6.1.07

Partida de caça



Quando eu perder a leveza de movimento e me fugir a argúcia de pensamento, nesse dia, sem hesitações, suicido-me. Quando alguém me bater no meu jogo ou a presa escapar por mais do que uma vez às minhas emboscadas, nesse dia, nem precisarei de me suicidar. Morrerei de fome. Quando o dia chegar em que uma vontade mais forte do que a minha me ditar a sua lei, tornar-me-ei ilegal e continuarei o jogo, só que a partir desse momento, as regras serão outras, serão as regras que forem mais convenientes a mim próprio e a mais ninguém. Aliás, já assim o é. Uma vontade mais forte do que a minha fez de mim aquilo que hoje sou.

Sou um caçador e chefiei um dia uma matilha. Hoje caço só porque assim o desejei e porque a matilha foi dizimada pelo Homem em virtude da fraqueza intrínseca aos outros lobos. Caçar só não é fácil, as emboscadas demoram muito mais tempo até surtirem efeito e preparar as minhas armadilhas requer extrema concentração e subtileza. Mas prefiro-me assim. Não há elos fracos e é raro a presa escapar-se-me. Quando me escapa, caço-a de novo até a devorar.

Escolho as minhas presas com antecedência e escolho sempre as melhores. Só essas me podem garantir alimento que baste entre caçadas, dado que por ser apenas um lobo a frequência das minhas emboscadas é diminuta. E a minha energia também já não é a mesma que era nos tempos em que chefiava a matilha. No entanto, o que perdi em velocidade e resistência, ganhei em sageza.

Tornei-me consciente de que a caçada perfeita não reside apenas no quilate da presa mas, e até mais, na excelência do cerco que lhe monto.

Escolho as minhas presas e estudo-as afincadamente antes sequer de que estas se apercebam de que estão prestes a serem assassinadas. Preparo a emboscada com semanas de antecedência, e, quando finalmente ataco, já conheço as minhas presas melhor do que elas se conhecem a si mesmas.

Sei exactamente que caminho irão tomar na sua fuga desenfreada e limito-me a acossá-las em direcção à armadilha que previamente lhes destinei. O beco sem saída do qual tomam finalmente consciência, aterrorizadas, ao mesmo tempo que sentem já nos flancos a aproximação fatal do meu bafo quente e ternurento. Nos últimos momentos das suas vidas, mostro-lhes o meu respeito e admiração pelo seu porte e pelo seu garbo. Cravo-lhes as mandíbulas na jugular e em poucos instantes tudo está terminado.

Há presas muito difíceis de caçar e a essas caço-as só para por à prova as minhas capacidades e refinar a minha arte. Entre outras, o Búfalo, o Urso e a Serpente não são presa fácil para um Lobo. Em teoria, até são presas impossíveis, mas para mim não há impossíveis.

O Búfalo é forte e rápido, mas é estúpido. Dadas a sua força e rapidez, quando caço um Búfalo tenho sempre o cuidado de nunca me aproximar em demasia dele. Pico e fujo, pico e fujo, fujo e pico e canso-o. Uma caçada ao Búfalo pode demorar dias. Dias inteiros a exaurir a sua força e a sua vontade. Dias inteiros sem permitir que se alimente ou que beba. Ainda assim, um Lobo é mais rápido do que um Búfalo e encontra sempre tempo na caçada para se alimentar de presas menores. Finalmente, quando o Búfalo está exausto, caio-lhe como um raio sobre a jugular e chacino-o, deleitando-me nos jorros do seu sangue quente. Pouco mais aproveito do Búfalo do que o calor do seu sangue abundante. Tigres, Leões e chacais logo surgem a disputar o meu troféu e um dos motivos da minha longevidade reside em evitar o convívio com outros predadores.

O Urso é forte, é rápido embora pesado, mas é temperamental. Caçar o Urso requer sobretudo rapidez, imensa rapidez de movimentos e finalmente uma agilidade tremenda no clímax da caçada. É que basta um toque do Urso e tudo está terminado. Caça-se o urso ao contrário, caça-se o urso fugindo dele. Pica-se o urso como ao Búfalo, mas o objectivo não é esgotá-lo. O objectivo é enfurecê-lo de tal modo que me persiga absolutamente confiante da sua superioridade e cheio de um desprezo desdenhoso que só o enfurece ainda mais por um Lobo que se atreve a provocá-lo. Então, é só conduzir o Urso para um precipício. No último momento, quando já sinto as suas garras a roçarem no meu pêlo, num último esforço supremo, elevo-me num salto magnífico, torço o corpo em pleno ar, mudo de direcção antes de começar a descer e aterro em terra firme. Já o Urso, cego pelo seu temperamento, não pára nem muda de direcção. Mesmo que se apercebesse de que caíra numa armadilha, seria demasiado tarde… O peso, o peso do Urso é a sua perdição. Desço a vereda e o Urso agoniza gemendo. Os olhos raiados de sangue fitam-me, implorando misericórdia, mas não lha concedo. Num último gesto de apreço, lambo-lhe o focinho e então cravo-lhe fundas as mandíbulas no pescoço. Um urso demora mais tempo a matar do que um Búfalo. Rasgo-o e como-lhe o coração. Do Urso, como do Búfalo, pouco mais aproveito, pelos motivos que já explicitei.

A serpente é de todas a presa mais perigosa. A serpente não tem força, mas é rápida, astuciosa e hipnotiza o seu oponente. Com a serpente, uma distracção e o jogo acabou porque a serpente é também venenosa. A serpente caça-se só de uma maneira. De olhos fechados. Se olharmos a serpente ela hipnotiza-nos e então tudo está perdido. A serpente caça-se de ouvido. Com a serpente o silêncio e a rapidez são vitais. Para caçar a serpente é preciso esperar horas a fio em silêncio e imobilidade total até que esteja à distância de um salto das mandíbulas espetadas na cabeça. É preciso ser fulminante. Com a serpente todos os cuidados são poucos. É uma presa frustrante porque está sempre alerta e sendo astuciosa muitas vezes finge não se aperceber do caçador com o intuito de lhe pregar uma valente partida no momento em que este já cai sobre ela. Vi muitos lobos morrerem sem saberem como quando julgavam já ter a serpente à sua mercê. Caçar a serpente é um jogo de morte. E de sorte. Por isso, só cacei a serpente uma vez. E bastou. Da serpente não aproveitei nada. A serpente sabia a fel e pus e nunca mais procurei caçar serpentes. Hoje, evito-as.

Hoje, um Lobo velho e cansado, mas sábio, evito presas como o Urso, o Búfalo ou a Serpente. Hoje, só caço a melhor das presas. Só caço a Gazela. As carnes da Gazela são tenras e doces e a sua carcaça fácil de arrastar para local seguro, onde me proporcionará alimento por muitas luas.
A Gazela é extremamente sensível e está sempre alerta. Os seus sentidos de audição, olfacto e visão são excelentes. E a Gazela é também rápida. Mas tem um defeito. Que é a sua perdição. A Gazela é demasiado afoita.

No dia em que perder a leveza de movimento e me fugir a argúcia de pensamento, nesse dia, sem hesitações, suicido-me. Quando a presa escapar por mais do que uma vez às minhas emboscadas, quando descobrir que já não sou um caçador, nesse dia, nem precisarei de me suicidar. Morrerei de fome.