21.1.09

Ariel - Parte II (revisão)


Fechei a porta e o carro gemeu num lamento em todas as articulações. Dei à chave do meu velho e fiel companheiro, o R7, que (…o telemóvel toca) «Olá, querida…! Pois, não, não vai dar, é que hoje combinei com o Lúcio de ir beber um copo… Sim, eu sei que ontem também não podia… Bem sei que combinámos hoje de…» Desligou! Suspirei, pus a primeira e, numa tosse roufenha, o carro lançou-se, veloz e robusto, no meio das confusas ruas de Lisboa, espremendo-se por entre os carros, faixa a faixa. Esta merda de atitudes e discussões por parte dela não vinham melhorar o meu dia. A última coisa de que precisava era de cenas de ciúmes, sobretudo por causa de amigos; se ainda fosse por causa de outra gaja, se, pelo menos, fosse mesmo outra gaja. Já o doutoramento não corria de feição. Acabara de receber a notícia, por intermédio da voz delicodoce da minha orientadora, de que me iam «cortar a bolsa, que o projecto deixara de ser viável, que uma praga de Ceratitis capitata devastara os pomares, que a universidade e o departamento começavam a duvidar do meu empenho e interesse em levar o doutoramento a bom porto». Respondi que não, que fazia os possíveis, que já instalara as armadilhas Tephri, que tratara pessoalmente com os fornecedores acerca da compra de FFA,pra deornecedores acerca domeçava a duvidar dartar a biolsa FFP e FFT, que os pomares seriam salvos, que era do meu maior interesse empenhar-me na conclusão do doutoramento. Enfim, a ladainha do costume, verdadeira, desta vez, mas ela escutou-me, acenando que sim com pequenos movimentos de cabeça, um sorriso amarelo decorando-lhe o rosto enrugado, interrompendo-me a meio para rematar com um céptico «Pois, não pense mais nisso, Hel. Desfrute das suas férias e Boas Festas. Envio-lhe um e-mail para nos encontrarmos em Janeiro». Tornara-se dolorosamente óbvio que ia ficar sem bolsa a partir de Janeiro. Que bela maneira de começar 2009.

Pelo menos, tinha combinado este encontro com o Lúcio. Havia muito que não nos víamos. Ele andava ocupado com o seu novo cargo no ministério e eu ainda estava para perceber em que consistia exactamente. Por outro lado, apesar do fiasco que se revelava, o doutoramento absorvia grande parte do meu tempo livre. Tínhamos agora esta pequena nesga de tempo, esta janela de oportunidade, quatro dias antes do Natal, para nos encontrarmos, tempo, esta janela de oportunidade, as fpensar o futuro, rir do passado e, porque não?, do presente, sobretudo quando não houvesse motivo para rir. Conseguíamos encontrar sempre motivo para rir nas situações mais improváveis. «Vamos ao 23, Hel? Vamos até lá, bebemos uns copos, conhecemos umas miúdas vá, vá, percebo pela tua voz que é isso mesmo de que estás a precisar». Talvez fosse mesmo… daí encolher os ombros, esquecer amarguras e problemas e olhar em frente.


Chegado às imediações do 23, não me poupei a levar o R7 numa passeata à volta dos quarteirões circundantes, desgastando as suspensões sobre os buracos da baixa, à caça de um lugar. Finalmente, depois de quase três quartos de hora a tentar encontrar um pequeno nicho para o R7, consegui estacionar. Tirei a carteira do porta-luvas, abri a porta e reflecti, enquanto vestia o casaco, a noite soprava um vento gelado e a chuva caía, miudinha, que um cartão ministeriável devia resolver quase todos os meus problemas automobilísticos quando saía à noite. Com passo estugado, percorri a calçada, sempre longe da estrada e atento, não vá alguma besta decidir que preciso de um banho de meia-noite. Avisto a porta do 23. Era muito provável que fosse encontrar o Lúcio fulo da vida, farto de esperar por mim. Parei à porta do bar e o grande monstro humanóide que estava feito cão de guarda à entrada, do alto dos seus quase dois metros, mirou-me de alto a baixo, por detrás das lentes negras e impenetráveis, e, aparentemente satisfeito com a avaliação que fez, deu um passo ao lado, deixou-me passar, (desejei as boas noites), (ignorou), e regressou ao seu posto, hirto e colossal. Entrei e avaliei o local: à minha esquerda, encontrava-se o longo balcão em madeira escura e no lado direito viam-se algumas mesas cujas cadeiras estavam ocupadas por pessoas a conversar e a beber. Perscrutei os recantos em busca de Lúcio, nas mesas, locais um pouco mais resguardados, ideais para se beber uns copos e pôr a conversa em dia. Depois de passar os olhos pelo ambiente, detectei-o ao balcão, para surpresa minha, já acompanhado, tão cedo, de uma loira espampanante. Vestido curto, negro, sapatos de saltos altos e um cabelo loiro, ondulado, dançando no rosto e hipnotizando o meu amigo. Desci calmamente o lanço de dois degraus, evitei algumas pessoas que dançavam ao som da música, tirei o casaco e, ao mesmo tempo que me sentava ao balcão, três ou quatro cadeiras afastado do Lúcio, longe de mim querer invadir o espaço dele, neste momento, cruzei o olhar com o dele, deixei escapar um sorriso discreto, virei-me para o bartender e pedi uma imperial. Sem dar sinal de que ouvira o meu pedido, pegou num copo e começou a tirar a bebida. Nisto, chega-me ao canto do olho a mão sinuosa da loira a cair, discreta, na perna de Lúcio, subindo, e este, todo entretido, todo mãos pelo corpo dela, os dois rostos colados, ele só sorrisos e ela a sussurrar, enrolando o cabelo com o indicador. Decidi esperar tranquilamente, degustando o líquido fresco e espumante que me refrescava a garganta. Curiosamente, o bartender parecia, por sua vez, interessado no flirt que se lhe desenrolava à frente, lançando olhares fugazes aos dois, por entre as diligências do balcão. De súbito, Lúcio olhou para mim, disse qualquer coisa à loira e veio ao meu encontro, com um andar seguro e exibindo um sorriso visivelmente triunfante, ajeitando o colarinho da camisa. Estendeu-me a mão. Apertei-a, absorto, e disse-lhe, desprendido e seco, mas sem esconder o tom cúmplice:


- Sim, maravilha, Lúcio, old fellow, vejo que te corre bem a vida.


De repente, chega ao balcão uma mulher, quase a tropeçar nos próprios pés, de copo na mão, senta-se no banco a meu lado, o corpo apoiado no balcão para não cair, perscruta-me com olhos ávidos e vidrados, arrotando, de um só jorro, o convite: «Vamos foder?». Lúcio conteve um súbito ataque de riso. Na verdade, e para meu infortúnio, à minha frente encontrava-se, sem sombra de dúvida, a mulher mais desprezível de todo o bar, pelo que, em tom educado, recusei e retomei a minha aprazível tarefa de levar a imperial aos lábios. Ficou absorta por um instante, levantou-se mecanicamente e afastou-se, sobre os pés cambaleantes, de copo vazio na mão, pelos vistos já interessada num sujeito que estava sozinho, numa mesa protegida pela penumbra.


Estava no 23, seguramente, sem margem para dúvidas.