorri para o Carlos do balcão, pobre Carlos, também ele prisioneiro do Pedro, e mecanicamente comecei a dirigir-me para a saída do 23. Sabia que o Pedro estava outra vez sentado com a puta velha, fazendo conversa, a controlar, ignorando-me, desprezando-me.
Ele fora o meu primeiro gajo, com dezasseis anos, desflorara-me, mas não julgava arrepender-me, não antes de ele se ter feito mau e guardara-me para ele em tudo, apesar de todos os outros da secundária que me cobiçavam e me botavam convites porcos.
Eu era dele, pertencia ao Pedro. Enfiara-me com ele na casa-de-banho do liceu e foi aí que me iniciara na arte do broche. Sim, arte do broche, porque é preciso arte e engenho, não é só abocanhá-lo. Ele conduzira-me desde esse primeiro dia e desde essa altura nunca mais o largara. Fizera tudo o que o meu chulo queria de mim, até fingir que gostava de bêbados feios que me pagavam cocktails de champanhe, como agora, era pura paixão, obsessão genuína, luxúria; não era amor.
O amor não nos obriga a submetermo-nos a humilhações diárias com outros canalhas para conseguirmos dinheiro e esquemas para o nosso canalha preferido.
Não, era algo de mais doentio e decadente. Era o meu vício! Se ele me ajudara a subir horizontalmente na vida devido aos contactos famintos de podridão do Ministério, eu não o ajudara menos quando me fingira de senhora séria, distinta e culta ao seu lado naqueles eventos sociais onde ele fazia um figurão bem falante e conhecido de todas as personagens importantes.
O Pedro conhecia os podres de muita gente. Poucos, se comparados aos dele, somente eu conhecia os podres dele verdadeiros: charutos cubanos, vodka e caviar, putas ordinárias, ligações a árabes suspeitos, negócios mentirosos, homossexualidades travessas. E as armas, e as armas e a droga, sim, também isso. Vai atrás deles, vai! Saí do 23 a tempo de os ver a dobrar a esquina, aquela mulher, a inimiga, dissera o Pedro, caminhava escorreita, ele, gajo dos cocktails de champanhe, nem por isso, aos esses, estava bêbado, topara-o logo. Não passava dum bêbado, porque é que o Pedro me ordenara segui-los? Não lhe bastava saciar-se com os relatos das conversas do meu ministro? Não, ao Pedro nada disso bastava.
Entrei no meu carro e segui-os devagar e à distância, dando tempo para que se afastassem de mim, enquanto subiam a rua, de mãos dadas (de mãos dadas?!?) até que pararam, junto a um carro novo, um bólide novo em folha, em frente ao teatro de São Carlos.
Que faziam? Não sabia, nem queria saber, as ordens do Pedro eram muito simples, tinha de os seguir e de reportar o que vira, para onde se dirigiam, o que faziam não interessava. Chovia. Tinha saudades do meu ministro, o meu doce ministro era meigo, casado mas meigo, não tinha nada a ver com o Pedro, nem com aquele homem bêbado armado em esperto e nem com a rapariga mentirosa, o Pedro dissera-me para tomar atenção àquela desgraçada, que se abraçava a ele e lhe fugia, ele até que era bonito, quando um carro disparado passou pelo meu e se foi imobilizar junto deles.
Ariel - Parte III (revisão)
Gostas de dinheiro, linda? Gosto pois, doce, vais oferecer-me algum, é, meu lindo?.. Sou capaz amor, sou capaz…
A voz dela queimava e, no entanto, capacidades à parte, era-me óbvio que o Hel não estava capaz de beber muito mais, o que até talvez não fosse mau de todo, tudo uma questão de ver como o miúdo recuperava, se bem que a minha sede, essa, continuava a mesma, se calhar só tinha piorado com a aparição daquela putazinha ruiva que não fazia outra coisa do que roçar-se nele, sem me ligar pevide, a cabra, mas agora tinha-a só para mim, o Hel estava fora do quadro, provavelmente a vomitar pomares na casa de banho pela boca fora, ou na volta só a urinar, era o mais certo, se bem que com ele nunca se sabia ao certo em que matutava ou o que estava a fazer, era tramado ser seu amigo, que mau que era o Hel!
