18.9.07

Negócio de família


O carro cinza atravessa a estrada degradada, rasgando a tempestade e resistindo com dificuldade à força da chuva. Os limpa pára-brisas trabalham freneticamente para cá e para lá numa tentativa de manter nítido o caminho tortuoso e esburacado. Em baixo, o rio galopa veloz, alimentado pela força do vento e pela chuva que fustiga a ribanceira. É um caminho perigoso, mas não se pode dar ao luxo de ter um encontro imediato com a polícia. O coração de Ricardo explode no peito a cada metro percorrido pelo automóvel e a cada pulsação parece querer saltar para fora. O choque e a surpresa estão espelhados nos olhos e o corpo apenas conduz o carro por instinto. Toda a sua atenção está centrada na enrascada em que está metido e no seu melhor amigo, sentado a seu lado. Tem de fazer este último favor pelo amigo... pelo irmão. Se Gabriel quer desaparecer, assim seja, e Ricardo não porá em causa o motivo... nem mesmo o método. É tarde demais para isso. Só lhe resta cumprir o pedido. Mas, como?

Ricardo fora despertado nessa madrugada pelo toque do telemóvel. Do outro lado da linha, a voz de Gabriel soara seca e arrastada, como se fosse a voz de outro homem que partisse do amigo. Um único pedido fora feito: Ricardo devia ir, sem perder mais um segundo, a casa de Gabriel, dirigir-se à cave e lá encontraria o resto das instruções. A chave estava debaixo do tapete da entrada. «Se és meu amigo, vem. Em breve, compreenderás.» Depois, a chamada terminara e Ricardo ficara sentado na cama sem saber o que pensar de tudo aquilo. Gabriel era mais do que um amigo, era como um irmão. Se precisava de ajuda, se estava metido nalgum sarilho, Ricardo iria em seu auxílio imediatamente.

Arrancou a toda a velocidade para casa do amigo.

Ele conhecia bem a vida de Gabriel. O pai era um tipo importante no mundo do crime: tráfico, lavagem de dinheiro, extorsão. Tudo com um negócio de fachada impecável e à prova de bala. Um tipo polivalente com jeito para a coisa. Gabriel acabara por se envolver naquele mundo, mas nunca escondera ao amigo o desejo de sair e de ter uma vida normal com a família. Infelizmente, não fora para isso que o pai o criara. Gabriel conseguira até à altura manter a mulher na ignorância, mas não sabia até quando. Era uma questão de tempo até descobrir… não era parva nenhuma. Queria sair antes que fosse tarde.

As luzes da casa estavam apagadas e tudo parecia estar calmo. A mulher e os filhos tinham ido passar uns dias a casa da sogra de Gabriel. A casa estava lugubremente deserta. O céu coberto de nuvens negras e ameaçadoras engolia a rua mal iluminada e o silêncio apertava o peito de Ricardo. Que se passaria? Não perdeu tempo em divagações inúteis. Saiu do carro, pegou na chave de casa e entrou em passo apressado, avançando de imediato para a cave. Lá fora, algumas gotas começavam a cair e o primeiro trovão não tardou a anunciar a sua fúria. Desceu as escadas que davam para a cave e acendeu a luz. Gabriel esperava por ele. A trave do tecto mal suportava o peso do corpo suspenso por uma corda. O rosto azulado estava quase irreconhecível: os olhos vermelhos saltavam das órbitas e a boca frouxa revelava a língua pendente. Enforcado. Ricardo contemplou esta cena macabra, incrédulo, até reparar no bilhete sob os pés do cadáver do melhor amigo. A mensagem era breve. Gabriel falara abertamente com o pai. Expusera o seu desejo de deixar aquela vida e seguir o seu caminho. O pai mostrara o seu desagrado e chegara mesmo a ameaçar-lhe a família se o filho abandonasse o «negócio». O irmão mais novo avisara-o de que o pai tentaria algo contra si. Ele sabia do que o pai era capaz. Gabriel só encontrara uma maneira de salvar a família. Morrer. Esperava enganar o pai com este golpe desesperado e conservar alguma da sua honra encobrindo o suicídio. A tarefa de Ricardo era simples, mas estava longe de ser fácil: ninguém podia saber do suicídio, a sua morte devia parecer um acidente. Pelo bem da sua família. «Desculpa, não quero deixar este fardo ao meu irmão. Não sei como reagiria. Só tu podes fazê-lo.»

E, agora, o carro fura pelo temporal, estremecendo com a força do vento. A estrada revela-se a cada clarão dos relâmpagos, seguidos pelo rugido ensurdecedor do trovão. Que raio de noite para morrer! «Merda, Gabriel, de todos os dias… logo com este temporal! E agora!? O que é que queres que eu faça? Como é que vou fazer o que me pediste?» Ricardo desviou o olhar para Gabriel por um instante e o despiste foi imediato. A estrada em más condições e a fúria do temporal derrubaram o carro para a ribanceira, que caiu fora de controlo no breu da noite e em direcção à impetuosidade do rio, começando a afundar-se rapidamente.

Ricardo recuperou os sentidos apenas para constatar que o automóvel estava a ficar inundado e para antever, lívido, o pára-brisas começar a ceder com estalos lentos, rachando em vários pontos com o peso da água, até rebentar no seu rosto desesperado.

Poucos dias depois, os jornais anunciavam a recuperação de dois cadáveres presos dentro de um automóvel, no rio. Um deles era o filho de um poderoso empresário. A autópsia revelara que este já estava morto antes do acidente. Suspeitava-se do outro ocupante.

Vítima de homicídio ou de um simples acaso, Gabriel obteve a morte desejada.

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- Leu o jornal de hoje, pai?
- Li, sim. … Já sabia que aconteceria algo do género. Sempre foi um desesperado.
- Era isto o que pretendia!?
- O teu irmão estava a ficar demasiado instável. Era imperativo tomar uma medida quanto a essa situação. Esperava apenas que fugisse como o cobarde que é… era… poupou-me a maçada.
- Maçada!? Quando liguei ao Gabriel, como me pediu, esperava apenas afastá-lo de tudo isto! Pensava que era para o bem dele!
- E foi. Foi o melhor para ele… e para todos nós.
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- Lembra-te, meu filho, nada nem ninguém é mais importante do que o negócio da família.