9.10.08

Mais pelo motivo




«(...) Isabel nascera numa família cotejada de exótica. O pai, com pouca escolaridade clássica e de duvidoso ascendente, mas dotado de uma grande avidez cultural, lia tudo o que lhe vinha parar à mão e procurava conviver como esponja com artistas, pintores, escultores e de modo mais amplo com todos os marginais do pensamento estabelecido com quem conseguia relacionar-se.

Vivia assim numa inquieta anarquia mental. À medida que os anos foram passando esta enorme colecção de informação adquirida foi-se sedimentando, na leitura matinal do vespertino, nas férias com os netos em Moledo, nas malgas de café e de bolachas na cama com a mulher, à medida que iam fermentando e dando origem a uma sólida cultura, plena de erudição em assuntos como pintura, teatro, poesia, desporto, etc.

A mãe, com a superioridade da escolaridade clássica e a maldição duma moral rígida foi-se aos poucos habituando ao marido, o qual amava mais do de que a vida e, lentamente, transformou a sua maneira de pensar e de ser, tornando-se mais maternal embora, ao cozinhar para ele e para os netos, acabasse sempre por manter alguns resíduos da moral vigente em que fora educada.

Isabel foi assim criada, num ambiente de certo modo anárquico, mas rico em ideias, em livros e em hábitos de livre pensamento. Cresceu habituada a pensar e agir pela sua cabeça.


Na relação inicial com o Trave teve problemas com a família mas com firmeza conseguiu convencer os pais. Sobretudo a mãe, que acabou por aceitar que a filha vivesse com um homem - legalmente desquitado - que continuava casado (concordata da Igreja ao tempo).

Nos primeiros anos tiveram algumas dificuldades, sobretudo em Braga e ao nível de aceitação social mas, com o evoluir dos tempos, e com a ida para Moçambique onde ela obtera uma direcção de turma e ele o comando de uma esquadrilha de Fiats 45, ultrapassaram a situação. Mais tarde, na espuma da independência e com Isabel grávida, depois do 25 de Abril, legalizaram o casamento.

Isabel interrogava-se agora algumas vezes sobre o porquê da duração da sua ligação com o Trave (38 anos). Era evidente que as afinidades culturais e o respeito recíproco tinham jogado uma importância muito grande na situação de vida entre ambos. Moeda curta, no entanto. Recentemente, a inquietação do Trave - ao nível do sexo - começara a incomodá-la. Mais pela quantidade do que por outro motivo.