5.12.07

Uma punheta a quatro mãos e um cigarro lambido de vodka

Faz um frio do caraças e eu estou a deitar ácido pela boca. Deve ser do glicol do radiador. E daí não. Deve ter sido do raio do osso buco que me impingiram no talho à saída de Dresden, como se se tratasse de fillet mignon dos bifes guisados pelos aviões aliados, e que a vaca da Ana envenenou de propósito com especiarias de Alguidares de Baixo para me ver assim, meio verde, meio roxo, a deitar ácido pela boca e a rezar a todos os meus santinhos para que isto passe – depressa.

É uma chatice. É quase tão chato como esta falta de verdade nas coisas que escrevo. Por falar nisso, o panzer está finalmente devidamente aprovado e cheio de carburante, mas as condições atmosféricas não permitem que lance a ofensiva que o fuhrer me encomendou. O que também é uma chatice, mas, como diria o meu anjo, chatice por chatice, antes o 25 de Abril.

Porra, não paro de vomitar a bílis, o nevoeiro não se dissipa, nem a música me convence dos seus atributos, nem a fuga sabe a nada a não ser a isto mesmo que vos digo e que não percebem porque não podem perceber: a fuga não sabe a nada a não ser a vodka russo envenenado com especiarias de Alguidares de Baixo e uns pozinhos de 25 de Abril à mistura.

É. Foi a cabra da Ana, foi a cabra da Ana, a operadora de rádio russa que me persegue desde Birmingham, sempre a direccionar os panzers dos inimigos na minha direcção, de certeza que é ela.

Já cozinhou o osso buco só para mim, visto que todos os outros estão mortos, espalhados pelo caminho, algures lá atrás, parece que só resto eu, ando a fugir desde Birmingham, Alabama, e a contar com o carburante no depósito do panzer só vou parar nas ilhas Fiji, se é que isto parará alguma vez.

Nada funciona nesta puta deste panzer. Nem sequer o sacana do 88, que nos safou tantas vezes, pelo menos enquanto o Adérito, o major, ainda era vivo. Depois ele morreu, e a seguir dele morreu o Jesus, o radiotelegrafista, e depois o Buda, o cabo, o condutor, e não sobrou ninguém para carregar o 88 e eu, para além de comandante deste panzer tive de acumular com as funções de condutor e desde kharkov que não fazemos outra coisa que não seja fugir da artilharia pesada russa, porque nada funciona neste panzer, nada de nada, ou melhor, pelo menos as lagartas e o motor ainda trabalham.

A suspensão partiu-se depois de ter passado em Kharkov e o rádio só dá a Ana desde Varsóvia. Em breve não terei para onde fugir, mas isso não me incomoda, a fuga tem um dinâmica própria e, como uma droga, traz-me entorpecido. Não, espera, isso é um livro que estou a ler.

Ah, sim, agora é que este post começa. Leram bem, cambada de idiotas? Deitem fora as escopetas, bando de cretinos! É inútil, todos os vossos esforços são em vão, até os meus, quanto mais os vossos. Chega!

Pois, é só agora que este texto começa.

Tudo tem de começar nalgum sítio, e este texto não é excepção; começa aqui e não antes ou depois - é aqui que começa porque é aqui se dizem coisas importantes. Importantes como o cabelo ruivo da Bibi, ou importantes como o amarelo do bafo da Carla, ou como o cor-de-rosa da … da Júlia e não se fala mais nisso.

É aqui que começa e só eu sei onde acaba, ou melhor nem eu sei onde acabará, porque não me apetece deitar-me a adivinhar e faz frio fora do panzer e enquanto o motor trabalhar estarei vivo, embora tenha quase a certeza de que me enganei no caminho, mas isso não vem para o caso. Onde será que me perdi? Onde será que os sonhos ficaram pelo caminho. Onde será que a morte se instalou. O fuhrer também está morto – dizem.

A estrada está cheia de buracos e de lama, cai uma chuva miudinha e um nevoeiro espesso cobre tudo com o seu manto branco. Até parece que estamos em Murmansk. Como naquela história que li num romance de cordel e onde entrava uma tipa loura chamada Luísa.

Abro a escotilha e recebo na cara o vento frio do norte. Dá-lhe gás, Adérito! Carrega o 88, Jesus! Só paramos na Lua, Buda! Só paramos na Lua! A guerra é nossa! Nós somos a guerra!

E tu, Luísa, tu, dá-lhes os teus cabelos ruivos, e dá-lhes uma punheta a quatro mãos, dá-lhes isso mesmo, assim que pararmos, assim que o panzer ficar sem gasolina – antes de morrermos. Dá-me uma boa punheta a quatro mãos e um cigarro lambido de vodka, dá-me isso, pois haverá, para um soldado como eu, algo de mais belo no mundo do que aquilo que só tu me podes dar?...