16.1.09

Ariel - XI


«Cala-te puta, cala-te sua puta de merda!» E a Ariel, era a Ariel, a miúda que engraçara com o Hel, novinha, tão novinha para andar metida no ataque, a Ariel de rojo pelo chão, convulsiva, cheia de medo, sentia o medo dela e sentia a força descomunal do gorila a arrastá-la, eu conhecia aquele gajo, tinha a certeza de que o conhecia, não me lembrava era de onde, mas tinha a certeza de que o conhecia, espera, já sabia, aquele gajo topara-o por mais duma vez no Ministério, a entrar e a sair do gabinete da Secção 10 – operações especiais, contra-terrorismo, pentotal de sódio, chantagem, tortura e outros negócios escusos, aquele manfio era bófia, bófia da pesada, sussurrava-se no Ministério à boca pequena das atrocidades da Secção 10 e quase fui abaixo do cipreste só do espanto mas, meio a saltar e meio a escorregar aterrei do lado de lá da vedação, num baque surdo, a uns trinta metros deles, com um dos braços ao contrário, crack, ai, estava, ai, estava, merda, cala-te cabrão, cala-te Lúcio, estes porcos matam-te se te sonham aqui e é se não fizerem pior, estes suínos são da Secção 10, são maus, cuidado, ai, a dor, ai, silêncio Lúcio, ai, tenho o braço partido, de certeza, ai, fecha os olhos rapaz, pensa na tua mãe e cala-te meu grande filho da puta, cala-te e aguenta, ai, aguenta!
Fechei os olhos e aguentei. A dor era lancinante, pavorosa, tive de fazer um esforço sobre-humano para não gritar, para não gemer, enrolei-me todo e de repente não senti mais nada no braço, só um calor do outro mundo. Nem sequer já doía, mas estava a ferver, a ferver como se me tivessem largado fogo ao braço e o calor espalhava-se por todo o corpo. Puxei por todas as energias que me restavam, a adrenalina saltou-me da pele como se uma bomba de hidrogénio e num segundo as pernas semi-ergueram-se e pus-me de cócoras a afagar o meu braço latejante, que inchava, inchava cada vez mais.
«Fala puta, fala! Onde está o porco do Lúcio? Quem é este pirralho com quem te caçámos? Como te chamas, vaca? Fala, despeja tudo antes que dê cabo de ti! Mata-me, mata-me, sou a Ariel, a Ariel de nome profissional, Maria de baptismo e quero lá saber, Lúcio não sei quem é e o outro de quem tu falas é muito mais homem do que tu alguma vez serás, sacana!»
Uma bofetada a zunir no ar. Um grito. Outra bofetada à mão cheia e mais outra e mais outra ainda e pontapés no estômago e gemidos e sangue a escorrer dos lábios para as pedras do chão de granito. Dor, medo, dor.
Eu parado, anestesiado, como num filme negro, só que agora já não era noite e a neblina dissipava-se. Os primeiros raios de sol inundavam o pátio de pedras, de pedras de granito, eu junto à vedação, em cima de pedras de granito, também eu com medo, medo por mim, medo pelo Hel, onde estava o Hel? E medo daquele pulha que estava a dar cabo da ruiva, estava a dar cabo dela, o cobarde, e eu com o braço partido, sem ser capaz de fazer nada, que merda, que merda horrível esta em que me tinha metido.