Fui levando a tipa para o meu carro, como é que chamas te mesmo? Tentando caminhar em uníssono com ela, era uma rapariga nova, parecia deslocada no ambiente, demasiado calorosa para o ofício, parecia, sim parecia mesmo, na volta era uma principiante, sim, era isso mesmo, era uma puta jovem e emocional e era mesmo o que convinha to rock the boat daquela noite de fim de Dezembro, por assim dizer, só porque sim e também já agora porque não, estava ao pé do meu carro, o R6 de marca, artilhado, o 23 ficara para trás e a única coisa que me prendia ali, para lá da amizade com que deixara um colega atrás era aquela bacana, era a ideia de a levar até casa dele e de fazermos juntos uma menage à trois.
Como a noite evoluíra rapidamente desde que saíra do ministério, ao fim daquela tarde e após o sermão do meu chefe. Primeiro a loira. Depois o Hel ao telefone. Eram quase nove da noite quando entrara no 23, a música enchia todos os recantos vazios de pessoas, na altura ainda era cedo, e achara ser essa a altura acertada para fazer alguma coisa para esquecer todos os segredos hipócritas que me enojavam, eventualmente até, mostrar ao Hel que havia mais mulheres no mundo do que a sua banal namoradita sem futuro e esta fulana ruiva que agora caminhava ao meu lado, muito depois disso, que vontade de caminhar em uníssono com ela, Ariel, dizia chamar-se, estudante de «Tradução em Letras», a fazer-se séria a rir-se, embora não embrulhasse essa história de ela ser estudante que me parecia demasiado rebuscada, acabava até por nem ser mal empregue para o objectivo que agora ia lentamente delineando, um belo dum bacanal, uma novo campo a desbravar com o meu amigo, só esperava era que lhe tivessem dado o meu recado e que não se tivesse afogado na sanita, o pobre.
Como é que a Ariel pudera pensar que o Hel seria uma vítima adequada à sua incursão no mundo da noite é que eu não percebia, quanto mais não fosse porque a mim é que ela me despertava uma enorme cobiça voluptuosa e já o Hel, convenhamos, bastava olhar para as suas roupas para compreender que era um teso, jovem e bem-apessoado, não digo que não, mas um teso, sem eira nem beira, por muito prometedor que aparentasse ser.
Chegámos ao meu R6 e Ariel comentou, aparentemente espantada: ena, tens um carro muito bom, isto deve ter-te custado uma pipa de massa! Agradeci, lisonjeado, abri-lhe a porta do lugar do morto, sentou-se, pôs-se a brincar com o rádio e eu encaminhei-me para a bagageira, pesquei o telemóvel por trás do tapete, liguei-o e disquei o número do Hel. Onde estás meu? Isso digo eu sacana, fugiste com o meu amor, fugiste com o amor da minha vida! Mau, o Hel estava mais bêbado do que pensara, tinha de o orientar, ainda há pouco estávamos no 23 antes dele ir á casa de banho e eu sair. Ainda há pouco a ruiva insistia com ele, ela insistia, toda carinhos para cima dele e ao balcão, a outra, a loira, a Telma, deitava-me olhares faiscantes, não percebia se de despeito ou ainda de sedução, não tinha qualquer importância, parecia que todas as gajas do 23 tinham tirado a noite para se me fazerem de negaças, ela ainda mais do que as outras, antes do Hel chegar pagara-lhe dois copos de champanhe a trinta euros cada e ela, depois de se ter feito toda a princípio, tirara-me o pão da boca sem mais nem menos, só queria fazer conversa da treta sobre mim a mostrar-se toda interessada, mas isso só me enfuriou: O que é que fazes na vida?.. Trabalho no Ministério da Adminstração Interna, não te interessa. Ah, trabalhas no Ministério da Administração Interna, é?.. Deve ser muito interessante, lidas com gente importante?.. E eu fosga-se, chavala, não tenho paciência para conversa de sala com putas; e logo a resposta, nas tintas para mim, mutismo frio dela à palavra «putas», como se sentisse genuinamente ofendida, a hipócrita, a engolir em seco e a dizer outra vez, só doçuras, apenas doçuras: querido, fala-me mais do teu trabalho… Conta-me... Do meu trabalho?
