Acordei estremunhado, com um bafo de largar fogo, as unhas cheias de terra, a cara toda porca, com uma mistela irreconhecível colada ao cabelo, lama, os olhos vermelho fogo no espelho retrovisor e uma dor lancinante, terrível, dançando-me no cérebro, do hemisfério esquerdo para o outro, e de regresso e outra vez para lá, sentado, ao menos, a tentar ver para além da névoa que se instalara, já era dia, era dia e não estava nada bem, nada bem. Então arrotei.
Liguei a luz. Não era o meu carro, era o R7 do Hel.
Sim, já me recordava de tudo. Lentamente, é certo, mas já me recordava de tudo, até porque, como de costume, o que havia para recordar era só asneira, asneira atrás de asneira e mais ainda, como sempre.
Respirei fundo.
Levei a mão ao bolso do casaco e encontrei um maço de cigarros sem filtro tão amarrotado que poucos sobravam fumestíveis. Levei um aos lábios, só que não encontrava lume e, impaciente, reflecti, enquanto tossicava, que estava todo fodido, tinha os pulmões lixados, tinha frio no corpo e a minha cabeça era uma chispalhada alcoólica sem fim à vista e a continuar a fumar era para morrer; por isso, poisei o cigarro no lugar do morto ao meu lado, espreguicei-me, com uma indolência forçada e deu-me vontade de foder, mas não havia gaja alguma por perto, era quase dia, estava um frio enregelante, um nevoeiro dos diabos, essa é que era essa, recordava todo o tempo uma mulher ruiva, cabelo de fogo, seios de mísseis, pernas de bailarina, olhos verdes de tentação lânguida, vozinha atrevida, como quem quer festa e julga que está a falar com lategos e os lategos a embebedá-la sem ela dar fé. Linda, bonita, conversadora, otária.
Ao pensar em bebida deu-me náuseas e num vómito aliviei-me num só jorro para o chão do lugar do morto. Foi aí que me apercebi das minhas redondezas. O R7 cheirava a veneno de ratos, abri a janela, o ar frio e cortante da madrugada fez-me fungar, espirrei, meti a cabeça toda para fora da janela, numa agonia suprema, mas que até acabava por ser um alívio.
Reconfigurei muito docemente o cérebro e sai do carro para ir cair de borco a rasar a raiz duma árvore. Deixei-me estar deitado, molhado até aos ossos. Que se fodesse. Deixei-me estar, deixei-me estar até tocarem mais campainhas de alarme, ainda indistintas, mas campainhas de alarme, para logo me erguer, cheio de frio, cheio de medo e me apoiar numa árvore ao lado a avaliar das minhas redondezas, da minha circunstância, de reflectir sobre a vida.
Bem, era quase de madrugada, tinha coisas para fazer, montes de coisas para fazer, contas para pagar, não sabia quanto dinheiro gastara na véspera (em pânico levei a mão ao bolso das calças só para me certificar de que tinha guita, encontrei 300 euros espalhados nos vários bolsos, um livro de cheques e uma conta por pagar do 23, os porcos do 23). Um pouco mais aliviado, pus-me a observar-me, a avaliar-me.
Ali estava o senhor, o senhor engenheiro Lúcio Ferro. Estava todo porco, filhinho do papá, engenheiro agrónomo por especial favor, filhinho duma das maiores fortunas do país, morador num dos bairros mais chiques de Lisboa, a cheirar mal e a destilar ressaca, celibatário e putanheiro endinheirado, por todos os poros, ao lado dum R7 a cair aos pedaços, ao lado do carro do Hel, o meu único amigo, o único que nunca se tentara servir, nem de mim, nem do dinheiro do meu pai, nem dos contactos fáceis da minha vida ainda mais fácil e obscena, no meio do mato, encostado a um cipreste qualquer, na borda dum R7 ferrugento, a vomitar a bílis, o Hel era um gajo que me respeitava.
Acabei, limpei a boca ao casaco, caí outra vez ao chão e reconfigurei. Reconfigurei tudo.
