26.12.07

Após chegar

Casara-se com ele. Logo após o acidente dele. A presença imanente da morte tocara-a a tal ponto que resolvera, nesse preciso dia, unir os seus destinos com os dele. Teriam sido os meses arrastados do internamento e reabilitação dele? Quando a amara e dependera dela? Porque motivo continuava a sentir-se enjaulada nele?

Não o sabia.

Pensamento 2007

Cocaine. Have you ever fucked on cocaine, Nick?.. It's nice.

Catherine, em «Basic Instinct».

25.12.07

O caroço

Dedicado a: Filipe
Agradecimentos: Manuel, por algumas boas ideias

Chegou, finalmente, o Natal! Uma vez mais, a casa torna-se quase irreconhecível no meio de tanta brilhante decoração e a árvore ofusca com a quantidade de luzes que a ornam. Daniel não o consegue evitar: uns dois meses antes, e já o seu espírito muda, decora a casa, sente-se, porquê exagerar?, mais feliz. Diana, sua mulher, apesar de apreciar a lufada de ar fresco que a disposição do marido traz à casa nesta época festiva, todos os anos se admira de como é possível ver um homem já quase nos seus cinquentas ganhar a vitalidade e, sobretudo, o brilho nos olhos que nos acostumamos a ver apenas nos anos de inocência das crianças, mas que a vergasta da idade acaba por escurecer. Todos os anos se admira e todos os anos bendiz essa característica do marido. Já os filhos, que dizer? Mesmo os filhos mais velhos, ainda adolescentes, parecem ficar esgotados com o excesso de energia e com o espírito natalício do pai. Apenas a bebé não tem problemas em acompanhar a pedalada de Daniel.
É mais uma ceia de Natal! Os pais de Daniel chegaram há umas horas e não tardaram a começar a resmungar um com o outro; como sempre, o velho Alfredo quer beber e a sua mulher lembra-o, incessante, de como a sua saúde já não o permite meter-se em tais empreitadas; a mesa está posta, a comida na mesa, o vinho já aberto, respirando, e libertando os seus convidativos vapores; a lareira crepita, mas o seu calor, embora agradável, não é necessário para que toda a família se sinta aquecida. Já com todos sentados à mesa, o diálogo e o riso não tardaram a desenrolar-se, Daniel lançou instintivamente mão à sua entrada predilecta: azeitonas; pegou numa, mas não a comeu, antes ficou a olhá-la com um ar desconfiado, ainda que tentado a lançá-la à boca e a esquecer o assunto. É que, nem todos os Natais de Daniel são sempre assim tão pacatos.

Fora no ano passado que toda esta cena se repetira: família reunida, mesa recheada, alegria. Daniel, ao comer uma azeitona, entre as gargalhadas próprias da boa disposição e as tentativas frustradas para a engolir, foi incapaz de cuspir o caroço e engasgou-se. Não deu por nada, apenas percebeu que, de súbito, ficara sem ar e incapaz de falar enquanto à sua volta o jantar decorria sempre animado.
Diana...

Daniel ouvia as suas próprias tentatias desesperadas para falar, mas ninguém parecia reparar na sua aflição. Foi só quando o seu rosto rosado começou a ficar pálido é que Diana saltou da cadeira em seu auxílio.

- Daniel? Daniel!? O que é que tens?

Caroço… Não consigo respirar!

A voz de Daniel era nítida na sua mente, mas a sua boca não produzia nem um som, apenas os seus olhos esbugalhados de terror pareciam suplicar por ajuda. O alegre bater de talheres e as risadas cessaram e um silêncio sufocante encheu a sala, só a voz de Diana, e, em apenas alguns segundos, sucederam-se as exclamações de pânico ao redor de Daniel.

- Ai, Meu Deus! Ele está engasgado! Engasgou-se, engasgou-se! – gritou Rosa, a mãe de Daniel, num súbito instante de compreensão. Toda a família acorreu: os pais aconselhavam Diana a bater nas costas de Daniel, os filhos tentavam ajudar a mãe e acalmar os avós, Diana, atingida pela súbita onda de pânico, batia aflita nas costas do marido e só a bebé observava com um ar curioso a correria da família.

- Com mais força, bate com mais força! – bradava Alfredo.
- Já estou a bater com toda a força!