Ele saudou-me, apontei com o braço uma mesa livre a um dos cantos mal iluminados, pedi dois copos de champanhe, (um champanhezito Hel, à minha pala?) e logo depois entregámo-nos ao diálogo habitual entre dois velhos amigos da faculdade, género como vão os pomares, paspalho? E o Ministério, energúmeno? Menos mal, e os pomares, imbecil?
Mal, seu idiota, muito mal, uma praga, a minha bolsa de estudo está a filoxerizar-se! Ora, ahahah, caga nisso, bebe mais um copo, repara como a vida é bela, casquinei, apontando a velha prostituta que se batera a ele e que entretanto arranjara um novo otário, pedi mais copos de champanhe, traga a garrafa homem (doutor Ferro, ainda deve 120 euros da semana passada, fique descansado homem, traga mais uma garrafa!)
Agora a sério rapaz, como vão as coisas na Fac? Mal, muito mal meu, não sei se vou conseguir safar os pomares e acho que me vão cortar a bolsa já para o mês que vem, a doutora Cremilde não o disse com todas as palavras, mas…
Hum, repliquei eu, interessado em aspectos técnicos que já não me diziam respeito mas que mesmo assim ainda me cativavam: Já experimentaste enxertos estragénicos? Experimentei tudo, tudo pá, mandei vir anti-fúngicos experimentais da América, mas nada resulta, porra! Mau, o Hel estava realmente preocupado (ou estava ao telefone comigo e quem era aquela gaja que me perguntava com quem eu falava? Onde é que estava naquela noite e la a questionar, porque é que guardas as tuas coisas na bagageira?) e senti pena pelo meu amigo mas, também, quem o mandara fazer o doutoramento recorrendo a técnicas de crescimento frutícola experimentais e acima de tudo de resultado altamente dúbio?
Olha lá pá, dissera-lhe eu, sim, dissera para o animar, recorrendo à nossa experiência comum, revisitando o passado que era território seguro, ao contrário do presente em que já não nos conhecíamos, coisas do ministério e da faculdade: meu, quando fizemos crescer aquele horto de couves - três semanas antes do previsto - isso é que foi uma delícia, hã? Diz lá, foi ou não foi uma beleza?
O Hel rira ao recordar os tempos de mestrado, quando ambos nos havíamos destacado de todos os nossos colegas de curso escrevendo um relatório exaustivo sobre os avanços que lográramos obter no crescimento ultra-rápido de vegetais para consumo humano, que espantara o mundo académico nacional e que chegara até a ter direito a nota de rodapé em programas televisivos sobre o mundo rural: «Dois jovens investigadores da Faculdade de Agronomia de Lisboa descobrem fórmula de crescimento inovadora», mas logo o vi cair num mutismo carregado de nuvens. Tou, Lúcio, tás aí? E a ruiva olhar. sedenta das palavras dele e o Hel que nada, meu, vem buscar-me, tou à porta do 23, Onde tá o carro? Tá onde o deixaste meu melro, onde querias que estivesse? Silêncio.
Ok... Er... Já vou, melhor ainda anda cá ter, vem buscar-me! não posso, meu caro, estou ocupado, tá quieta miúda, não toques nisso, entra para dentro do carro! E ela, sinuosa, fria, mas a entrar para dentro do carro.
Então e a Teresa, pá, como que é vão as coisas, mudara eu de assunto ainda com o Hel a beber copos no 23 ao virar-me para trás e gritar para o balcão: hep, bartender, uma aguardente velha para mim e para o meu amigo! A aguardente chegou e servi-lhe uma dose generosa. À nossa Hel! À nossa Lúcio, balbuciou ele e engoliu o líquido quente dum só trago.
Estava melhor ao limpar os beiços, estava melhor, vi o brilho nos seus olhos e achei que estava melhor. Vai Tudo mal também, Lúcio, tu sabes que eu não olho para outra mulher que não a Teresa, não sabes?.. Sei?.. Não sei meu, não sei o que fazes com as tuas coleguinhas de doutoramento, ou sei?.. Sabes meu, claro que Sabes!..
