Lembras-te, devias ter um oito anos e eu cinco, fomos ao circo pela mão do nosso avô, tu explicaste-me o mundo dos palhaços, o que era um tigre, como eram parvos os macacos, e que um urso me comia, mas a ti não, porque eras grande e forte e o matavas antes dele conseguir dizer viva o Porto?
Lembras-te do que nos divertimos nesse dia?
Lembras-te, as primeiras férias que passámos em Caminha, ainda antes de abrir o parque de campismo da Gelfa, ali em Vila de Âncora, e todos os Verões que por lá vivemos, a praia de parte da manhã, o almoço na Madalena e as tardes a jogar xadrez? A avó fazia iscas de bacalhau e farinha de pau e papas de sarrabulho e avô falava sobre um alemão que se chamava Brecht, ou qualquer coisa assim, lembras-te?
Lembras-te, já tu tinhas tido o teu primeiro amor, daquela célebre corrida contra o primo Emílio, quando o avô nos contrabandeou até à linha da meta, na bagageira do carro, e ganhaste gelados para ti e para mim?
Lembras-te, das férias em Peniche, do Forte, da música «it's rainning again» no jukebox, do bilhar e do primeiro cigarro que fumámos juntos, o avô que quase nos apanhava?
Lembras-te, dos tempos em tu já eras jornalista e eu andava a caminho de o ser, das nossas longas noites a discutir filosofia política, o jornalismo, a metafísica e os outros assuntos mundanos, a altas horas da noite, quando chegavas da rádio, no quarto que ambos partilhávamos no Porto?
Lembras-te, muito mais tarde, eu estava a passar a 25 de Abril, tu telefonaste e disseste, com a voz metálica que a rádio te dera: «A avó morreu» e eu quase me matei nesse dia, porque não compreendia e não podia compreender?
Lembras-te, quando foi a vez do avô, o primo Emílio deu-me dez contos para a mão, peguei em ti e no Goncas e a seguir ao funeral levei-vos a beber um copo em memória do velhote e tu acusavas-me, já não sei bem do quê, e o Goncas fez a paz entre nós e demos aquele abraço e quase chorámos?
Lembras-te, quando continuámos o negócio do velho Fernando, fizemos sociedade e depois a vida negra um ao outro e a famíla se pôs a envenenar e nos detestámos como nunca o tínhamos feito?
Não, é verdade que não te lembras. Não te podes lembrar, não é?
No outro dia, vinha eu de viagem e falava sobre ti, sobre essas dias da nossa juventude, quando a tua tia, minha mãe, me telefonou a confirmar que não te podias lembrar, a confirmar que nunca mais te lembrarias.
A puta da morte tinha-te saqueado a memória, assim, sem mais, nem quarenta anos tu tinhas ainda. É estúpido. Tão estúpido que ainda hoje, três semanas ou mais depois o estúpido da coisa não me abandonou. Estás morto. É tão simples quanto isso, mas, ao mesmo tempo, não é nada simples.
Eu lembro-me, dois dias após esse telefonema, lá estava eu, à tua campa, com os outros, os que por cá ficaram, bem mais pobres, tristes, infelizes, a dizer-te adeus, a pensar que se calhar não é bem assim, que se calhar até é verdade que ainda nos voltamos a ver e a pensar que nada disto faz sentido nenhum, a pensar que tenho tanta pena de ter andado chateado contigo nos últimos anos, a pensar que há mais de três anos que não queria saber de ti e a recordar que até ficara intimamante satisfeito quando me disseram que ultimamente tinhas tido uns problemas profissionais.
Pois.
A pensar no cabrão que fui e que sou. E sobre isso, nada a fazer. Até sempre Nuno Miguel. Eu sei que nunca gostaste que te chamasse assim. Gostavas mais do teu nome de guerra, não é? NCF, o primeiro jornalista português a entrar em T após a invasão. Foste triturado pelos gajos do Parlamento quando regressaste, mas enfim, tinhas tido os tomates para lá ires, enquanto eles, refastelados no conforto da Pátria, debitavam umas lérias sobre o sofrimento dos nativos. Os filhos da puta. Aliás, essa história continua muito mal contada e se eu fosse outro gajo era tipo para por tudo em pratos limpos por ti, mas não o sou e isso a ti, se calhar, já nada adianta.
Histórias antigas, é o que isto é, meu primo, meu irmão.
Faz-se tarde. Desde que te foste, passei a beber menos. Ando triste. Por um lado, digo às pessoas, «antes ele do que eu», por outro, estou triste porque só agora percebo a falta que me fazes. E assim é a vida. We win some, we lose some, in the end we all die. Até sempre, rapaz, dorme bem, dorme um sono leve e solto e descansado. Se possível, sonha. Sonhos bonitos. Se possível ainda, sonha comigo, sonha com aquele miúdo a quem ensinaste a dizer «merda prós cabrões que nos lixam!». Sonha com aquela criança que era o teu compincha, o teu cúmplice e o teu companheiro. Eu, por mim, não preciso de sonhar, pois nunca te esquecerei.
PS - Esta foto é para ti. Suponho que o Goncas não se oporá a isto. É a foto da mão dele com a sua filha, a tua prima. Quando a Martha for grande, se eu ainda for vivo, vou contar-lhe sobre ti, vou dizer-lhe que o primo Nuno era um homem com H grande.