Acordei tarde, deveria passar das dez. Tomei um duche, fiz a barba e mentalizei-me de que tinha de lavar a louça de ontem antes de me pôr a beber. Mas, antes disso, ainda de pijama, fui à mercearia e comprei cinco garrafas de cerveja. Voltei para casa, lavei metade da louça e, como prémio, mandei duas abaixo. Então, desci ao quintal, fui ver como estavam os gatos, passei no senhor Augusto, tomei um café, e vim acabar o que faltava: uma série de copos que gamara algures e uma catrefada de talheres sujos da véspera. Quando terminei, bebi as cervejas que haviam sobrado.
Olhei para o sol e verifiquei que eram quase horas de almoçar e ainda não comera nada. Mas estava bem disposto. Tomei mais um duche, enxuguei-me, vesti uma camisa de Verão, perdi mais de uma hora à procura das chaves do carro – tenho sempre a mania de as esconder de mim próprio quando chego perdido de bêbado a casa, desta vez estavam no interior da caixa da sanita – e, então, de óculos escuros, arranquei em direcção ao bar do Ferro.
Chego ao bar quando batem as duas da tarde. Não está cá mais ninguém, só eu e o Ferro, o que é sempre bom porque assim tenho tempo para o “amaciar”. Vemos televisão e jogamos às damas. O Ferro não gosta de perder às damas e – como sabe que quanto mais bebo pior jogo – fia-me logo uns dois ou três vodkas. Depois é sempre a abrir. Bebo sem parar e o Ferro parece feliz cada vez que aponta no seu livrinho mais uma dívida minha.
Após meia dúzia de derrotas e de uma inédita vitória sinto-me contemplativo e pergunto-me do porquê de o Ferro, aparentemente, gostar de fiar álcool - às pessoas em geral - e a mim em particular. Será o Ferro judeu? Será que é porque sabe que eu pago sempre e assim tem-me sempre na mão? O Ferro é um tipo estranho, mas, ao quarto ou quinto vodka fiado, apenas me parece ser a pessoa mais generosa do universo.
Entretanto, chegou o Sr. João. É um cabo-verdiano que ganhou a lotaria o ano passado e que, desde então, como não sabe o que fazer ao dinheiro, esbanja-o no álcool e nas piores companhias possíveis. Aproveito que madruguei para lhe cravar cinco contos. Acabou de ir ao banco e ainda não se encontrou com ninguém. O pior é que exige sempre um preço pelos cinco contos. É um homem ligeiramente enfadonho, o Sr. João. Na sua companhia o tempo passa devagar, está sempre a queixar-se, ou disto ou daquilo e, como na verdade empresta-me sempre guita, sou forçado a escutá-lo pacientemente.
Nisto são cinco horas da tarde e perdi todo o interesse. Despeço-me com um até já, enfio-me no carro e regresso a casa. Deixo-me cair na cama e adormeço logo. Acordo com mau hálito, a boca seca e constato, para meu desgosto, que já é noite. Não sei que horas são nem tenho relógio, mas isso não me preocupa. Tomo o terceiro duche do dia, abro uma lata de sardinhas e uma garrafa de bagaço empoeirada, que ficara esquecida pelo anterior inquilino a um canto da dispensa.
Cozo as sardinhas enlatadas e também um esparguete que comprei há dias. Não sabe lá muito bem, esqueci-me de juntar sal, mas o bagaço não é mau de todo. Quando acabo, atiro os pratos para o lava-loiças, onde depois faço a barba e lavo os dentes. Calço os sapatos e arranco, desta vez a pé, outra vez até ao bar do Ferro.
Só agora me lembro de que não mudei de camisa desde que acordei e reparo com desgosto que ela está toda amarrotada. Já estou a meio caminho, mas resolvo voltar para casa. No regresso, pergunto as horas e fico a saber que passa das dez da noite. Não é mau de todo.
Chego a casa e dispo a camisa. Aproveito e dou mais uns goles de bagaço, só para ganhar forças. O bagaço descontrai-me e deixa-me sonolento. Ponho uma cassete do José Mário Branco e aqueço café numa chaleira velha e suja. O café sabe-me bem, quase como se fosse uma beberagem exótica e a música ainda me anima mais o espírito. Desligo tudo, visto uma camisa pasada a ferro e saio para a rua. Já é tarde e resolvo ir de carro para poupar tempo.