Eu, que até sabia mas que gostava de o provocar, lá respondi: Essa agora, és uma besta, mas… enfim, sei, gostas da gaja, caralho, és mesmo estúpido ó campónio, estúpido de todo, fiel como o caralho a quatro a uma gaja que não te merece… mas então, o que é que se passa ao certo com a Teresa?.. Ele serviu os nossos copos, bem, bom, estava a entrar na onda, a embebedar-se comigo, bebeu e disse, constatando: o que se passa é que ela tem ciúmes de tudo, de tudo Lúcio; do doutoramento, da Cremilde, a Cremilde da Fac, vê lá tu, do tempo que passo com os meus amigos, do pomar e… imagina que até tem ciúmes de ti! De mim? Essa agora.
Engoli em seco e aguardei que concretizasse. Pois pá, não é ciúmes de ti por ti, é ciúmes de eu «preferir» estar aqui a beber copos contigo ao invés de estar com ela, suspirou, outra vez deprimido.
Ora, esquece isso rapaz, repara mas é bem naquele traço! E, seguindo a minha voz, O Hel pôs-se a comer com os olhos a ruiva, acabadinha de entrar no 23, a ruiva que enchia o espaço de sensualidade e que, sem cumprimentar ninguém, se dirigia direita a nós, cigarro comprido no canto dos lábios, indagando por lume.
Hel, meu, vem ter aqui ao governo civil e mexe-te, sim, mesmo ao lado do São Carlos, mexe-te que tenho um doce para ti! Foda-se Lúcio, tu e as tuas surpresas maradas, estou a caminho. O Hel desligou, sacudi a cabeça, apaguei o meu telemóvel e voltei a enfiá-lo por baixo do tapete da bagageira do R6. Merda, os papéis estavam todos remexidos. Foda-se, não podia misturar o trabalho com a bebedeira, não podia, tinha de me concentrar e com um gesto brusco empurrei tudo sob o tapete e fechei a bagageira.
Fazia frio e caía uma chuva miúda. Tratava-se da realidade. Do meu R6. O meu R6 e aquela ruiva boazona no lugar do morto. Olá miúda, repleto de insinuações perigosas. Já acabaste de falar com o teu amigo? Já, pois. Vem aí ter e vamos fazer uma festa em Cascais, agrada-te? Sou toda tua, a seco, fria, sem sentimento. Toda minha, ou toda dele? e resvalei desamparado no lugar do morto, Ariel escapara-se ágil para o banco de trás. Resolvi mostrar-lhe dinheiro. Gostas de dinheiro, miúda? Estranho, regra geral quando fico assim as putas não gostam, mandam-me à merda a mim e ao meu dinheiro, só que esta não: gosto, mas ainda gostava mais se fosse a três… Quanto? Quanto pela noite toda? Queria livrar-me dela, esta gaja era problema, eu snifava problemas à distância, a tipa não fazia sentido, ainda a bater-se ao lance apesar das minhas investidas cada vez mais ousadas mas antes de ter tempo para responder o decrépito R7 do Hel, a chiar a suspensão em mau estado imobilizou-se junto ao meu R6 e, do lado de lá da janela do condutor, o Hel, cabrão, saudou-me numa vozinha que ressoava ironia e alcoolismo: então Lúcio, esse doce, é para hoje ou para amanhã?.. Sem responder, levei a mão ao bolso do casaco, com os olhos fiz-lhe o tal do olhar cúmplice dando-lhe tempo suficiente para mergulhar nos olhos verdes da ruiva que assolara à janela do meu R6 e devolvi-lhe a carteira.
21.1.09
Ariel - Parte II (revisão)
Pelo menos, tinha combinado este encontro com o Lúcio. Havia muito que não nos víamos. Ele andava ocupado com o seu novo cargo no ministério e eu ainda estava para perceber em que consistia exactamente. Por outro lado, apesar do fiasco que se revelava, o doutoramento absorvia grande parte do meu tempo livre. Tínhamos agora esta pequena nesga de tempo, esta janela de oportunidade, quatro dias antes do Natal, para nos encontrarmos, tempo, esta janela de oportunidade, as fpensar o futuro, rir do passado e, porque não?, do presente, sobretudo quando não houvesse motivo para rir. Conseguíamos encontrar sempre motivo para rir nas situações mais improváveis. «Vamos ao 23, Hel? Vamos até lá, bebemos uns copos, conhecemos umas miúdas vá, vá, percebo pela tua voz que é isso mesmo de que estás a precisar». Talvez fosse mesmo… daí encolher os ombros, esquecer amarguras e problemas e olhar em frente.