- Vou chamar o Sr. Francisco, o vizinho, ele é enfermeiro! – anunciou de repente o filho mais velho.
Em escassos longos segundos, regressou com Francisco, um jovem enfermeiro que vivia na casa ao lado com a namorada. Entraram de repente na sala e todos os olhos se viraram suplicantes para o anunciado salvador, as suas preces a ele dirigidas. Francisco, os olhos raiados de sangue, as pálpebras inchadas e os modos lentos, contemplou por um breve instante a cena e, ao aperceber-se, com um choque, da situação de Daniel, apressou-se em seu auxílio.
- Afastem-se, afastem-se! Preciso de espaço! – sem demora e em movimentos de um profissional, ergueu Daniel da cadeira segurando-o por trás e, fazendo várias vezes pressão no seu peito, conseguiu, para os suspiros imediatos de alívio da família, obrigar Daniel a cuspir o caroço de azeitona.
- Ai, Jesus, que ainda me sinto mal! – exclamou Rosa, sentando-se no sofá.
Daniel tossiu, e foi recuperando a cor, a pouco e pouco, os olhos pareciam voltar voluntariamente às órbitas. Daí a alguns momentos, proferia as primeiras palavras perdidas entre arquejos de alívio. – Obrigado, Francisco… obrigado…
- Ai, Daniel, Daniel, o susto que nos pregou a todos!
A família acorreu a Daniel entre agradecimentos a Deus e a Francisco. Tudo voltara à normalidade…

Este ano, Daniel olha para a azeitona e contempla a mesa: os talheres batem numa festa só deles, os risos viajam pelo ar e multiplicam-se, a comida desaparece magicamente dos pratos, a satisfação e a felicidade estampada no rosto da família, criando uma melodia de tal sabor!
Mas… mas, Daniel gosta tanto de azeitonas: aquele fruto de um sabor único, tão perfeito a olhar para ele, a apelar à sua gula! Irresistível!

Heh… - pensou Daniel, ao lançar despreocupadamente a azeitona à boca e mastigando-a com gosto - que seria da vida sem algum risco!

23.12.07

Feliz 2008



Ora cá estamos, quase véspera de Natal, afirmando os valores decisivos. Sim, os valores, aquilo porque lutamos - e aquilo porque nos defendemos.

Em jeito de lamiré, se fossemos políticos, o PNR seria de Esquerda e Salazar um funcionário de gabinete.

Somos conservadores, tutelares, selectivos, truculentos e acreditamos na superioridade da raça - da que fazemos parte, isto é.

A moral serve o interesse do mais forte e os mais fortes somos nós. Contudo, também logramos permitir-nos a magnitude, a condescendência e o reconhecimento.

E é nesse estado de espírito que a equipa de O Lado Negro da Lua me elegeu para vos desejar, com o pedido de que sejam felizes, os votos de um feliz Natal e a tentação de um óptimo, de um excelente 2008.





Have fun. You only live once and even if it hurts when you shit, remember, it means you are alive.

17.12.07

Ruão, Cornualha



Hoje aprendi uma data de coisas novas. Entre outras que há uma terra chamada "Ruan" que fica na Cornualha. (Sim, eu sei que não sabem onde é, mas não se preocupem, é um sítio giro e quando tiverem oportunidade façam o favor de se informarem, se não desejarem ir muito longe há até uma aventura dos Famous Five que se passa lá).

Sempre pensei que "Ruan" fosse uma referência a Ruão, uma famosa cidade francesa. Aliás, em francês, "Ruan" é "Ruão" em português. Mas, no caso em apreço, não podia ser, pelo menos a acreditar numa escritora que conheci, traduzi e "aprendi sobre" hoje. Não podia ser porque "Ruan" fica a norte de "Altringham", uma outra cidade bonita no condado de Chester, Inglaterra.

O que é isto interessa? Muito. No meu caso particular pode ser a diferença entre ter euros no bolso e não ter. Para vós, e, para mim ainda, interessa porque me deu um banho de humildade. Aqui estava eu armado em esperto (Ah, tou a ver, Ruan é Ruão em França) quando não era coisa nenhuma. As aparências desiludem e quem julga que sabe tudo muitas vezes não sabe nada. Algo que todos nós, por vezes, esquecemos.


Foto via Promenade du Feu

Lets get this show on the road

Nove da manhã, dor de cabeça monumental, barba por fazer, dentes manchados de vinho tinto. Toca a acordar, é segunda-feira e ainda há pouco me disseram: If you look good, and you talk well, people will swallow anything.

Esta é para Braga

Sem inspiração e quase a cometer suicídio*, tu foste uma amiga. Esta música é para ti.



* literário, claro.

14.12.07

Pensamento da noite


São 10 e 10 da noite e o tabaco vai aumentar. É óbvio que nada tenho a ver com isso. Se o tabaco aumenta o problema não é meu, nem será, suponho, um problema que vos aflija por ai além. É chato, isso, não deixa de ser verdade, mas conjuga-se na perfeição com outras medidas contra a liberdade do fumo recentemente anunciadas.

Escrevo tudo isto porque ontem à noite sonhei com a Catalina Pestana. No sonho, armado com o meu mastro incomensurável, destruia-lhe o rabo. Mas, por incrível que possa parecer-vos, ela gozava, gozava que nem uma louca. Será que a Catalina é pedófila?

Pedir o quê?..

"A norma não passa de um dialecto armado com uma pistola."


C. Gouveia, prof. e linguísta.

Lúcido, sinto-me lúcido



Para além da saúde e do dinheiro, na vida poucas mais coisas me interessam: whisky de malte, amigos de carne e osso, imagens sem som.


PS - E talvez um cigarro para rir ajude.

13.12.07

Frágil, sinto-me frágil



Deixam-me perplexo mulheres a quem ouça falar de “construir” uma relação, na justa medida em que uma relação, não sendo um T2 com vista para o mar, não se constrói; inicia-se, desenvolve-se e termina. É só depois de vivida que a relação pode ser vista como “construção”, como “coisa”, nunca antes.

Esse detachement em relação ao processo amoroso, e consequente estratégia de poder pelo método da cenoura, que observo patente em mulheres dos 20 aos 40 anos, enquanto o mesmo processo (não) decorre, assusta-me e, confesso, por vezes arrrepia-me.

9.12.07

Pensamento da noite

"If you cannot convince them, confuse them."
Harry Truman

6.12.07

A faculdade e a bosta


Tenho-me deparado com um curioso incidente nestes últimos dias quando chego à faculdade. Parece haver um aumento exponencial da quantidade de bosta que invade a calçada em frente do edifício principal e isso preocupa-me. E, atenção, não se trata de uma simples e inocente bosta de caniche ou de outro sabujo qualquer; trata-se de grandes e extremamente fedorentos pedações de bosta de cavalo. Daqueles que colocam em sério perigo o calçado do português comum. Um professor poder-lhe-ia chamar aumento do ratio de dejectos por metro quadrado. Eu chamo-lhe merda, mas, por outro lado, eu não sou professor e nem ambiciono ascender a tal cargo. Não sei ensinar, nem tenho o dom da oratória. Porque puxo assuntos de merda como este? Bem, honestamente, não sei. Acho que não tenho realmente nenhum assunto interessante sobre o qual escrever. Ou daí talvez tenha. Talvez apenas não me apeteça, ou simplesmente não saiba como expressá-los. Sim, é mais ou menos por aí. Nos últimos tempos, tenho sido assolado por fortes ondas de não-criatividade escrita. Pronto, pronto, admito, mesmo criativo não sou um Saramago (ufa!), nem um Eça. Mas, pergunto-me porquê? Estarei a ficar mais burro à medida que avanço nos meus anos de ensino? E que raio de algaraviada é esta que estou para aqui a escrever? Será criativo? Ou não será melhor do que a bosta dos cavalos da GNR que patrulham a faculdade numa busca incessante e esperançosa por alunos possuidores de estupefacientes, quais cães de fila? E porque é que me sinto tão mal, hoje!? Porque é que me sinto mal!? Preciso urgentemente de alterar o estado de consciência… Fortunately, God took pity on Man and invented whisky (and He saw that it was good) ou, em português, uísque. Naturalizações da merda! Bem, acho que é isso por hoje e talvez por algum tempo. Se calhar da próxima trago-vos mesmo um assunto relevante. Não sei… Vai depender da quantidade de bosta que amanhã encontrar no passeio...


Where u going baby?



Escrever para ti. Pediste que escrevesse para ti e aqui estou, a fingir que te escrevo. Parto do princípio que saibas que porque não te posso escrever vou ter que ir às putas. Na verdade, não te queria escrever. Queria apenas estar contigo. Falar contigo. Nem sequer quero ir para a cama contigo, só quero falar contigo, brincar contigo, desejar felicidade aos nossos amigos contigo. Só isso e acabou-se. Não te digo nem mais uma palavra nem que essa comece por Alentejo.

Espírito destrutivo



Toda a gente anda à procura da salvação. Todos nós. É uma pena não a encontrarmos na areia nem nos nossos passos perdidos (bela metáfora) nem no whisky derramado. Tu, Teresa, sim, tu, minha amiga, minha melhor amiga, tu foste a minha última hipótese de salvação. Ora foda-se. Vou mas é assinar a petição contra o acordo ortográfico.

PS- Esta foto tem direitos de autor.

