22.4.08

Verde Duvidoso

Ele e ela tinham desavenças, sobretudo na forma como ele a via, que diferenciava da forma como a imagem dela lhe retorquia o olhar do outro lado do espelho. Ele gabava-lhe uma pele clara que ela insistia morena («principalmente no Verão!»). Ele, incapaz de contra-responder, balbuciava entre dentes, indeciso entre a birra e o amuo, que só a conhecera este Inverno. Ele insistia em bonitos dedos pequenos que ela afirmava exibir longos como os de um pianista. Aí, ele não pôde deixar de tremer nas suas convicções. Ela contrariava um sorriso que ele asseverava bonito e pontuado por dentes perfeitos e, para irritação dele, fazia-o exibindo o sorriso que negava. Ela nunca se queixara dos negros cabelos desenrolando-se em caracóis sobre os ombros, nem dos lábios (que ele supunha) suaves, muito menos do olhar terno e sincero e parecia aceitar com um certo prazer, para gáudio dele, até agora, a voz doce de belo cantar.

Um dia, ela decidira provar uma vez mais, com um olhar quase malicioso, a cegueira dele. Ele descrevera-lhe uns olhos do mais profundo castanho. Ela soltou para o ar um surpreso «mas, são verdes!» Ele, atónito, encerrou-se em confusão. Limpava com afinco as lentes dos óculos, enquanto a engrenagem matutava uma resposta adequada. Ele mirava-a atento, convicto de que acabara de mergulhar em hipnotizante olhar castanho. Decidira manter a sua posição. Via olhos castanhos e afirmava peremptoriamente (pois que, por vezes, afirmar tão e somente não bastava) que castanhos os via e castanhos o eram. Ela, que conseguia ser ainda mais peremptória que ele, advogava uns olhos verdes, não do mais puro verde, mas verdes o suficiente para semear a confusão no espírito dele, «principalmente durante o pôr-do-sol», altura que enverdeceria qualquer dúvida. Ele nisto viu oportunidade rara e singular de com ela partilhar um pôr-do-sol. Ela própria adiantou-se-lhe no falar, convidou-o, desafiou-o a provar castanho o verde. Assim foi. Os dois, à janela, testemunhavam a veloz queda do sol, pincelando o azul do céu de rosa e vermelho, aconchegando o edifício com o calor final do dia, mas o verde permanecia oculto nos olhos dela. Ele mergulhou uns olhos incolores no profundo castanho (verde?) dela. Esperou.

- Mas… são castanhos!

- Não são, são verdes!

Ela virou costas ao sol poente, guardou o verde indignado de descrença e desapareceu sem que ele a conseguisse seguir. Ele, mãos enfiadas nos bolsos, resignou-se ao verde dos olhos dela.

Ela daltonizara-o.