22.1.09

Ariel - Parte III (revisão)


Lúcio meu, não bebo mais, combinei amanhã de manhã com a Teresa, não posso aparecer todo fodido! Calma, meu, tem calma, deixa lá tar a pequena (pisquei o olho para a puta ruiva sentada entre nós os dois), bebe mais uma aguardente e repara como é belo o mundo! A ruiva, entretanto, espetara-lhe a língua no ouvido e o semblante do Hel alterara-se. Muito rapidamente para um homem tão embriagado, pôs-se de pé e fugiu, vou à casa de banho, tenho de ir à casa de banho, deixando a carteira e as chaves em cima da mesa. Guardei a carteira no bolso do casaco, pedi a conta, peguei nas chaves como se fossem minhas e olhei para a ruiva. Era linda, mesmo bela.

Gostas de dinheiro, linda? Gosto pois, doce, vais oferecer-me algum, é, meu lindo?.. Sou capaz amor, sou capaz…

A voz dela queimava e, no entanto, capacidades à parte, era-me óbvio que o Hel não estava capaz de beber muito mais, o que até talvez não fosse mau de todo, tudo uma questão de ver como o miúdo recuperava, se bem que a minha sede, essa, continuava a mesma, se calhar só tinha piorado com a aparição daquela putazinha ruiva que não fazia outra coisa do que roçar-se nele, sem me ligar pevide, a cabra, mas agora tinha-a só para mim, o Hel estava fora do quadro, provavelmente a vomitar pomares na casa de banho pela boca fora, ou na volta só a urinar, era o mais certo, se bem que com ele nunca se sabia ao certo em que matutava ou o que estava a fazer, era tramado ser seu amigo, que mau que era o Hel!

Levantei-me, sorri para a Telma cujos olhos me chisparam, era só inveja naqueles olhos, pedi crédito ao bartender ao mesmo tempo que o subornava discretamente e ouvia replicar: doutor, é a última vez é a última vez! Pois sim meu caro Carlos, faça-me um favor, diga ao meu amigo que estou na rua de cima, mesmo em frente ao governo-civil e entregue-lhe estas chaves, pode ser? Boa noite doutor, fique descansado.
A Telma, afastando os olhos dos meus, estava furiosa, a loira burra mas entesoante, ainda iria foder aquela gaja, embora não naquela noite, naquela noite apetecia-me outra coisa mais refinada. Dei a mão a Ariel e saímos porta fora. Cumprimentei o Securitas, como está o tempo aí em cima, jovem? O gajo riu, julgo até que gargalhou e desejou-me uma boa noite, senhor doutor, sem esquecer a devida deferência, como era bom ser filhinho do papá.

Fui levando a tipa para o meu carro, como é que chamas te mesmo? Tentando caminhar em uníssono com ela, era uma rapariga nova, parecia deslocada no ambiente, demasiado calorosa para o ofício, parecia, sim parecia mesmo, na volta era uma principiante, sim, era isso mesmo, era uma puta jovem e emocional e era mesmo o que convinha to rock the boat daquela noite de fim de Dezembro, por assim dizer, só porque sim e também já agora porque não, estava ao pé do meu carro, o R6 de marca, artilhado, o 23 ficara para trás e a única coisa que me prendia ali, para lá da amizade com que deixara um colega atrás era aquela bacana, era a ideia de a levar até casa dele e de fazermos juntos uma menage à trois.

Como a noite evoluíra rapidamente desde que saíra do ministério, ao fim daquela tarde e após o sermão do meu chefe. Primeiro a loira. Depois o Hel ao telefone. Eram quase nove da noite quando entrara no 23, a música enchia todos os recantos vazios de pessoas, na altura ainda era cedo, e achara ser essa a altura acertada para fazer alguma coisa para esquecer todos os segredos hipócritas que me enojavam, eventualmente até, mostrar ao Hel que havia mais mulheres no mundo do que a sua banal namoradita sem futuro e esta fulana ruiva que agora caminhava ao meu lado, muito depois disso, que vontade de caminhar em uníssono com ela, Ariel, dizia chamar-se, estudante de «Tradução em Letras», a fazer-se séria a rir-se, embora não embrulhasse essa história de ela ser estudante que me parecia demasiado rebuscada, acabava até por nem ser mal empregue para o objectivo que agora ia lentamente delineando, um belo dum bacanal, uma novo campo a desbravar com o meu amigo, só esperava era que lhe tivessem dado o meu recado e que não se tivesse afogado na sanita, o pobre.

Como é que a Ariel pudera pensar que o Hel seria uma vítima adequada à sua incursão no mundo da noite é que eu não percebia, quanto mais não fosse porque a mim é que ela me despertava uma enorme cobiça voluptuosa e já o Hel, convenhamos, bastava olhar para as suas roupas para compreender que era um teso, jovem e bem-apessoado, não digo que não, mas um teso, sem eira nem beira, por muito prometedor que aparentasse ser.