5.12.07

Uma punheta a quatro mãos e um cigarro lambido de vodka

Faz um frio do caraças e eu estou a deitar ácido pela boca. Deve ser do glicol do radiador. E daí não. Deve ter sido do raio do osso buco que me impingiram no talho à saída de Dresden, como se se tratasse de fillet mignon dos bifes guisados pelos aviões aliados, e que a vaca da Ana envenenou de propósito com especiarias de Alguidares de Baixo para me ver assim, meio verde, meio roxo, a deitar ácido pela boca e a rezar a todos os meus santinhos para que isto passe – depressa.

É uma chatice. É quase tão chato como esta falta de verdade nas coisas que escrevo. Por falar nisso, o panzer está finalmente devidamente aprovado e cheio de carburante, mas as condições atmosféricas não permitem que lance a ofensiva que o fuhrer me encomendou. O que também é uma chatice, mas, como diria o meu anjo, chatice por chatice, antes o 25 de Abril.

Porra, não paro de vomitar a bílis, o nevoeiro não se dissipa, nem a música me convence dos seus atributos, nem a fuga sabe a nada a não ser a isto mesmo que vos digo e que não percebem porque não podem perceber: a fuga não sabe a nada a não ser a vodka russo envenenado com especiarias de Alguidares de Baixo e uns pozinhos de 25 de Abril à mistura.

É. Foi a cabra da Ana, foi a cabra da Ana, a operadora de rádio russa que me persegue desde Birmingham, sempre a direccionar os panzers dos inimigos na minha direcção, de certeza que é ela.

Já cozinhou o osso buco só para mim, visto que todos os outros estão mortos, espalhados pelo caminho, algures lá atrás, parece que só resto eu, ando a fugir desde Birmingham, Alabama, e a contar com o carburante no depósito do panzer só vou parar nas ilhas Fiji, se é que isto parará alguma vez.

Nada funciona nesta puta deste panzer. Nem sequer o sacana do 88, que nos safou tantas vezes, pelo menos enquanto o Adérito, o major, ainda era vivo. Depois ele morreu, e a seguir dele morreu o Jesus, o radiotelegrafista, e depois o Buda, o cabo, o condutor, e não sobrou ninguém para carregar o 88 e eu, para além de comandante deste panzer tive de acumular com as funções de condutor e desde kharkov que não fazemos outra coisa que não seja fugir da artilharia pesada russa, porque nada funciona neste panzer, nada de nada, ou melhor, pelo menos as lagartas e o motor ainda trabalham.

A suspensão partiu-se depois de ter passado em Kharkov e o rádio só dá a Ana desde Varsóvia. Em breve não terei para onde fugir, mas isso não me incomoda, a fuga tem um dinâmica própria e, como uma droga, traz-me entorpecido. Não, espera, isso é um livro que estou a ler.

Ah, sim, agora é que este post começa. Leram bem, cambada de idiotas? Deitem fora as escopetas, bando de cretinos! É inútil, todos os vossos esforços são em vão, até os meus, quanto mais os vossos. Chega!

Pois, é só agora que este texto começa.

Tudo tem de começar nalgum sítio, e este texto não é excepção; começa aqui e não antes ou depois - é aqui que começa porque é aqui se dizem coisas importantes. Importantes como o cabelo ruivo da Bibi, ou importantes como o amarelo do bafo da Carla, ou como o cor-de-rosa da … da Júlia e não se fala mais nisso.

É aqui que começa e só eu sei onde acaba, ou melhor nem eu sei onde acabará, porque não me apetece deitar-me a adivinhar e faz frio fora do panzer e enquanto o motor trabalhar estarei vivo, embora tenha quase a certeza de que me enganei no caminho, mas isso não vem para o caso. Onde será que me perdi? Onde será que os sonhos ficaram pelo caminho. Onde será que a morte se instalou. O fuhrer também está morto – dizem.

A estrada está cheia de buracos e de lama, cai uma chuva miudinha e um nevoeiro espesso cobre tudo com o seu manto branco. Até parece que estamos em Murmansk. Como naquela história que li num romance de cordel e onde entrava uma tipa loura chamada Luísa.

Abro a escotilha e recebo na cara o vento frio do norte. Dá-lhe gás, Adérito! Carrega o 88, Jesus! Só paramos na Lua, Buda! Só paramos na Lua! A guerra é nossa! Nós somos a guerra!

E tu, Luísa, tu, dá-lhes os teus cabelos ruivos, e dá-lhes uma punheta a quatro mãos, dá-lhes isso mesmo, assim que pararmos, assim que o panzer ficar sem gasolina – antes de morrermos. Dá-me uma boa punheta a quatro mãos e um cigarro lambido de vodka, dá-me isso, pois haverá, para um soldado como eu, algo de mais belo no mundo do que aquilo que só tu me podes dar?...