Chegado às imediações do 23, não me poupei a levar o R7 numa passeata à volta dos quarteirões circundantes, desgastando as suspensões sobre os buracos da baixa, à caça de um lugar. Finalmente, depois de quase três quartos de hora a tentar encontrar um pequeno nicho para o R7, consegui estacionar. Tirei a carteira do porta-luvas, abri a porta e reflecti, enquanto vestia o casaco, a noite soprava um vento gelado e a chuva caía, miudinha, que um cartão ministeriável devia resolver quase todos os meus problemas automobilísticos quando saía à noite. Com passo estugado, percorri a calçada, sempre longe da estrada e atento, não vá alguma besta decidir que preciso de um banho de meia-noite. Avisto a porta do 23. Era muito provável que fosse encontrar o Lúcio fulo da vida, farto de esperar por mim. Parei à porta do bar e o grande monstro humanóide que estava feito cão de guarda à entrada, do alto dos seus quase dois metros, mirou-me de alto a baixo, por detrás das lentes negras e impenetráveis, e, aparentemente satisfeito com a avaliação que fez, deu um passo ao lado, deixou-me passar, (desejei as boas noites), (ignorou), e regressou ao seu posto, hirto e colossal. Entrei e avaliei o local: à minha esquerda, encontrava-se o longo balcão em madeira escura e no lado direito viam-se algumas mesas cujas cadeiras estavam ocupadas por pessoas a conversar e a beber. Perscrutei os recantos em busca de Lúcio, nas mesas, locais um pouco mais resguardados, ideais para se beber uns copos e pôr a conversa em dia. Depois de passar os olhos pelo ambiente, detectei-o ao balcão, para surpresa minha, já acompanhado, tão cedo, de uma loira espampanante. Vestido curto, negro, sapatos de saltos altos e um cabelo loiro, ondulado, dançando no rosto e hipnotizando o meu amigo. Desci calmamente o lanço de dois degraus, evitei algumas pessoas que dançavam ao som da música, tirei o casaco e, ao mesmo tempo que me sentava ao balcão, três ou quatro cadeiras afastado do Lúcio, longe de mim querer invadir o espaço dele, neste momento, cruzei o olhar com o dele, deixei escapar um sorriso discreto, virei-me para o bartender e pedi uma imperial. Sem dar sinal de que ouvira o meu pedido, pegou num copo e começou a tirar a bebida. Nisto, chega-me ao canto do olho a mão sinuosa da loira a cair, discreta, na perna de Lúcio, subindo, e este, todo entretido, todo mãos pelo corpo dela, os dois rostos colados, ele só sorrisos e ela a sussurrar, enrolando o cabelo com o indicador. Decidi esperar tranquilamente, degustando o líquido fresco e espumante que me refrescava a garganta. Curiosamente, o bartender parecia, por sua vez, interessado no flirt que se lhe desenrolava à frente, lançando olhares fugazes aos dois, por entre as diligências do balcão. De súbito, Lúcio olhou para mim, disse qualquer coisa à loira e veio ao meu encontro, com um andar seguro e exibindo um sorriso visivelmente triunfante, ajeitando o colarinho da camisa. Estendeu-me a mão. Apertei-a, absorto, e disse-lhe, desprendido e seco, mas sem esconder o tom cúmplice:
Estava no 23, seguramente, sem margem para dúvidas.
20.1.09
Ariel - Parte I (revisão)
Era o dia 20 de Dezembro de 2007, quatro dias para o Natal, tinham-me sido concedidas as férias pelas quais há muito insistia, o meu chefe apertara-me a mão e dissera-me, roufenho, a seco: «Lúcio, faz seis meses que está na casa, não se esqueça do que lhe digo, escute que talvez lhe venha a ser útil, na profissão de engenheiro há muito mais a esconder do que a plantar. Muito menos couves, não se esqueça disso, e aprecie as suas férias, meu caro.»
Embora não fosse a primeira vez que o chefe me falava não gostei lá muito do que dissera, havia demasiados assuntos pessoais em jogo; não me podia dar ao luxo de perder aquele posto profissional e sobretudo não queria arranjar sarilhos com o meu velhote nem, muito menos, colocar em causa o seu próprio prestígio individual junto das altas esferas, pelo que optei por replicar: «Que achou da reunião senhor director, esta história - dos aviões e da droga - pareceu-lhe a sério?..»
Acusou, como estava certo de que o faria, a estocada, e reiterou-me, como também sabia que o faria, que não era da minha conta, que apenas estava ali para informar o «ajudante do ministro», «claro», éramos tolos ou quê, não era à toa que o meu velhote me financiara férias profissionais pagas em Inglaterra (belo do velhote) a suas próprias expensas, fora para me treinar para aquele momento, ou assim o desejava pensar.
Então, o tipo da secretaria de Estado, todo ufanado da burocracia socialista que o levara ao poder, com um gesto brusco terminou a entrevista, voltou a desejar-me «uma boa quadra», saudei de maneira cortês e à inglesa saí, afinal já tinha entrado de férias, uma semana só para mim, talvez uma estirada a Castelo de Bode, talvez um bom banho de imersão e depois logo decidia.
Quando abandonei o edifício da Cidade Judiciária e me encaminhei para o R6 apercebi-me de que chovia no parque onde estacionara a viatura, uma chuvinha miúda, chuva molha tolos, o que até me convinha, não tinha pressa alguma e o meu propósito não favorecia testemunhas esdrúxulas, pelo que, contente, abri a bagageira, levantei o tapete da mesma e no espaço entre a roda sobresselente e a caixa de cd's do R6, como quem não quer a coisa e a fingir que olhava para o lado depositei os documentos e o telemóvel, desligado, satisfeito com a minha posição na ordem natural das coisas, antes de arrancar suavemente da sede do serviço até ao 23, o meu bar de eleição, a meio caminho entre a a minha casa e o rio, à procura de pito, apetecia-me cona.
Conduzia ligeiro por entre os buracos da baixa que remontavam à época pombalina e ainda que na noite anterior tivesse estacionado o R6 em contra-mão à porta do ministério, só porque sim e porque ninguém me chateava por causa disso, pelo menos não chateavam funcionários com cartão ministeriável, assim corriam os assuntos no país, tudo uma questão de autoridade, despi a gabardina, saí do carro, tranquei a porta e quedei-me a apreciar o aroma da viatura novinha em folha, o belíssimo R6 que tinha sido um presente do meu pai pelo meu último sucesso reportado junto dos Negócios Estrangeiros (tudo mentira, embora bem orquestrada), com a ajuda dum putativo candidato a Presidente da República, deputado, poeta, conhecido do meu velhote dos anos de luta em Coimbra, um contacto, enfim, um dos otários que conhecia bem e que estivera presente na reunião em que se falara da revolta dos professores, o tema quente do dia e em que o primeiro-ministro(nunca me esquecerei) sorrira quando o meu secretário de Estado mencionara tráfico de armas, o golpe que se preparava com a ajuda dum tal de Pedro ligado aos americanos e do qual eu próprio fingia nada saber: «Quanto menos souberes, melhor para ti», esse era o meu mote e raramente dele me desviava, a não ser à noite.
A bem dizer, nada disso me dizia respeito, estava perto dum clube que me seduzia pelas mulheres do Leste e que me agradava pelos preços baixos; estacionara a minha própria viatura suficientemente longe dali para não ter de me preocupar com isso, muito menos com os documentos, coisas da secreta, o que queria mesmo era divertir-me e esquecer o Ministério duma vez.
Tranquei o R6 bem aferrolhado e decidi desligar-me duma vez da porra das preocupações do ministério, até porque dei comigo a entrar no clube saudado por um porteiro negro que conhecia de outras andanças, ainda a montar a onda, se bem que maldisposto.
Onde estaria o Hel? Tinha de ligar-lhe, era verdade, onde estaria o Hel naquele momento? Uma gaja loira aproximou-se e a beijar-me apalpou-me as partes baixas. Estava no 23, seguramente, sem margem para dúvidas.