Conhecera-o nos bancos da Faculdade de Agronomia, céus como eu demorara a finalmente concluir a licenciatura, e logo entre nós se gerara uma estranha cumplicidade, até porque mais diferente do que eu e do Hel não havia. Tinha quase idade para ser seu pai, ele era um aluno aplicado, cumpridor, tinha cabeça e nunca perdia a calma. É certo que gostava de miúdas como eu, mas não as levava para a cama por dá cá esta palha, apreciava músicos que tivessem algo para dizer, para cantar, coisa que eu nunca percebera, apreciava livros de mistério, a gramática da linguagem e também acreditava, parvoíce, na lealdade e na boa vontade entre os seres humanos.
Se calhar fora por causa dos livros de mistério, eu também gostava disso. Talvez um pouco também pela sua coolness de atitude, ou por ser um pouco a personificação daquilo que eu próprio poderia ter sido mas que nunca fora. Na volta era só por causa da gramática da linguagem. Todos os engenheiros agrónomos que conheço gostam de gramática, tem a ver com a linguagem das plantas a crescer, do alinhamento das sementeiras e das hortas em flor. Por outro lado, ele não era egoísta e não se importava se os outros o maldiziam por se dar com pessoas como eu.
Seja como fosse, tratava-se dum tipo honesto. Sorri, abri os olhos e olhei em volta. Fazia névoa. Cerrada.
Pigarreei e escarrei satisfeito, estava cerrado o ar, cortei com a mão a névoa, não havia problemas, mais tarde ou mais cedo alguém tinha de morrer e aquela não era o dia em que eu morreria, na cama ou acompanhado, estava acordado, maldisposto, imundo, sujo, mas vivo.
Devagar, ergui-me e dei a volta ao R7, abri a porta do lugar do morto, saquei do tapete vomitado e atirei-o fora, a ver se via mais coisas minhas a esvoaçar, mas não, os meus outros papéis não estavam ali, é verdade, recordei com um nó no estômago, tinha-os deixado no meu R6. O meu R6 novinho em folha que o Hel levara e que se sumira no portão mais à frente. Trocara de carros com o Hel, pois era, isso era algo que se me afigurava complexo sentei-me a matutar no assunto.
Então, finalmente, acendi um cigarro. O fumo, a névoa, os pinheiros, a noite ainda, a madrugada a chegar, a sensação de que tinha algo de importante a fazer, atrofiavam-me o pensamento e foi assim que reconfigurei. Reconfigurei, se calhar precisava mesmo de o fazer e então reconfigurei outra vez.
Noite de 20 de Dezembro de 2007.
És tu Hel? Bora beber um copo, mate? No clube 23, Lúcio? Yup, Hel. Boa, fixe, no 23 às 10 da noite, sim? Sim.
No 23 já eu estava ao ligar-lhe. Com uma loira. Reconfigurei. Uma boazona. Puta até aos olhos. Gaja difícil, a vaca. Nem depois de dois copos de champanhe. Nisto, o Hel aparecera. Quatro ou cinco copos depois, reconfigurei ao acender mais um paivante, como vai a vida no ministério, senhor engenheiro? Óptima e tu, no departamento, quando é que te fazem professor doutor a tempo inteiro? Uma risada, mais uma passa, um esgar no rosto do Hel, conheço-o bem, mais um sorriso meu uma outra passa, e então a ruiva.
Pois, a ruiva. Muito gira a gaja. Pestanuda. Comprida. Alta, quero dizer. Dão-me lume? inquiriu. E O Hel que não fuma. Não tenho, disse ele. Eu, quieto, a loira a sugar-me a tesão toda, sentada no balcão do 23 de minissaia e meias pretas onde a deixara mesmo antes do Hel chegar.
Não faz mal, diz ela, magra mas curvilínea, botas vermelhas de salto alto, resolvi deixar de fumar, cuspiu e, sem mais, vira-se para o Hel, toda fêmea, no pique da música do 23, mete-lhe a boca no ouvido.
Mau, percebi o que se passava e deitei abaixo a minha aguardente velha dum só trago. Então ela, outra vez à carga, o decote na cara do meu amigo, não te importas que me sente? Eu fodido e a loira, a tal da Telma, fria, malhas pretas boa como o milho mas nem para criada chegava ao pé da ruiva, ciumenta, deixou-se ficar, a conspirar com o barman, um monstro de dois metros de altura. Pareciam dois macaquitos a armar alguma, só que não liguei, de fascinado que estava com o filme que se desenrolava à minha frente.