Tentei fundir-me com o chão. Não ia ser caçado, pelo menos ainda não, tinha de fazer-me invisível, tinha de… Tinha de fugir, tinha de fugir, tinha de fugir para o meu R6, lá estava o R6, claro que o R6 estava mesmo ali, a um minuto, dois minutos a gatinhar, não mais do que isso, tinha de ir até ao R6, tinha de ir ao telefone que estava escondido junto com os documentos, o meu telemóvel estava por baixo do tapete da bagageira do R6, eu a e a minha paranóia do secretismo, louvei-me nesse momento por causa disso, lembrei-me do meu chefe no Ministério, «Lúcio, agora que é quase Natal, deixe-me dizer-lhe que, na nossa profissão, ser engenheiro agrónomo tem mais a ver com esconder coisas do que com plantar couves.» Merda para o Ministério e para o meu chefe, eu e a mania de esconder as coisas que aqueles cabrões do Ministério me haviam ensinado, era só nisso que pensava, no telemóvel escondido junto com os documentos dentro da bagageira do R6 e a dor que se instalara outra vez, mas tinha de ser, tinha de ser, tinha de gatinhar até ao R6 e meti-me ao caminho sem pensar mais no assunto, para grandes males grandes remédios, tinha de ser.
Olhei para trás. A Ariel, a jovem aspirante a puta, estava deitada numa poça de sangue, ao que parecia inconsciente. Era corajosa a miúda. Que enxerto de porrada levava, mas não falara, se bem que pouco tivesse para dizer, pelo menos a meu respeito, não me conhecia de parte alguma. A nuca do cobarde suava, enquanto ele lhe continuava a arrear uns últimos pontapés extraviados, Deus, como suava a nuca do gajo, brilhava contra os primeiros raios de sol da manhã, o cobarde brilhava como se fosse um anjo vingador!
Cheguei ao R6. Parei, exausto, cheio de dores, completamente fodido, não ia conseguir, nada feito, estou morto, chamo-me Lúcio, Lúcio Ferro, sou engenheiro agrónomo de formação, sou um fracassado a todos os níveis, nem sequer consegui casar, fiz-me um bêbado dado a mulheres fáceis e apenas graças aos bons ofícios do meu pai é que arranjei um tacho no Ministério da Administração Interna, oficial de ligação entre o gabinete do secretário de Estado e o do director do SIS, Serviço de Informações de Segurança.
O meu pai é milionário, eu só penso em divertir-me ou fingi-lo e só lido com material altamente classificado para o qual me estou a borrifar, coisas de que ninguém sabe, as tais coisas que assustariam os bons pais de família e fariam urinar os professores se delas alguma vez soubessem, coisas que meteriam medo ao vulgo todo em geral mas que a mim me aborrecem, me aborrecem talvez por ser filho de quem sou e por isso me estou nas tintas para o Ministério e para o meu chefe e mais ainda para as couves e ainda mais para as sementeiras.
Estou a ir-me embora. Estou a ir-me embora. Estou num campo lavrado, estou a deitar sementes à terra. Geometria, gramática, tão bonito, a gramática das plantas.
Mas aquela miúda ruiva ali está a morrer e estou com dores no braço. Merda, ela está a morrer, aquele porco que me cumprimentou, toda borboleta, uma vez, lembro-me disso, até fiquei maldisposto, todo borboleta, todo panasca, de passagem no corredor do Ministério que dá para a Secção 10, o sabugo delicodoce está a matá-la, e acho que é por causa de mim, é por causa de mim sim, não posso morrer, tenho de a salvar, tenho de salvar o Hel, o Hel, o que lhe estarão a fazer nem quero pensar, tenho de mexer-me, tenho de mexer-me, tenho de trazer ajuda.
Estou junto do R6. Escondido atrás dele. Não sinto o braço. Faz-me lembrar quando era miúdo e o fracturei a jogar à bola. Quem é aquela gaja que apareceu à porta? É a puta do 23. Pois, é tal da Telma, a vaca que me queria bater uma punheta. Que faz ali? Está feita com o outro, só pode ser. Nada a fazer da minha parte, só com uma mão não consigo abrir a bagageira. Não consigo, mas tenho de conseguir, vou conseguir, vou conseguir e vou chamar a cavalaria, o porco da Secção 10 puxou pela Telma para dentro da casa, estão na beirada da porta e discutem, parecem alterados, irritados, há uma luz diferente e saltam para a rua espavoridos, fogo, há fogo na casa! O R6, tenho de abrir a bagageira, tem de ser!