23.1.07

Inspiration & Perspiration…



Miguel acordou estremunhado numa cama a que ainda não se habituara e com um dos braços dormentes por ter dormido com o tronco em cima dele. Aos poucos, foi despertando e a realidade impondo-se nua e crua: a cama de casal, o corpo da bela Cristina a seu lado, o berço do bebé, onde dormia o filho, o qual, quase em sintonia com o pai, começava também ele a dar sinais de despertar para mais um dia.

Que diabo fazia ali, porque carga de água se tinha casado e, pior um pouco, porque tinha tido um filho eram assuntos que nessa manhã o atacaram com maior intensidade do que habitualmente. É verdade, pensou, a alhada em que estava metido tinha as suas compensações, mas muitas vezes invejava a vida de alguns dos seus amigos e do próprio irmão, que nunca casara, e que todos os Natais aparecia nas reuniões da família com uma namorada diferente.

Então, afastou esses lúgubres pensamentos, ergueu-se lentamente para não despertar Cristina, vestiu as calças e em tronco nu encaminhou-se para o quarto de banho. Pôs a água a correr e espalhou espuma de barbear pelo rosto. Quando o lavatório estava semi-cheio de água a ferver fechou a torneira e ia dedicar-se a uma das poucas coisas que nos dias que corriam só lhe pertenciam a ele, uma das poucas actividades em que lhe era permitido mergulhar em si, reflectir-se e pensar-se em paz, o ritual sempre antigo e sempre renovado do desfazer da barba, quando o telefone começou a tocar.

Merda, pensou. Logo agora. Virou-se e gritou para o quarto: “Cristina, o telefone”. Da sua mulher nada. Repetiu, mais alto: “Cristina, o telefone!” Do berço o bebé começou a emitir uns trinados que depressa se transformaram em guinchos excruciantes. “Merda”, grunhiu Miguel, já com o dia estragado. Mas porque diabo não acordava Cristina? E o telefone que não parava de tocar!

De repente ocorreu-lhe a razão do mutismo de Cristina, limpou o rosto e precipitou-se para o quarto, passou pelo lado da cama de Cristina e levantou o auscultador: “Hallo?” Inquiriu. Do lado de lá da linha apenas um risinho escarninho. “Sim, quem fala?..”Perguntou. O risinho escarninho foi-se desvanecendo num sarcasmo estranhamente familiar e de súbito o telefone desligou-se. “Merda, merda, merda”, repetiu Miguel, chateadíssimo.

Tinha sido uma brincadeira, provavelmente do seu irmão, que sempre tivera um sentido de humor muito peculiar e pouco apreciado pelos alvos das suas brincadeiras. O bebé guinchava cada vez mais alto e de Cristina nada.

Pensou em copiar o sentido de humor do irmão e retirar, muito docilmente, mas de um modo rápido, brusco e em simultâneo, os tampões que a mulher tinha nos ouvidos, tampões que usavam alternadamente, um dia ele, no outro ela, mas não fez, porque sabia que ao contrário do seu irmão Cristina não era lá grande adepta desse tipo de practical joke.

Coitada, o melhor era deixá-la dormir, no dia seguinte seria a sua vez de usar os tampões e Cristina a levar com o berreiro do bebé. O pensamento consolou-o mas depressa o real se abateu sobre ele na forma dos milhares de decibéis estridentes que o garoto não cessava de emitir.

“Merda, merda, merda! É uma merda, merda!” gritou e, sacudindo irritado um pedacito de espuma de barbear que se alojara caprichosamente na axila esquerda, levantou-se dominando a cólera, e resignado foi ao armário buscar as coisas para mudar a fralda.