12.7.07

Numa tarde em Lx




O dia tinha começado mal para burro. Uma cefaleia terrível e uma sensação de vazio e de angústia ao mesmo tempo. Ter andado a praticar boxe contra o vidro de uma janela, na noite anterior, não ajudara: o punho tinha ficado em retalhos e nunca fora muito bom a esgalhar uma com a mão direita. Mas, do mal, o menos: “Sou ainda jovem e bem parecido e cheio de energia” gritei para as paredes em voz alta. “E o que me falta em maturidade intelectual, compenso com o meu golpe de génio,” reflecti em surdina. E estava quase, quase, de férias. Bem, havia o problema de o cabrão do filho da puta da chocolateira, que pesa uma tonelada e meia e bebe que se farta, estar sem bateria. Tinha de descalçar essa bota, mas só o poderia fazer se primeiro metesse a dita besta a trabalhar. Pensei e reflecti que, quem me daria jeito, mesmo jeito, era o tal do Helel Ben Shahar, rapaz novo e de físico robusto, habituado ao longo da sua curta vida a empurrar carros de bois atrás de carros de bois. E pronto, resolvi-me. “Hel? Sou eu, tudo numa alta? Queres vir beber uma cervejinha aqui perto da minha casa? Podes? Maravilha pá, pago eu, não te demores!”

Era apenas mais uma tarde de um longo e quente mês de Julho na cidade de Lisboa, uma estrada perdida algures entre caminhos e uma das avenidas mais movimentadas da metrópole. O sol queimava a pele, o vento quente enchia as narinas e o horizonte dançava flamejante, unindo céu e estrada. Uma imagem interessante, mas que o suor que me escorria cara abaixo e que as mãos escaldadas pela chapa do automóvel me impediam de apreciar em todo o seu esplendor. Pelo contrário, o calor era agora inimigo público número um. Tudo começara nessa manhã… O meu caro e estimado amigo Lobo Solitário convidara-me para ir beber um copo. "Uma boa!" pensei. "Esplanadazinha em Lisboa, uma fresquinha na mão, cérebro a meio gás, uma troca de piadas e umas saias levantadas pelo vento. Tudo porreiro!” E assim foi… mal sabia eu que umas cervejas e umas piadas depois, sem saber bem como, encontrar-me-ia atrás do carro do Lobo, juntamente com mais três desconhecidos, a empurrar como se a minha vida dependesse disso…

A merda do carro não queria pegar nem à lei da bala. Eu suava por todos os lados. A direcção, sem o sacana do sistema eléctrico, exigia um esforço tremendo. Lá atrás, os outros, sob a batuta do Hel, faziam das tripas coração. Mas não dava, caralho, o sacana do bicho não colaborava de maneira nenhuma. “Mais um esforço pessoal, mais um esforço!” O moço da mercearia olhou para o relógio. O gajo que distribuía publicidade, apesar de toda a boa vontade que demonstrara até ao momento, parecia prestes a desculpar-se e a ir-se embora. O Hel deitou-me uns olhinhos onde pude ler um assomo de raiva ainda que temperado com uns pozinhos de compreensão e de companheirismo. Tinha de ser desta. Se não fosse desta, tava bem fodido, era o que era. “Vamos, porra!” “Ainda não, ainda não, não metas já, não metas já! Agora Lobo, agora!”
“Terceira, caralho, arranca, cabrão! Não vais lá, meu filha da puta, não vais, não vais? Quarta, porco, quarta, vou-te pegar em quarta meu filha da puta dos infernos!” E os outros? E os outros? Porra! Os outros ficaram para trás, esta bodega já anda, aos solavancos, mas já anda, não pegou mas anda! “Merda, estou na avenida, vou bater, vou bater!”


- Força! Está quase!!” – encorajava eu os meus ajudantes.
- Eu não sei… mas se isto não pega agora, tenho que ir embora – anunciou o gajo da publicidade, o rosto vermelho do esforço.
- Pois, lamento, mas se não for desta… - desculpou-se o outro.
Estava a ver o caso mal parado. O monstro tossia e tremia, a força moral dos meus companheiros esvanecia-se e o calor impiedoso frustrava todos os nossos heróicos esforços. Estava na hora de envidar todas as forças para um empurrão final. O Lobo lá ia entretido, travando uma luta hercúlea contra uma bateria teimosa, num jogo de caixa entre terceira e quarta e eu lá empurrava, resignado, amaldiçoando a minha sorte, sob o sol escaldante, com as cervejinhas ainda a badalar no cérebro. Não fosse o Lobo ser um gajo porreiro e de quando em vez pagar-me um copo... ENTROU NA AVENIDA! Só restava esperar…
Ao ver o Lobo partir, fui assaltado por um conjunto de questões filosóficas que normalmente não me perturbam: quais as verdadeiras implicações de se entrar com um carro cuja bateria está praticamente morta, movido a braços e pernas, numa das avenidas mais movimentadas de Lisboa em plena hora de ponta? Voltaria a ver o meu amigo? E a minha carteira, esquecida em sua casa? E os dez euros que me devia?

Pegou, em quinta mas pegou. Entrei na curva da avenida devagar, muito devagar. Tinha as pernas a tremer e mal conseguia fazer o ponto de embraiagem. Era só suor e nervos. Aos poucos, lá me acalmei. Estava um trânsito nojento. Fiz a rotunda, dei gás para aquecer o motor do carro e fui parar suavemente junto ao semáforo. Tinha duas opções. Virar para casa ou seguir em frente. Estive quase, quase, a mandar tudo à merda e a meter logo para a A2. Só que, não sendo assaltado por questões filosóficas, fui alvo dos meus princípios éticos: não só tinha um amigo lá atrás, como, para além disso, lhe devia dinheiro e aqui o Lobo preza muito passar na rua sem dever nada a ninguém.

“Mau, tanto tempo! Bonito, ou pifou no meio da avenida ou fez-se à estrada!” Calma, ele não faria isso, até é bom tipo por trás dos dentes afiados, Hel, ele há-de chegar... O trambolho do carro lá virou a esquina, longos minutos depois, verde, sujo e velho. Afinal, era possível que ainda hoje chegasse a casa. “Bem, Lobo, meu sortudo de merda, agradece à Cornélia” disse-lhe. “Agora, faz boa viagem!" Despedimo-nos com um aperto de mão e deixei o Lobo agradecido a enfrentar o sol estival com uma bomba, literalmente, nas mãos. “Ah, mais uma coisa!” lembrei-me de súbito, virando-me para o rosto inquisitivo do Lobo. “Vê lá se isso não te pára no meio da auto-estrada…” disse, com um sorriso escarninho. “Faz boa viagem…” Retribuindo o sorriso, o Lobo arrancou, por certo confiante e seguro de que ainda naquele dia estaria a fumar um charutinho e a beber um bom whisky.





Este texto foi escrito em parceria. Assinam: Lobo Solitário/Helel Ben Shahar.