Trancada! Merda! Por mais que rodasse a maçaneta, a porta permanecia inamovível. Dei-lhe um murro para, em seguida, me arrepender, sentido as articulações dos dedos doridas. Impaciente, pus-me a andar às voltas no quarto, tentando congeminar uma saída desta enrascada, com passos de frustração fazendo ranger a madeira do quarto do segundo andar. A minha cabeça atingia picos de dor lancinantes, para, em seguida, cair numa dormência tranquilizadora. Que puta de mania a minha de tentar acompanhar o Lúcio quando saíamos juntos, à noite. Nunca aguentei muito o álcool, sobretudo no estômago. Deixei-me cair, pesadão, sobre o colchão velho e bafiento, escutando a queixa das molas quebrar o silêncio pesado. Tentei limpar a cabeça, pensar numa solução, elaborar um plano. Era preciso chegar à polícia, evadir-me, descobrir em que paragens parava a ruiva… Ana, Anita, A… não me lembrava. Encontrar o Lúcio. Tudo acções essenciais, não necessariamente por esta ordem. Suspirei. Por onde andaria o Lúcio? Provavelmente, estava agora a acordar, a cabeça a rebentar, na minha casa. Sorri. O mais certo é que tivesse tido um encontro imediato com a minha prima, que partilhava a casa comigo. Pus-me a pensar nele. Apesar de muito diferentes e dos anos que nos separavam, sempre o vira como a personificação de algo que poderia vir a ser; tinha, pelo menos, várias características que admirava: era desenrascado, eloquente, extrovertido. Enfim, um complemento destes traços em mim atrofiados. Partilháramos muito nestes últimos anos, o bom e o mau. Tinha defeitos, mas um sentido de lealdade e de rectidão para com os amigos compensava quem o conhecia bem. Orgulhava-me de ser uma dessas pessoas. Levantei-me da cama, antes de cair na tentação de me deitar e fechar os olhos, nem que fosse por um instante. Em três passos rápidos, dirigi-me até à janela, afastei o farrapo que servia de cortina e deixei o sol matinal inundar a divisão, queimando-me as retinas. Nada melhor para acordar. Ok, e, agora, método. Primeiro passo: fugir. Espreitei pela janela uma vez mais. Lá estava ele, o carro, para lá da vedação que se elevava, circundando a velha vivenda. E era o meu carro, tinha a certeza. Sem a chuva a toldar-me a vista, avistava-o claramente. No andar de baixo, os sacanas não o deviam conseguir ver. E só uma pessoa tinha a chave: o meu caro Lúcio. Se ele estava lá fora, não me deixaria ficar mal. Ganhando novo alento, e ainda observando o exterior, com a testa sobre o braço encostado ao vidro da janela, franzi a fronte num esforço supremo de sobrepor o raciocínio à demência alcoólica da noite passada. Levei a mão ao bolso para ver do que me podia servir: trocos, um isqueiro, um recibo do bar, um cigarro... Hm, e porque não? De vez em quando... Levei o cigarro à boca e acendi o isqueiro. Nada. Voltei a tentar repetidas vezes, apenas para apanhar o fulgor da faísca. Estava gasto. Não… Espera… Ei-la! Acendi o cigarro e deixei-me hipnotizar, por breves segundos, pela chama bruxuleante. Dei duas longas passas quentes. Tossi ruidosamente. Decididamente, era um vício que não entendia. De repente, fez-se luz! Já sabia como escapar. Ou, pelo menos, assim pensava. Encostei o ouvido à porta e escutei. Estaria alguém do lado de lá? Estaria algum dos gorilas de guarda ao quarto? Bati ao de leve. Escutei. Nada. Bati com mais força e, então, o som característico de uma cadeira a ser arrastada, um ranger de madeira sob passos desajeitados e pesados e uma voz rouca e agressiva. «Pouco barulho aí dentro!» Voltei a bater. A porta abriu-se de rompante e quase me desequilibrei para a frente. Recuei