Entretanto, o Hel, com a ruiva a insistir, olhava para mim, na dúvida. Na verdade, não era preciso duvidar, ela sentou-se na mesma, no meio dos dois, roçando-me a coxa ao fazer-lhe uma festa no resto e ao dizer-lhe que ele era um rapaz bonito, mesmo a provocar, rapariga nova nas lides do ataque, tinha sorte em dar comigo e com ele, visto que o Hel de aventureiras não sabia de nada e eu de tipas destas sabia até demais.
Reconfigurei. A ida para Cascais. A casa do Hel. O quarto do Hel. Mais umas cervejas que comprara na ida, conduzia então o meu carro, o artilhado R6. O asfalto, a noite, a bebida, a rolar cada vez mais rápido, e o Hel seguro de mim, raios, o Hel confiava em mim.
Eu. no banco da frente, o Hel no lugar do morto e a ruiva lá atrás a fazer um strip para o espelho retrovisor. O Hel a passar-se, ela totalmente marada, eu com os olhos, eu todo olhos, um carro atrás de nós e eu tentado transmitir-lhe a ela a calma necessária para o bacanal que já começava a antecipar.
Reconfigurei. A casa do Hel. O Hel no quarto com a ruiva. Eu cá fora a fumar um cigarro. As chaves do meu carro nas mãos do Hel. Uma troca de chaves, como se fosse de sangue, eu a poisar as chaves do Hel na secretária. Gemidos vindos do quarto do Hel. Eu a fumar um cigarro. As luzes dum carro grande e feio. Um Volkswagen Miura.
A loira à minha frente a desligar o Volkswagen. Um sorriso tão mentiroso quanto sexy, encaminhar a loira para um dos anexos da quinta da família do Hel. Deitá-la e não sentir vontade de foder. Ela a perguntar: queres que te bata uma punheta? Eu que não, que não queria.
Fugir. Entregar a Telma à sua sorte, que se desinmerdasse. Que tinha eu a ver com isso? Fugir.
Entrar no quarto do Hel à má fila. Olá, estão bons? Eles a rirem, completamente vestidos e o que é pior os dois de pé, como amigos, e o Hel a dizer que iam dar uma volta.
A televisão ligada. Minto, era um plasma, a televisão ligada e o computador também. A cair. A ruiva linda a suster-me e depois o fim, a cama, o sono.
No relógio eram 20 para as seis. Acendi mais outro cigarro. Estava mesmo muito frio e não havia maneira da neblina levantar. Sim. Liguei a rádio por descargo de consciência. Ironia. Tocava «i can see clearly now». Foda-se, não podia ver nada «clearly». Estava frio. 20 para as seis, certo? Bom, tinha mais o que fazer. Pois, onde estão os meus documentos? Caralho, estavam no R6 que o porco do Hel levara.
Escorreguei, aninhando-me no banco do R7. Um grilo dava os bons dias à natureza. Já era quase dia. Havia um cheiro a vómito dentro do carro que começava a irritar-me. Que fazia eu ali? Merda de carro e merda de cheiro. «I can see clearly now the night is gone, it's gonna be a bright, bright sunshiny day» ou pelo menos assim rezava a porra do rádio.
Reconfigurei.
A ruiva e o Hel, que par; faziam um par bonito, mas porque raio os seguira? Porque diabo estava parado no meio do campo perto duma vedação alta ainda à noite e sem visibilidade quase nenhuma?
Pois. Reconfigurei. O Hel. A ruiva. A loira. Dois carros. O convento de Mafra. Uma casa isolada no meio dos ciprestes. Dois homens. Uma pistola. Agressão física. Um rapto. Que podia eu fazer? Era duvidoso. Ergui-me. Abri o porta-luvas. Encontrei uma garrafa de whisky de meio litro, provavelmente era a mesma que oferecera ao Hel quando regressara da minha última visita à Escócia. Bendito Hel, não a bebera. Desarrolhei, dei um longo gole. Explosão no estômago. Força, poder, genica.
Reanimado, resolvi que tinha de fazer alguma coisa e, devagarinho, muito devagar, abandonei o R7 e trepei a uma árvore que dava para a vedação. Ao subir, ouvi um grito feminino que quase me fez cair, mas não me desbanquei; estava no topo duma árvore e conseguia vê-la. A ruiva era puxada selvaticamente por um dos braços. Era ela sim, já me recordava.
Reconfigurei. Ariel, dizia chamar-se Ariel, era isso mesmo.
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