Chegámos ao meu R6 e Ariel comentou, aparentemente espantada: ena, tens um carro muito bom, isto deve ter-te custado uma pipa de massa! Agradeci, lisonjeado, abri-lhe a porta do lugar do morto, sentou-se, pôs-se a brincar com o rádio e eu encaminhei-me para a bagageira, pesquei o telemóvel por trás do tapete, liguei-o e disquei o número do Hel. Onde estás meu? Isso digo eu sacana, fugiste com o meu amor, fugiste com o amor da minha vida! Mau, o Hel estava mais bêbado do que pensara, tinha de o orientar, ainda há pouco estávamos no 23 antes dele ir á casa de banho e eu sair. Ainda há pouco a ruiva insistia com ele, ela insistia, toda carinhos para cima dele e ao balcão, a outra, a loira, a Telma, deitava-me olhares faiscantes, não percebia se de despeito ou ainda de sedução, não tinha qualquer importância, parecia que todas as gajas do 23 tinham tirado a noite para se me fazerem de negaças, ela ainda mais do que as outras, antes do Hel chegar pagara-lhe dois copos de champanhe a trinta euros cada e ela, depois de se ter feito toda a princípio, tirara-me o pão da boca sem mais nem menos, só queria fazer conversa da treta sobre mim a mostrar-se toda interessada, mas isso só me enfuriou: O que é que fazes na vida?.. Trabalho no Ministério da Adminstração Interna, não te interessa. Ah, trabalhas no Ministério da Administração Interna, é?.. Deve ser muito interessante, lidas com gente importante?.. E eu fosga-se, chavala, não tenho paciência para conversa de sala com putas; e logo a resposta, nas tintas para mim, mutismo frio dela à palavra «putas», como se sentisse genuinamente ofendida, a hipócrita, a engolir em seco e a dizer outra vez, só doçuras, apenas doçuras: querido, fala-me mais do teu trabalho… Conta-me... Do meu trabalho?
Era o que mais faltava, o meu trabalho era de ouro e «não se esqueça Lúcio, esconder é mais importante do que plantar couves», e eu todo porco com a gaja, topando pelo canto do olho a chegada do Hel ao 23, virando-me para os frios e interesseiros olhos azuis de Telma e dizendo-lhe: vá à merda Telma, querida, vá à procura de outro pato que este já era. A loira gelou, mas eu não estava minimamente preocupado com isso e juntei-me ao Hel que era abordado por uma catatua horrorosa (os padrões do 23 estavam a descer, devia de ser a crise, só podia).

Ele saudou-me, apontei com o braço uma mesa livre a um dos cantos mal iluminados, pedi dois copos de champanhe, (um champanhezito Hel, à minha pala?) e logo depois entregámo-nos ao diálogo habitual entre dois velhos amigos da faculdade, género como vão os pomares, paspalho? E o Ministério, energúmeno? Menos mal, e os pomares, imbecil?

Mal, seu idiota, muito mal, uma praga, a minha bolsa de estudo está a filoxerizar-se! Ora, ahahah, caga nisso, bebe mais um copo, repara como a vida é bela, casquinei, apontando a velha prostituta que se batera a ele e que entretanto arranjara um novo otário, pedi mais copos de champanhe, traga a garrafa homem (doutor Ferro, ainda deve 120 euros da semana passada, fique descansado homem, traga mais uma garrafa!)

Agora a sério rapaz, como vão as coisas na Fac? Mal, muito mal meu, não sei se vou conseguir safar os pomares e acho que me vão cortar a bolsa já para o mês que vem, a doutora Cremilde não o disse com todas as palavras, mas…

Hum, repliquei eu, interessado em aspectos técnicos que já não me diziam respeito mas que mesmo assim ainda me cativavam: Já experimentaste enxertos estragénicos? Experimentei tudo, tudo pá, mandei vir anti-fúngicos experimentais da América, mas nada resulta, porra! Mau, o Hel estava realmente preocupado (ou estava ao telefone comigo e quem era aquela gaja que me perguntava com quem eu falava? Onde é que estava naquela noite e la a questionar, porque é que guardas as tuas coisas na bagageira?) e senti pena pelo meu amigo mas, também, quem o mandara fazer o doutoramento recorrendo a técnicas de crescimento frutícola experimentais e acima de tudo de resultado altamente dúbio?

Olha lá pá, dissera-lhe eu, sim, dissera para o animar, recorrendo à nossa experiência comum, revisitando o passado que era território seguro, ao contrário do presente em que já não nos conhecíamos, coisas do ministério e da faculdade: meu, quando fizemos crescer aquele horto de couves - três semanas antes do previsto - isso é que foi uma delícia, hã? Diz lá, foi ou não foi uma beleza?