um passo. «O que é que foi? Não gostas da suite? Queres que te dê o tratamento especial da casa?» Estalou as articulações dos dedos e riu ruidosamente, mas não se moveu do umbral da porta na minha direcção. «Não se come nada neste tasco?» Perguntei com o tom de voz mais natural do mundo, com uma calma que nem eu conhecia em mim. «Não se come nada nes…?» Retorquiu o outro, mirando-me com as sobrancelhas erguidas, voltando a rir longa, roucamente. «O príncipe quer comer? Ah! Ah! Ah! Descaramento não te falta, puto. A tua sorte é que o chefe ainda te quer dar uma palavrinha ou duas». Cuspiu as palavras, de repente, com uma expressão de pedra. Sem outra palavra, e soltando ainda gargalhadas estridentes para o ar, saiu e bateu a porta. O som da chave a rodar ecoou, pesado, pelo quarto. Fiquei especado um momento. Hm... portanto, se eu batesse, alguém me ouviria. O meu plano era arrojado, contudo, simples. Perigoso, ainda assim, com possibilidades de êxito. Ia incendiar o quarto e bater como um louco na porta. O que disse o outro?: «o chefe precisa de te dar uma palavrinha» ou algo do género? Ou seja, precisam de mim vivo, pelo menos, por enquanto, para quê?, não sei, mas não planeava ficar por estas bandas por muito tempo para descobrir, provavelmente, da pior maneira possível. Peguei em tudo o que pudesse servir para atear uma bela fogueira: fronha, lençol, almofada… Deixa ver, um cobertor bafiento… Que se dane, também o colchão. Isto deve animar as coisas. Acendi o isqueiro e rezei para que se aguentasse só mais um pouco. Depois de muita paciência e esforço, lá consegui, coloquei alguns dos farrapos, que começavam agora a arder, junto da porta, para o fumo sair pela pequena fresta, deixei o resto num canto, começando a atear e, sorrindo, previa já o caos. Então, comecei a gritar e a bater na porta. Nada. Fiz mais estardalhaço. Comecei a tossir. Passos! Apressados, pesados, nervosos. Era o gajo que estava de atalaia à minha porta! «Que raio!?» Ouvi do outro lado a voz estupefacta. «Abre a merda da porta, depressa!» Gritei, num pânico que começava a tornar-se real. A porta escancarou-se e vi o vulto por entre o fumo. Era agora! Peguei numa das pontas do lençol, que ainda não tinha sido devorada pelas labaredas, e atirei-o para a cara do brutamontes, que se começou a debater num pânico frenético e a perder o equilíbrio. Corri em direcção a ele e, com uma placagem magistral, derrubei-o. Atravessei o umbral. Livrou-se dos farrapos em chamas, levantou-se, ainda atordoado, e eu, aproveitando o momento de confusão, empregando todas as minhas forças no punho direito, terminei a nossa conversa com um gancho, que o derrubou de vez. Instintivamente, baixei-me e tirei-lhe a arma do coldre. De repente, estaquei, com os olhos esbugalhados. Do bolso de dentro do casaco, caíra um objecto, metálico, brilhante, reluzente. Um distintivo! Peguei nele. PJ! Agora é que não percebia nada. Voltei a mim, as labaredas começavam a consumir todo o quarto. Olhei em volta num frenesi, os olhos correndo de cá para lá nas órbitas, procurando um caminho, uma porta, uma saída. Estava livre, estava armado e a lidar, pelos vistos, com agentes da autoridade. Ora, foda-se! A ruiva! Ana, Anita, A… Ariel! Era isso! Onde estava ela?, tinha de a encontrar. Não podia abandoná-la numa casa em chamas. Merda de escrúpulos! Num esforço hercúleo, ergui-me. As pernas tremiam-me, mas era preciso recuperar o sangue frio, custasse o que custasse. Sentia que a minha fuga só agora começara e que a parte difícil ainda estava para vir.
15.1.09
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