19.3.09

Back to the past

A vida tem destas coisas. Estava eu calmamente descendo a página do blog, soltando lentas baforadas no meu cigarro de enrolar, escutando um delicioso solo de guitarra do Tony Iommi, depois de um extenuante dia de trabalho, perdido entre intrincadas cadeias referenciais, endofóricas e exofóricas, quando me apercebi, sem ponta de espanto, que no fim de todos os posts dizia "Posted by Lúcio Ferro". Pensei para comigo que havia muito tempo que não postava nada. Entre uma passa e outra do cigarro, reflectindo, mas não muito aprofundadamente, vasculhei as prateleiras da minha biblioteca digital de textos, procurando relíquias esquecidas, rascunhos que ainda pudessem acabar na pasta dos textos acabados, ou um pensamento que fosse, esquecido no fundo de uma gaveta não menos virtual. Deparei-me, então, com um texto que me trouxe um sorriso escarninho à cara. Trata-se do texto que lerão em breve.

Escusado será dizer que este texto é fruto de uma pequena paixoneta que alimentei nos meus dias da faculdade. Na época, o meu melhor amigo dizia-me, «Hel, tu precisas é de conhecer outras miúdas, vais ver que te esqueces logo dessa chavala sem interesse nenhum. Precisas é de um bom broche». Por muito certo que estivesse, os seus conselhos costumavam acabar com «Precisas é de um bom broche», o que não lhe tira razão, antes pelo contrário. Pouco tempo depois, conheci uma miúda, que, felizmente, não visita este blog e que não me vai chagar o juízo por andar a postar textos sobre outras gajas. Adiante.

Vão ler o quinto texto de uma série de seis mas, embora tenha publicado os outros neste blog, este nunca veio aqui parar, devido a pruridos inexplicáveis. Hoje, publico-o, por várias razões: não tenho ideias para um post novo, sou demasiado preguiçoso para pensar numa e porque já não me revejo nele. Para todos os efeitos, foi um exercício literário que me deu bastante gozo e dou-o a ler, estimado leitor, para obter a sua crítica, construtiva de preferência.

É numa quente tarde de verão, em que as horas picam o sol num galope rápido, que volto a ter uma visão que recordo apenas num misto de sonho real e sensação de realidade, mas que a sei toda ela verdade. É apenas mais uma esplanada, perdida algures em Lisboa, onde a mulher dos finos dedos longos e dos inebriantes caracóis negros está sentada, outra vez só, levando a pequena colher à boca em cíclicos gestos pausados e tranquilos. Deleita-se com um gelado que lhe adoça de chocolate e amêndoa os lábios e que se derrete num espasmo de língua. Desta vez, lamentando apenas não poder descansar sobre a suavidade dos ombros, a cabeleira de canudos negros está ferreamente e contra sua vontade apanhada atrás, revelando um pescoço elegantemente esculpido que, fluindo das linhas finas do rosto, desemboca em ombros e braços despidos, aquecidos pelo sol estival.

Fecha os olhos e entrega o rosto tranquilo ao afago terno do sol. Provavelmente, é comprometida. Provavelmente, músico. Pianista. Daqueles tipos que arrotam lascívia disfarçada em pele de irritante sensibilidade poética embalada por um choro de teclas. Não consigo deixar de invejar o imbecil que a seguir afagará os braços mornos e provará o doce daqueles lábios de chocolate e amêndoa. Compreendo com surpresa dolorosa que estou a sentir ciúmes de uma mulher que não é minha, a quem nunca dirigi a palavra, de quem nem sequer sei o nome, e cujo único olhar que me lançou naquele dia no metro foi de indiferença ou frieza (não excluo a hipótese de cansaço).

Talvez sentindo-se invadida pelo interesse escrutador de um estranho, os olhos abrem-se num pestanejar desperto para esbarrarem de novo com os meus. Permito-me a ousadia do desafio. Num jogo de forças, mantém um olhar fixo e neutro nos meus olhos prenhes de decisão. Sem ceder, levanto-me, as pernas liderando, por entre cadeiras e mesas, um caminho sinuoso que parece já conhecerem. Ficam-se pelo parecer, pois esbarro com a canela, num bater de osso e metal, na quina de uma cadeira. O que começou por ser uma marcha confiante até à mesa dela - a única ocupada naquela pequena esplanada de mesas e cadeiras metálicas que reflectem de volta para o céu a luz branca do sol - mudou o passo estugado para um avanço prudente. A sua mirada não transparece convite, tão pouco um sentimento de invasão; apenas a curiosidade sincera e infantil dança no seu olhar como no de um gato tentando adivinhar para que lado vai o gafanhoto saltar em seguida. Abstraindo-me dessa imagem (até porque é tarde para saltar para trás), percebo que ela exibe uma expressão discretamente divertida, ainda esperando o desfecho da minha marcha de canela dorida. Não me admira que não seja o primeiro paspalho a tentar uma aproximação tão rude. Sento-me. Fitando-a, não demoro a atravessar uma realidade que se me tornou familiar naquele dia, quando a lagarta de aço carregava no seu ventre imundo espectros e sombras e, destacando-se deles, enchendo-me o olhar, um rosto de serenidade luminosa, num fechar de pálpebras, não tardou a revelar uma presença de olhos castanhos convidativos que me arrastou até si, apenas para me enrodilhar no aroma de cabelos negros e me hipnotizar com o som de um cantar brotando de lábios de chocolate e amêndoa, uns lábios que senti, mas não toquei, forçado a voltar ao cativeiro do corpo-prisão de onde viera. Não a encontrara no reino dos sentidos… Ela era sensação.

Ao terminar, foi o ridículo das minhas palavras que selou os meus lábios em compenetrada basbaquice. Eu, sempre cuidadoso e reservado no sentimento, esmagado por uma inocência tirana, deixei escapar um sonho por uma fresta incauta do espírito. O sonho regressa à inspiração original. Ela continua a fitar-me, impassível, envolvendo-me num olhar de lábios imóveis, os dedos fechados num delicado aperto sobre os braços nus e morenos de sol. Deixo-me extinguir pelos solitários olhos castanhos até que, aos poucos, vindo do fundo, vejo um verde de prudente tom desabrochar em luz para mim e para o mundo, arrombando as portas e invadindo o espaço deixado vazio no meu espírito pela partilha da revelação. Constrangido por uma cortina de embaraço que a mão do silêncio correu entre nós, noto o sangue acorrer-lhe às faces e as maçãs do rosto tornarem-se de um fogo escarlate, ainda por descobrir se de fúria indignada, se num recato de ansiosa timidez. Pela primeira vez, desvia os olhos dos meus, tarde encobrindo um verde que transbordou e desaguou no meu próprio olhar. Embriagado por um desejo insatisfeito, despojado de preconceitos e complexos, realizo no mundo das acções a expressão que me falta tornar real: o acto de um beijo roubado.

Ah!, e porque sim e porque me apetece, aqui está a música: