27.1.09

Ariel - Parte V (revisão)

- Lúcio, meu, não bebo mais, combinei amanhã de manhã com a Teresa, não posso aparecer todo fodido!
- Calma, meu, tem calma, deixa lá ‘tar a pequena (pesquei o piscar de olho que Lúcio lançou à puta ruiva sentada entre nós os dois), bebe mais uma aguardente e repara como é belo o mundo! – disse, com um largo gesto de mão.

A ruiva, sem aviso, espetou-me a língua quente no ouvido e uma forte reacção por trás do fecho das calças não se fez esperar, uma saudação à língua dela no meu ouvido, movendo-se em lentos círculos. No entanto, e por muito empenhado que estivesse em continuar no meu lugar, com o corpo quente dela a roçar-se no meu e na companhia da aguardente do Lúcio, saltei da cadeira, «vou à casa de banho, tenho de ir à casa de banho!», apoiei-me na mesa com uma das mãos, apoiei o corpo, ainda num equilíbrio hesitante, e, incerto de para onde me devia dirigir, «onde raio é a casa de banho!?», pensei, em desespero face à perspectiva de me humilhar no 23, e, numa passada larga, agarrado ao estômago, lá a encontrei, por trás de uma porta de madeira, pintada de branco, mas já amarelada pelo tempo e pelo tabaco, uma casa de banho suja, porca, a tresandar a mijo e a vómito. Eu seria apenas mais um. Sem cerimónias, ajoelhei-me, prendi as mãos ao mármore e enfiei a cabeça na retrete. Levantei-me lentamente, já mais lúcido, se bem que ainda bêbedo, naquele estado de semi-lucidez ébria (ou semi-loucura sóbria, conforme se seja do tipo meio copo vazio, meio copo cheio), limpei a boca às costas da mão, avancei para o lavatório, abri a torneira, que chiou e se engasgou com o ar, e, com as mãos em forma do concha, levei água à cara, outra vez, e ainda mais outra, esfreguei os olhos e mirei-me ao espelho. Já me sentia bem melhor. «Não me devia meter nestas merdas», pensei, enquanto observava o espelho manchado e partido num dos cantos. «Com um avô ceifado por cirrose e um pai com problemas de úlceras, talvez fosse boa ideia dar um descanso ao meu estômago amargurado.» A propósito, estariam o Lúcio e a ruiva à minha espera, na mesa do bar? O mais provável é que se tivesse escapulido com a miúda. «Nããã», afastei esse pensamento da cabeça, «ele é meu amigo, não me abandonaria à minha sorte num bar mau reputado e num ambiente hostil como este». Ri-me dos meus próprios pensamentos… ambiente hostil… E a ruiva? Teria engraçado com o Lúcio? Não sei porquê, mas, por algum motivo, tinha ficado com a sensação de que fora à bola comigo, pelo menos, até fraquejar e correr como um menino para a casa de banho, merda de estômago doente e fraco. Que miúda tão bonita, bonita de mais para levar a vida que levava. Tinha um magnetismo que não se encontrava por aí aos pontapés. Aos poucos, monopolizara o espaço e o assunto, e isso não se devera somente ao par de longas pernas esculturais, busto convidativo, cabelo de fogo e lábios vermelhos e insinuantes. Sim, nada de ingenuidades românticas, eram, de facto, atributos que só favoreciam esse magnetismo; porém, havia um je ne sais quoi, algo nos seus olhos verdes que absorvera toda a minha atenção, esgotando-me a mente. A porta batia ruidosamente e parecia querer ceder nas dobradiças. Acordei, abanei a cabeça, voltando a agarrar-me à realidade. Já me sentia melhor. «Ó da casa, ainda demoras muito?» Ouvia os urros de um tipo, pelos vistos em pior estado do que eu. Abri a porta e, sem me dar tempo de sair, abalroou-me, quase tropeçando, e colocou-se na mesma posição e no local exacto que eu ocupara não fazia ainda dez minutos. Saí e fechei a porta, deixando o homem gozar a sua privacidade e entregue aos seus pensamentos, fossem eles quais fossem. Num ápice, e de olhos bem arregalados, corri as mesas em busca da ruiva e do Lúcio. Nada. Nem sinal dos dois. «Não é que o sacana me deixou mesmo sozinho?, aqui, a ver navios.» Enquanto perscrutava as mesas, dei com o tal homem que ocupava a mesa do canto, envolto em penumbra, o tal com quem a velha catatua fora ter depois de tentar a sua sorte comigo. Desta vez, estava acompanhado por outra mulher, bem mais apetecível e agradável aos sentidos, uma loira, a loira. Estava com o rosto quase colado ao do homem e conversavam em sussurros exaltados, cheios de secretismo e suspeitas. Ela recostou-se na cadeira, cruzou a perna coberta pelas meias negras, beberricou e levantou-se. Ia em direcção à saída, aparentemente insatisfeita com alguma coisa e os seus olhos escondiam uma estranha desilusão. Algo me disse que não seria boa ideia ser apanhado a observar estes dois e, dando um passo atrás, esperei discretamente, numa parte mal iluminada do bar, que a loira desfilasse por mim. Saí para a luz e tirei o telemóvel do bolso. Tinha de encontrar o Lúcio. «O seu saldo não lhe permite efectuar esta chamada, bla, bla, bla». É tramado não ter dinheiro. E agora? «Ó jovem! Jovem!» Fui acordado pelo bartender, que acenava e chamava por alguém, um pretenso jovem, que, supostamente, se encontrava na mesma direcção que eu. Era a segunda vez que me acordavam naquele bar. Olhei em volta e, com ar inquisitivo, virei um dedo para mim próprio. «Sim, sim, você! Venha cá!» Curioso por saber o que quereria o tipo, dirigi-me ao balcão. «Teria o Lúcio bazado sem pagar?» Ocorreu-me, assim, inesperado e alheio à minha vontade, este pensamento, reflexo, com certeza, da sova que levaria do segurança, consequência de quase não ter um tusto no bolso para pagar champanhe e aguardente velha. Chegado ao balcão, com ar hesitante, o sujeito (ele, também, um gorila gigante, que mais facilmente passaria por segurança do que por bartender) leu-me os pensamentos, sorriu e disse que não me preocupasse, «eu cá me entendo com o doutor, não se preocupe. Tome.» De debaixo do balcão, sacou as chaves do meu carro e entregou-mas, «o doutor deu-mas e disse-me para lhe dizer que está à sua espera em frente ao governo civil, na rua de cima». Balbuciando um agradecimento, ao qual o fulano replicou com um monocórdico «de nada», rodei nos calcanhares e dirigi-me para a saída. De repente, o meu telemóvel tocou, estridente, mas não o suficiente para se sobrepor à música. Saí, passei pelo segurança sem olhar, vesti o casaco e olhei para o visor luminoso do aparelho, que acusava o nome do Lúcio. Decidi pregar uma partida ao meu caro amigo:

- ‘Tou?
- Onde estás, meu?
- Isso digo eu, sacana, fugiste com o meu amor, fugiste com o amor da minha vida! – gritei, cheio de uma falsa raiva, gozando o prato enquanto sentia um silêncio pesado e desconfortável instalar-se no outro lado da linha. Tapei o bocal, ri em silêncio (reparei que o segurança também sorria, à porta, percebendo o meu esquema) e, em esforço, continuei: – ‘Tou, Lúcio, tás aí? Meu, vem buscar-me, ‘tou à porta do 23. Onde ‘tá o carro?
- ‘Tá onde o deixaste, meu melro, onde querias que estivesse?
- Ok... Er... Já vou, melhor ainda, anda cá ter, vem buscar-me!
- Não posso, meu caro, estou ocupado. – respondeu. ‘Tá quieta, miúda, não toques nisso, entra para dentro do carro! – ouviu-o dizer. Parecia que a ruiva ainda estava com ele. - Hel, meu, vem ter aqui ao governo civil e mexe-te!
- É mesmo ao lado do São Car…
- Sim, mesmo ao lado do São Carlos, mexe-te, que tenho um doce para ti!
- Foda-se, Lúcio, tu e as tuas surpresas maradas, estou a caminho. - Desliguei e sorri ante a surpresa do Lúcio, que já começava a adivinhar. Que se lixasse o dia seguinte e a Teresa! Só era jovem uma vez e esta noite apresentava uma oportunidade única.

