A casa ardia no andar de cima, a loira e o sabugo que espancara Ariel precipitaram-se para dentro da porta e logo a seguir ouvi tiros, uma fuzilaria tremenda, era o inferno de Dante a dobrar, aqueles doidos estavam a matar-se uns aos outros lá dentro e no andar de cima só chamas, chamas já no telhado. Levantei-me e gemendo enfiei o indicador no botão da bagageira. Não estava trancada e levantou-se, abrindo-se sem esforço. Agora era preciso método, rápido, puxar o tapete, puxar o tapete, lá estavam os documentos, lá estava o telemóvel! Desligado, pois claro, ligar o telemóvel, é preciso método, não sentia o braço, amarrar o braço ao corpo com uma toalha que tinha na bagageira, ai, já está, método, ligar o telemóvel, merda, não tem bateria!
Que fazer agora? As chamas alastravam rapidamente, todo o andar de cima ardia. Tão rápido como começara o tiroteio parara, só se ouviam as chamas a crepitar e de repente um, dois homens saíram disparados a correr da casa, caramba, o da frente era o barman do 23, era o matulão do 23 que vira a falar com a puta da Telma, o de trás não sabia, os dois corriam na minha direcção e mergulhei outra vez no chão, foda-se, estava a tornar-se um hábito, ai o braço, a tempo de os ver pelo canto do olho espavoridos a entrarem no carro estacionado à frente do R6, um chiar de pneus, o portão a abrir-se, o carro deles, grande, feio, a derrapar e a desaparecer, o portão a fechar-se na traseira do carro, era automático, só podia, o fumo por toda a parte, só se ouvia o crepitar das chamas e sem saber como corri para a frente, aterrei junto da moça, à porta da casa, não se ouvia mais nada, só o fogo, e ela abriu os olhos a custo, as pálpebras todas amachucadas…
Lúcio?.. O Lúcio veio?.. Desculpe, desculpe Lúcio… Calma miúda, calma, vou safar-te daqui, vou safar-te daqui, disse-lhe com uma doçura que até a mim me espantou, afaguei-lhe o rosto pisado, céus, que estupidez, como era lindo o cabelo dela, sustive a sua cabeça no meu colo, que quadro ridículo o nosso, ela toda partida, eu com o braço amarrado com uma toalha ao corpo, a acariciar-lhe o cabelo com a mão livre e ela desculpe Lúcio, desculpe e eu chiu bebé, chiu, tem calma, o tio Lúcio vai safar-te, vais ver, um sorriso triste no seu rosto e então fechou os olhos e desmaiou.
Encostei o ouvido ao seu nariz e senti que a miúda ainda respirava, Ariel ou Maria, coitada, estava em muito mau estado e ainda assim a pedir desculpas! Mas ia sobreviver, tinha de sobreviver. Levei a mão ao bolso do casaco, saquei da garrafa de uísque que trouxera do R7, desarrolhei-a, abri-lhe a boca, tapei-lhe o nariz e despejei uma boa porção, certificando-me de que engolia, engasgou-se e tossiu com a bebida, mas conseguira trazê-la de volta. Lúcio, o Lúcio veio… Calma bebé, calma, aguentas-te?.. Sim, aguento… O microfilme, ainda tem o microfilme? Despi o casaco e com este improvisei um travesseiro. Chiu miúda, chiu, aguenta mais um pouco, o tio Lúcio já vem, vais para o hospital querida, espera.
