25.12.07

O caroço

Dedicado a: Filipe
Agradecimentos: Manuel, por algumas boas ideias

Chegou, finalmente, o Natal! Uma vez mais, a casa torna-se quase irreconhecível no meio de tanta brilhante decoração e a árvore ofusca com a quantidade de luzes que a ornam. Daniel não o consegue evitar: uns dois meses antes, e já o seu espírito muda, decora a casa, sente-se, porquê exagerar?, mais feliz. Diana, sua mulher, apesar de apreciar a lufada de ar fresco que a disposição do marido traz à casa nesta época festiva, todos os anos se admira de como é possível ver um homem já quase nos seus cinquentas ganhar a vitalidade e, sobretudo, o brilho nos olhos que nos acostumamos a ver apenas nos anos de inocência das crianças, mas que a vergasta da idade acaba por escurecer. Todos os anos se admira e todos os anos bendiz essa característica do marido. Já os filhos, que dizer? Mesmo os filhos mais velhos, ainda adolescentes, parecem ficar esgotados com o excesso de energia e com o espírito natalício do pai. Apenas a bebé não tem problemas em acompanhar a pedalada de Daniel.
É mais uma ceia de Natal! Os pais de Daniel chegaram há umas horas e não tardaram a começar a resmungar um com o outro; como sempre, o velho Alfredo quer beber e a sua mulher lembra-o, incessante, de como a sua saúde já não o permite meter-se em tais empreitadas; a mesa está posta, a comida na mesa, o vinho já aberto, respirando, e libertando os seus convidativos vapores; a lareira crepita, mas o seu calor, embora agradável, não é necessário para que toda a família se sinta aquecida. Já com todos sentados à mesa, o diálogo e o riso não tardaram a desenrolar-se, Daniel lançou instintivamente mão à sua entrada predilecta: azeitonas; pegou numa, mas não a comeu, antes ficou a olhá-la com um ar desconfiado, ainda que tentado a lançá-la à boca e a esquecer o assunto. É que, nem todos os Natais de Daniel são sempre assim tão pacatos.

Fora no ano passado que toda esta cena se repetira: família reunida, mesa recheada, alegria. Daniel, ao comer uma azeitona, entre as gargalhadas próprias da boa disposição e as tentativas frustradas para a engolir, foi incapaz de cuspir o caroço e engasgou-se. Não deu por nada, apenas percebeu que, de súbito, ficara sem ar e incapaz de falar enquanto à sua volta o jantar decorria sempre animado.
Diana...

Daniel ouvia as suas próprias tentatias desesperadas para falar, mas ninguém parecia reparar na sua aflição. Foi só quando o seu rosto rosado começou a ficar pálido é que Diana saltou da cadeira em seu auxílio.

- Daniel? Daniel!? O que é que tens?

Caroço… Não consigo respirar!

A voz de Daniel era nítida na sua mente, mas a sua boca não produzia nem um som, apenas os seus olhos esbugalhados de terror pareciam suplicar por ajuda. O alegre bater de talheres e as risadas cessaram e um silêncio sufocante encheu a sala, só a voz de Diana, e, em apenas alguns segundos, sucederam-se as exclamações de pânico ao redor de Daniel.

- Ai, Meu Deus! Ele está engasgado! Engasgou-se, engasgou-se! – gritou Rosa, a mãe de Daniel, num súbito instante de compreensão. Toda a família acorreu: os pais aconselhavam Diana a bater nas costas de Daniel, os filhos tentavam ajudar a mãe e acalmar os avós, Diana, atingida pela súbita onda de pânico, batia aflita nas costas do marido e só a bebé observava com um ar curioso a correria da família.

- Com mais força, bate com mais força! – bradava Alfredo.
- Já estou a bater com toda a força!

- Vou chamar o Sr. Francisco, o vizinho, ele é enfermeiro! – anunciou de repente o filho mais velho.
Em escassos longos segundos, regressou com Francisco, um jovem enfermeiro que vivia na casa ao lado com a namorada. Entraram de repente na sala e todos os olhos se viraram suplicantes para o anunciado salvador, as suas preces a ele dirigidas. Francisco, os olhos raiados de sangue, as pálpebras inchadas e os modos lentos, contemplou por um breve instante a cena e, ao aperceber-se, com um choque, da situação de Daniel, apressou-se em seu auxílio.
- Afastem-se, afastem-se! Preciso de espaço! – sem demora e em movimentos de um profissional, ergueu Daniel da cadeira segurando-o por trás e, fazendo várias vezes pressão no seu peito, conseguiu, para os suspiros imediatos de alívio da família, obrigar Daniel a cuspir o caroço de azeitona.
- Ai, Jesus, que ainda me sinto mal! – exclamou Rosa, sentando-se no sofá.
Daniel tossiu, e foi recuperando a cor, a pouco e pouco, os olhos pareciam voltar voluntariamente às órbitas. Daí a alguns momentos, proferia as primeiras palavras perdidas entre arquejos de alívio. – Obrigado, Francisco… obrigado…
- Ai, Daniel, Daniel, o susto que nos pregou a todos!
A família acorreu a Daniel entre agradecimentos a Deus e a Francisco. Tudo voltara à normalidade…

Este ano, Daniel olha para a azeitona e contempla a mesa: os talheres batem numa festa só deles, os risos viajam pelo ar e multiplicam-se, a comida desaparece magicamente dos pratos, a satisfação e a felicidade estampada no rosto da família, criando uma melodia de tal sabor!
Mas… mas, Daniel gosta tanto de azeitonas: aquele fruto de um sabor único, tão perfeito a olhar para ele, a apelar à sua gula! Irresistível!

Heh… - pensou Daniel, ao lançar despreocupadamente a azeitona à boca e mastigando-a com gosto - que seria da vida sem algum risco!