Comecei a caminhar na direcção oposta ao governo civil, tinha de ir buscar o R7, tinha de ir buscar a chocolateira. Chegado ao local, enfiei-me no carro, saí do estacionamento e com o pé pesado no acelerador, galguei os metros que me separavam do governo civil. Quase a chegar, evitei mesmo à justa um enorme buraco, um dos muitos que decoram a baixa, e quase arranquei o espelho a um Volkswagen Miura, estacionado uns bons metros atrás do R6 do Lúcio. Travei a fundo ao lado do R6, uma paragem perfeita enfeitada por chiar de pneus e temperada com o subtil aroma a borracha queimada, abri o vidro, assomei à janela e espreitei para dentro do carro, «Então, Lúcio, esse doce é para hoje ou para amanhã?», perguntei num tom meio carregado de ironia, meio carregado de cumplicidade. Sem responder, levou a mão ao bolso do casaco e devolveu-me a carteira, ao mesmo tempo lançando-me aquele olhar cúmplice, um olhar que desenvolveramos entre nós ao longo de muitos anos de convivência, a plantar batatas e a colher couves, um olhar que não queria dizer nada, mas que, ao mesmo tempo, queria dizer tanta coisa, permitindo-me a janela de tempo necessária para mergulhar nos olhos verdes da ruiva uma vez mais. Ela devolveu o olhar e fixou nos meus olhos os dela, numa luta para ver quem os desviava primeiro.

- Hel!
– Lúcio chamou-me e perdi a guerra de olhares. – ‘Bora, meu? – Mirei o Lúcio de alto a baixo e constatei que, apesar de sempre beber com profissionalismo, o meu amigo estava com os copos. Ainda por cima, já instalara a ruiva nos estofos em pele do seu R6 novinho em folha topo de gama.
- Lúcio, achas que estás em condições de conduzir? – perguntei, expressando uma preocupação sincera pelo meu amigo.
- Tenho de estar, não é? O carro não se conduz sozinho até Cascais! – respondeu, sarcástico.
- Claro, meu, claro, estou só a dizer que não devias arriscar, visto que estás com o teu carrinho novo e quê… se bates, é um desastre, o teu pai vai foder-te o juízo, e que és irresponsável, e que és um bêbedo. Porque não me deixas levar o teu carro? Levas o meu, também não se perde muito se lhe acontecer alguma coisa.

Percebi que a dúvida se instalara no espírito do meu amigo. Enquanto reflectia nas minhas palavras, voltei a mirar a ruiva, mas ela parecia absorta no seu próprio mundo.

- Ok, Hel, podes experimentar o meu brinquedo novo, mas cuidado, puto, nem um risco, tu tem cuidado! – avisou, paternalista, como se tivesse tirado a carta há dois dias.
- Lúcio, sou eu, estás a falar comigo. – comprimiu os lábios, algo que fazia quando concedia a vitória numa discussão, ainda duvidoso da sua derrota e ciente de que saíra a perder da situação. A ruiva não se mexeu para mudar de carro. «Estou mesmo atrás de ti, lead the way», disse-me. Trocámos as chaves num aperto de mão e metemo-nos nos carros. Eu no R6, o belo do R6, a cheirar a novo, travões ABS, direcção assistida, ar condicionado, estofos em pele e uma mulher deslumbrante sentada neles. O Lúcio entrou no meu carro e deu à chave. Por meu lado, podia jurar que o seu rosto espelhava uma certa nostalgia, talvez por voltar a conduzir um carro tão velho. Afinal, antes do R6, nos tempos da faculdade, conduzia uma banheira não muito diferente da minha. Virou-se para mim, «Como é, vamos?»