O microfilme, o microfilme que pus na sua mala, ainda o tem?.. Pisquei o olho e sorri-lhe, não fazia patavina do que ela estava a dizer. Sim, tenho, descansa, e ela sorriu-me de volta e fechou os olhos, gemendo. Ergui-me. Eram só labaredas dentro da casa, estava mesmo à porta, tinha que a tirar dali mas, antes, tinha de ir até dentro da casa, ver o que se passava naquele inferno, ver ser ainda podia salvar o Hel e apesar dum súbito arrepio de medo avancei na mesma, o Hel de certeza que estava ali e tinha de o encontrar, com fogo ou sem fogo. Decidi-me, entrei para dentro da casa, tropecei e caí mais uma vez, porra, mesmo em cima do braço! Esqueci o braço porque caíra para cima de Telma, estava de olhos abertos, esbugalhados, só que tinha um buraquinho na cabeça e dele escorria um fio de sangue, parecia espantada, estava espantada pela morte, pois é, o pesadelo nunca mais acabava, era só fumo, tossi, puxei a ponta da toalha a tapar a boca e o nariz, ergui-me, fumo por toda a parte, caminhei às cegas e dei comigo enrodilhado num par de pernas, era o gajo, o porco que quase matara a Ariel-Maria, cheio de sangue, a balbuciar salve-me, salve-me, cabrão. Não pensei duas vez e despejei-lhe pontapés no rosto ate se calar, tossia por todos os lados estive quase para desistir, os pulmões ardiam-me virei costas e aí ouvi uma voz fraca e débil, a chamar, uma voz que conhecia bem, Lúcio, Lúcio, aqui, Lúcio! Virei-me e lá estava ele, deitado no chão e avancei mais um passo, dois, três, era o Hel.
Não consigo mexer-me Lúcio, tossiu, fumo, cada vez mais fumo, não consigo, vou puxar-te pá, tem calma, anda, sobe para as minhas costas, anda, vá, tossimos os dois, anda, vamos, merda, anda, anda e ele sobe para as minhas costas, o meu braço está arder, vou contornando o inferno de corpos e fugindo das chamas com o Hel às minhas costas até cair junto de corpo de Ariel com os pulmões desesperados a sugar pelo ar fresco da manhã.
Rolei para o lado, puxei-o para mim e perguntei-lhe, tossindo, ofegante: Hel, estás bem? Hel? E el tossia também, desesperado por ar puro. O calor aproximava-se, um calor infernal, ainda não estamos safos, não isto vai tudo desabar, ainda não estamos safos.
A minha perna Lúcio, a minha perna… Calma, levanto-me de novo, arrasto-o para a frente, para longe das chamas e ele a gritar. Já volto, calma! Regresso, puxo por Ariel, deposito-a junto do Hel e caio de joelhos. Ela está bem, Lúcio?.. Calma miúdo, sim, vamos a ver essa perna primeiro. Tem uma mancha de sangue na perna esquerda, junto ao joelho. Foderam-te a rótula pá, mas estás com sorte, se fosse na artéria femoral… Ele ri e tosse, também está num lindo estado e então, por sua vez, desmaia. Num estrépito tremendo sinto a casa ruir por completo, pasto das chamas e do fumo e ao longe ouço sirenes, sim, sirenes, já não era sem tempo.
Respiro fundo, saco da garrafa e deito-a abaixo numa só golada. O fogo está a extinguir-se por si próprio, estamos safos. Os meus meninos dormem, um ao lado do outro, nem sei o que parecem. Estou preocupado com o Hel, a mancha de sangue alastra no joelho da calça. As sirenes estão cada vez mais perto até que sinto carros e vozes do lado de lá do portão. Eles arrombam o portão, vou até lá, certifica-me de que é mesmo a cavalaria. De repente o portão cai e um bombeiro acerca-se de de mim, o senhor está bem, está bem? Digo que sim e aponto com a mão livre para os corpos da ruiva e do Hel, peço por uma ambulância, trouxeram ambulância? Quase que a adivinhar o meu pensamento um carro do INEM entra no pátio a alta velocidade seguido duma viatura da polícia. Ora até que enfim que chegaram, grito para o bófia que corre para mim, Quem é o senhor, como é que isto aconteceu, está ferido? Chamo-me Lúcio Ferro, senhor agente, bato a pala com a mão livre, sou do gabinete da secretária de Estado da Administração Interna, o que os demorou? E ele desconcertado, chama por um médico, preciso de um médico aqui, este está a delirar. Entra mais um carro dos bombeiros e mais uma ambulância. O Hel e a ruiva estão a ser enfiados em macas, pergunto para a médica que se ocupa do meu braço se vão safar-se, ela diz-me para ter calma (que piada), diz-me que tem de pôr um colar cervical e eu desato à gargalhada até mais não e então a médica começa a esbater-se, sinto-me liberto, tenho uma médica do INEM bem gostosa toda de volta de mim, apetece-me apalpá-la mas já não tenho mais forças, acabou-se, deixo que me deitem numa maca e resvalo por meu turno para o reino da inconsciência.
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