Chego à rua do bar do Ferro e não tenho sítio para estacionar. Não há problema, estaciono em segunda fila. Vem logo um tipo perguntar-me se não quero nada e eu, só para não parecer indelicado, compro-lhe um conto de haxixe. Entro no bar e o Ferro, que observou a transação de esguelha, não parece satisfeito. Cumprimento-o, saco de uma das notas que me sobrou do empréstimo do Sr. João e peço whisky.
Bebo a noite toda. Já não sei quantos whiskies bebi. Umas gajas meteram-se comigo e fumámos umas ganzas – haxe delas, que o meu é privado e só o comprei para não parecer antipático. O tempo passa lento até que há uma rixa. Dois mauzões que, ao que parece, têm maus vinhos. Mas a diversão termina com um abraço patrocinado pelo Olívio, um cigano de meia idade que por vezes me parece demasiado íntimo do Ferro, quase como se o Ferro tivesse medo dele.
A música volta a fluir e o álcool também. Estou quase a ir-me embora, quando aparece o Miguel Ângelo, um tipo engraçado que, ao contrário do Ferro, gosta de jogar xadrez. Jogamos duas partidas. A primeira vence ele, a segunda eu. Combinamos o desempate para outro dia, contamos a guita que nos sobra e acabamos a cravar mais dois vodkas ao Ferro.
É quase uma da manhã e malta está toda a bazar. O Miguel Ângelo pergunta-me se não quero ir com o pessoal ao Lux, mas, então, saída de um taxi, chega a Bibi. Vem sozinha. Digo aos gajos para se irem embora, «bazem, bazem», e fico só eu, o Ferro e a Bibi.
A Bibi é a mulher mais sexy que conheço. É alta e elegante. Tem cabelos ruivos, compridos e os olhos azuis, penetrantes e inteligentes. Usa mini-saia e fica-lhe bem. Aqui há dias estivemos a beber juntos e depois dei-lhe um linguado que me me valeu uma estalada, mas não me arrependi. Parece ausente, hoje. Que merda a Bibi estar a entrar num mundo de onde acabo de sair. Convido-a para beber um vodka, ela aceita e pergunta-me logo se não tenho droga. Respondo que não uso disso e ela sai porta fora. O Ferro tinha ido à arrecadação e, no regresso, estranha a ausência dela. Quando me olha, compreende.
São duas da manhã e estamos a jogar às damas. Perco o quinto jogo consecutivo. O Ferro está tão feliz que até me oferece um último whisky e se disponibiliza para me estacionar o carro em frente ao tasco e me levar a casa no dele.
Recuso, educadamente. O Ferro intima-me a fazer o quatro. Respondo-lhe que só os ébrios o fazem e, desejando-lhe boa noite, saio, entro no carro, ligo o motor, aceno-lhe e disparo para casa.
...
Acabo de estacionar à minha porta. A Antena 1 informa-me que são quatro da manhã. Está alegre, o locutor. Demasiado alegre. Demasiado superficial. Fecho o carro, abro a porta do prédio, subo as escadas e entro em casa. Senti-me tentado a fazer como de costume, senti-me tentado a fazer uma barulheira tremenda e com isso acordar a vaca da octagenária que mora no andar debaixo. Sei lá porquê, hoje não me apetece. Ligo a aparelhagem e levo com as últimas palavras da música do JMB. Sou diferente dele, penso. O meu nome não é artístico, nem eu tenho talento de artista. Sou apenas um gajo a quem os pais (ou melhor, o meu pai, visto que a minha mãe morreu ao dar-me a vida), puseram o nome de Jorge.
Tenho 32 anos e não sei o que vou fazer. Os meus dias são assim. De casa para o bar do Ferro, do bar do Ferro para casa. Será que vale a pena? «É claro que vale a pena», diz-me uma voz que não reconheço.
Sou o Jorge Braga Melo. Tenho 32 anos e não sei o que ando aqui a fazer. E é assim que eu vivo os meus dias. É assim que os dias passam por mim – É assim que eu vivia, era assim que eu era - antes de Matilde.