19.11.07

Doze andares sem luz e meia dúzia de anéis sempre a descer



Faltou a luz hoje. Não sabia que podia faltar a luz, mas a verdade é que de vez em quando a luz falta e quando falta a luz é um sarilho, uma chatice das grandes e todos sofremos por causa disso, sobretudo a minha mãe, que quando volta à noite vem sempre carregada das compras, e quando falta a luz é muito chato, porque temos os dois de subir as escadas e vivemos no décimo-segundo andar e a minha mãe fica muito cansada ainda antes do oitavo, muito cansada de ter de subir aquelas escadas todas, o elevador não funciona, tão cansada que quando chega nem sequer me dá um beijo, nem um miminho e vai logo a correr ter com a Esperança, que é a nossa criada preta, que me dá carolos na cabeça que magoam, saber se o meu irmão já está a dormir, como se o meu irmão fosse a coisa mais importante do mundo, que não é - porque ele não faz mais nada que não seja dormir.

Já eu, eu gosto quando falta a luz, embora não goste de subir as escadas, porque estou cansado de brincar e tenho frio nas escadas, mas gosto porque quando chegamos lá acima não há luz, e porque quando o pai chega jantamos à luz de velas e o pai brinca comigo e gosta que eu bata nos móveis com o meu triciclo, mesmo que a minha mãe lhe diga para estar quieto e não “desinquietar o rapaz”, porque o meu irmão está a dormir e não queremos que ele acorde.

Hoje faltou a luz outra vez, agora acontece quase todos os dias, não percebo isto, mas também não ligo, como não ligo a muita coisas estranhas que ultimamente acontecem, como os carolos da Esperança, porque sou apenas um miúdo e os miúdos não sabem nada de nada a não ser de índios, de cowboys e de alemães, como ainda há bocado, quando estava a brincar lá em baixo no pátio com o meu amigo Biré, o cowboy, com o Júlio, o vigésimo da cavalaria, e com o Carlos, o “alemão”.

Estava a brincar lá em baixo, com o Biré e os outros, quando faltou a luz, nós não demos por nada, se calhar nem a Esperança deu por nada porque não gritou por mim, porque ainda era dia, e tínhamos a luz do sol e às cinco horas da tarde chove sempre em Lourenço Marques, mas nós até que gostamos, porque quando chove ficamos lavados e já podemos ir para casa e a minha casa é tão grande que eu até posso andar às voltas de triciclo na sala, porque à noite não chateio ninguém, nem a Esperança nem o meu pai nem a minha mãe, e nem sequer o meu irmão.

O meu irmão gosta de dormir na cama da Esperança, e a minha mãe está sempre a dizer para eu não ir de encontro aos móveis, para não os acordar, não sabia que o móveis podem ser acordados, e eu tenho cuidado na curva do móvel grande da sala, que faço como se fosse o Mário Andretti, que é um grande campeão, é o melhor motobilista de todos, é um grande campeão, é o melhor motobilista do campeonato de fórmula 1 de sempre. De sempre!

Estávamos lá em baixo no pátio, a Esperança tinha deitado o meu irmão, e eu, como sempre, tinha-lhe fugido, não gosto dela, tinha-me ido encontrar com o Biré e logo a seguir apareceu o Júlio e depois o Carlos e então fomos brincar ao nosso jogo predilecto.

Tínhamos fugido todos para o pátio, a brincar aos cowboys e aos índios, eu era índio e o Biré cowboy, e o Júlio era um tenente do vigésimo da cavalaria, e o Carlos era um alemão, quando faltou a luz, e nós não demos por nada, só reparamos que o Carlos era o alemão, que tinha uma metralhadora, e por isso era sempre ele quem ganhava o jogo, já que nos matava a todos, mas de vez em quando eu, o índio, eu e o Biré, o cowboy, juntávamos forças e éramos nós quem o matava a ele, antes mesmo de o Júlio, o vigésimo da cavalaria, chegar para nos roubar os dentes de ouro, já que todos nós sabíamos que os índios, os cowboys e os alemães têm a boca cheia de dentes de ouro, mas de vez em quando eu e o Biré conversávamos com o Júlio antes, e dizíamos-lhe que os dentes de ouro do alemão, do Carlos, eram muito melhores do que os nossos, e que tínhamos de nos juntar para o matar a ele e assim fazíamos um jogo dentro do jogo, um jogo que consistia em matar o alemão e ficar com os dentes de ouro dele e nem com a metralhadora o Carlos, o alemão, conseguia ganhar-nos o jogo, e de repente começava a chover e ficávamos lavados e era a hora de irmos embora, eu a esperar a minha mãe à porta da garagem e os outros a correrem, a correrem para casa, e depois a chuva parava e sem mais a minha mãe chegava e dava-me um ralhete por eu estar sempre à espera dela em vez de estar em casa e de estar sempre encharcado, e eu ria e a minha mãe abraçava-me e... para o fim... chorava quando me abraçava, sem que eu percebesse porque é que a minha mãe chorava, se calhar era porque o meu pai ainda não tinha vindo para casa, ou se calhar era porque eu era um menino mau que gostava da chuva na cara e, para o mal ou para o bem - sou hoje um homem que ainda gosta muito da chuva a bater-lhe no focinho. Não é a mesma chuva, é uma chuva merdosa, que não lava e só mancha, mas é chuva e gosto.

Entrámos no prédio pela porta das traseiras, ela vinha carregada com os sacos e estava cansada, mas eu não lhe ofereci ajuda, afinal as mamãs do prédio estavam sempre cansadas e ninguém as ajudava. Subimos, doze andares a subir, subimos, doze andares.

O prédio cheirava a catinga e havia pretas feias nos vãos da escada e miúdos preto feios urinavam aos cantos das portas e todos pareciam rir da minha mãe e de mim e da minha mãe, à medida que subíamos.

Finalmente, chegámos. Ela parou à porta, pousou os sacos no chão frio e mesmo antes de tirar a chave da casa da carteira, virou-se para mim e disse, cansada, gasta, triste: “És um menino lindo, a mamã gosta muito de ti, és o meu lobinho, o teu mano precisa de ti, temos de ir embora.”

Retruquei que não gostava do meu irmão, que ele não falava e só dormia, quando não chorava, que era um chato, que era diferente do Biré e dos outros e que eu não me queria ir embora. A minha mãe sorriu, afagou-me rosto, deu-me um beijo e disse, quase como se não estivesse a falar comigo: “Tens de me ajudar a convencer o papá a irmos embora daqui”.

Tive medo. Não percebi a minha mamã. Ela abriu a porta e logo apareceu a Esperança, toda resplandecente com os seus colares, toda pressurosa com os seus anéis. Tive medo.

Mas fiz o que a minha mãe me disse.