O Hel rira ao recordar os tempos de mestrado, quando ambos nos havíamos destacado de todos os nossos colegas de curso escrevendo um relatório exaustivo sobre os avanços que lográramos obter no crescimento ultra-rápido de vegetais para consumo humano, que espantara o mundo académico nacional e que chegara até a ter direito a nota de rodapé em programas televisivos sobre o mundo rural: «Dois jovens investigadores da Faculdade de Agronomia de Lisboa descobrem fórmula de crescimento inovadora», mas logo o vi cair num mutismo carregado de nuvens. Tou, Lúcio, tás aí? E a ruiva olhar. sedenta das palavras dele e o Hel que nada, meu, vem buscar-me, tou à porta do 23, Onde tá o carro? Tá onde o deixaste meu melro, onde querias que estivesse? Silêncio.

Ok... Er... Já vou, melhor ainda anda cá ter, vem buscar-me! não posso, meu caro, estou ocupado, tá quieta miúda, não toques nisso, entra para dentro do carro! E ela, sinuosa, fria, mas a entrar para dentro do carro.

Então e a Teresa, pá, como que é vão as coisas, mudara eu de assunto ainda com o Hel a beber copos no 23 ao virar-me para trás e gritar para o balcão: hep, bartender, uma aguardente velha para mim e para o meu amigo! A aguardente chegou e servi-lhe uma dose generosa. À nossa Hel! À nossa Lúcio, balbuciou ele e engoliu o líquido quente dum só trago.

Estava melhor ao limpar os beiços, estava melhor, vi o brilho nos seus olhos e achei que estava melhor. Vai Tudo mal também, Lúcio, tu sabes que eu não olho para outra mulher que não a Teresa, não sabes?.. Sei?.. Não sei meu, não sei o que fazes com as tuas coleguinhas de doutoramento, ou sei?.. Sabes meu, claro que Sabes!..

Eu, que até sabia mas que gostava de o provocar, lá respondi: Essa agora, és uma besta, mas… enfim, sei, gostas da gaja, caralho, és mesmo estúpido ó campónio, estúpido de todo, fiel como o caralho a quatro a uma gaja que não te merece… mas então, o que é que se passa ao certo com a Teresa?.. Ele serviu os nossos copos, bem, bom, estava a entrar na onda, a embebedar-se comigo, bebeu e disse, constatando: o que se passa é que ela tem ciúmes de tudo, de tudo Lúcio; do doutoramento, da Cremilde, a Cremilde da Fac, vê lá tu, do tempo que passo com os meus amigos, do pomar e… imagina que até tem ciúmes de ti! De mim? Essa agora.

Engoli em seco e aguardei que concretizasse. Pois pá, não é ciúmes de ti por ti, é ciúmes de eu «preferir» estar aqui a beber copos contigo ao invés de estar com ela, suspirou, outra vez deprimido.

Ora, esquece isso rapaz, repara mas é bem naquele traço! E, seguindo a minha voz, O Hel pôs-se a comer com os olhos a ruiva, acabadinha de entrar no 23, a ruiva que enchia o espaço de sensualidade e que, sem cumprimentar ninguém, se dirigia direita a nós, cigarro comprido no canto dos lábios, indagando por lume.

Hel, meu, vem ter aqui ao governo civil e mexe-te, sim, mesmo ao lado do São Carlos, mexe-te que tenho um doce para ti! Foda-se Lúcio, tu e as tuas surpresas maradas, estou a caminho. O Hel desligou, sacudi a cabeça, apaguei o meu telemóvel e voltei a enfiá-lo por baixo do tapete da bagageira do R6. Merda, os papéis estavam todos remexidos. Foda-se, não podia misturar o trabalho com a bebedeira, não podia, tinha de me concentrar e com um gesto brusco empurrei tudo sob o tapete e fechei a bagageira.

Fazia frio e caía uma chuva miúda. Tratava-se da realidade. Do meu R6. O meu R6 e aquela ruiva boazona no lugar do morto. Olá miúda, repleto de insinuações perigosas. Já acabaste de falar com o teu amigo? Já, pois. Vem aí ter e vamos fazer uma festa em Cascais, agrada-te? Sou toda tua, a seco, fria, sem sentimento. Toda minha, ou toda dele? e resvalei desamparado no lugar do morto, Ariel escapara-se ágil para o banco de trás. Resolvi mostrar-lhe dinheiro. Gostas de dinheiro, miúda? Estranho, regra geral quando fico assim as putas não gostam, mandam-me à merda a mim e ao meu dinheiro, só que esta não: gosto, mas ainda gostava mais se fosse a três… Quanto? Quanto pela noite toda? Queria livrar-me dela, esta gaja era problema, eu snifava problemas à distância, a tipa não fazia sentido, ainda a bater-se ao lance apesar das minhas investidas cada vez mais ousadas mas antes de ter tempo para responder o decrépito R7 do Hel, a chiar a suspensão em mau estado imobilizou-se junto ao meu R6 e, do lado de lá da janela do condutor, o Hel, cabrão, saudou-me numa vozinha que ressoava ironia e alcoolismo: então Lúcio, esse doce, é para hoje ou para amanhã?.. Sem responder, levei a mão ao bolso do casaco, com os olhos fiz-lhe o tal do olhar cúmplice dando-lhe tempo suficiente para mergulhar nos olhos verdes da ruiva que assolara à janela do meu R6 e devolvi-lhe a carteira.