2.7.07

Do medo da confissão do mar


Estavam a uns bons cem metros da costa e entretinham-se a boiar e a rir um para o outro. Tinham feito uma corrida debaixo de água que os levara para longe e riam-se das pessoas que, ao fundo na praia, mais pareciam formigas do que gente. Já não se viam há tanto tempo que aquelas férias juntos lhes estavam a saber maravilhosamente. Para ele, o irmão, apesar de mais novo uns cinco anos, representava muito mais do que um irmão; era quase como se fosse um modelo a seguir e sempre que precisava de conselhos era ao irmão a quem se dirigia. Para o irmão, ele era também muito importante, embora, desde que o irmão tinha sido pai, essa importância tivesse diminuído ligeiramente.
Chapinhavam e riam quando o viram. Foi ele o primeiro a vê-lo e quase entrou em pânico. O irmão percebeu logo que algo estava errado e seguiu o olhar dele. Uma enorme barbatana dorsal aproximava-se, rondando-os. Era um tubarão.
Media no mínimo uns três metros e meio. Descrevia círculos cada vez mais curtos em torno deles. Em breve, atacaria. Saltou fora de água e as dúvidas que tinham dissiparam-se: tratava-se de um grande tubarão branco.
Não podiam esperar impávidos e serenos. Tomaram uma resolução: iria cada um por seu lado para baralharem o bicho e tentarem chegar à segurança da costa, ali a uns escassos e simultaneamente distantes 100 metros. Teve medo. Não queria afastar-se do irmão. O irmão nadava muito melhor, era mais forte e mais corajoso do que ele e resolvia sempre os problemas. Mas tinha de ser. Tinham de se separar. O irmão olhou bem dentro dos seus olhos e disse-lhe: “Vai, vemo-nos na praia!” Sorriu por um breve instante e já se afastava dele com uma braçada vigorosa. Por seu turno, uma fracção de segundo depois, ele nadou afastando-se do irmão.
Só uns 15 metros depois olhou para trás. O tubarão tinha feito a sua escolha. Rondava o irmão e não o deixava aproximar-se da costa. Mas o irmão era um nadador exímio e haveria de safar-se. Nadou mais uns dois minutos e de novo olhou em volta. O irmão nadava paralelo a ele próprio, a uns 15 metros de si, num crawl desesperado, em direcção à praia. O tubarão estava prestes a atacar. Horrorizado, viu quando o bicho enorme saltou fora da água, as mandíbulas, imensas, abertas, abatendo-se já sobre o irmão, quando este, com uma finta incrível, saltou por seu turno para trás e para a direita, fazendo com que o mergulho fatal do bicho encontrasse no seu caminho apenas a água. Tinha sido por pouco. Mas o alívio não durou muito. De novo, a maldita barbatana voltou a surgir, uns 20 metros à frente. Nadava à esquerda do irmão. E parecia que se preparava para se pôr outra vez aos círculos em torno dele. Estava agora entre ambos e a costa, à esquerda do irmão, muito perto do irmão e a uns trinta metros de si mesmo. Na praia tinham-se apercebido do que se passava e era o pânico. Mas, alguns pescadores, armados com arpões, lançavam um barco à água. Olhou para o irmão. Os seus olhos encontraram-se com os dele. O irmão estava esgotado. Pareceu dizer-lhe com os olhos que aproveitasse a aberta e nadasse na direcção da praia. O tubarão aproximava-se de novo do irmão, desta vez sem hesitações nem círculos, numa linha recta perfeita. Maldito bicho, maldito! O irmão já não se mexia. Tinha fechado os olhos e parecia reunir as suas últimas forças. De súbito, virou-se e começou a nadar na direcção oposta, na direcção do mar alto. “Não!” gritou ele.
Esteve para se atirar para a frente do bicho, para se interpor entre este e o irmão, ainda tinha tempo para isso, era meia dúzia de braçadas e podia fazê-lo. Mas não o fez. Não foi capaz. Com os músculos todos retesados dentro de água, não foi capaz de um movimento. E agora já não valia a pena. Olhou para trás. O barco dos pescadores aproximava-se, lentamente, demasiado lentamente. Virou a cabeça para onde nadava o irmão. O tubarão deu um grande salto, a sua bocarra abriu-se gigantesca e com um som terrível de carne ossos estralhaçados cerrou-se em cheio sobre o tronco do irmão.

– Não, Não!
– Calma, o que foi, o que foi?
– O tubarão, o Pedro!
– Calma querido, foi um pesadelo, foi um pesadelo!

Abriu os olhos. De facto, nadava, mas no seu próprio suor. Tinha sido um pesadelo. Ao seu lado na cama, a mulher afagava-lhe o rosto, tentando tranquilizá-lo. Aos poucos foi normalizando a respiração.

– O que foi?
– Um pesadelo horrível. Um tubarão tinha morto o meu irmão.
– Calma querido, já passou, já passou, foi só um pesadelo.
– Sim, um pesadelo horrível.
– Já passou, vamos dormir, sim?
– Que horas são?

A mulher olhou para o relógio na mesinha de cabeceira do seu lado da cama.

– Seis e meia querido, ainda é muito cedo, vamos dormir.

Abraçou-se à mulher e fechou os olhos. Tentou afastar os pensamentos da cabeça. Não conseguiu. Deu uma, duas voltas na cama. Deixou-se estar, inquieto, mas ao fim de cinco minutos levantou-se. A mulher adormecera de novo. Dirigiu-se à cozinha e fez café. O café estava bom e sentiu-se momentaneamente reconfortado. Fumou um cigarro. Ia ser um dia longo, tinha muitas coisas importantes para tratar nesse dia. Mas a merda do sonho não o largava. Era só um sonho, é certo. Não era supersticioso nem tão pouco acreditava em premonições. Sabia que o irmão estava vivo e bem de saúde. Contudo, no sonho, deixara-o morrer sem esboçar um gesto. Tinha tido a oportunidade de se interpor entre o irmão e aquele bicho nojento e não o fizera. O medo tinha-o paralisado. Mas não era suposto ser ele o guardião do seu irmão?
Reflectiu que se se tivesse interposto quem teria morrido teria sido ele e não o irmão. Teria o egoísmo sido o motivo para nada ter feito? Ou será que tinha sido o medo, puro, o pânico irracional que o tubarão lhe provocava? Não o sabia. Mas o facto permanecia. Fosse pelo que fosse, medo irracional, ou interesse egoísta, ou um misto de ambos, ou instinto de sobrevivência, no sonho deixara morrer o irmão. O irmão mais novo, o irmão que já tinha filhos, o irmão que era melhor do que ele em todos os aspectos e que seria chorado por mais gente do que ele próprio. Tinha sido egoísmo? Fraqueza? Medo? Tudo junto? Não o sabia e não o saber atormentava-o.
Por esse motivo, e como tinha um dia longo pela frente, um dia em que teria de manter a cabeça fria e lúcida; em se iria jogar uma cartada importante no seu futuro, antes de tudo o mais sentou-se à secretária e escreveu; deitando para fora o sonho que o atormentava. Escrevendo-o e exorcizando-o, sublimando-o, por fim ultrapassando-o, nesta confissão que, agora, vos apresenta.

Porto, 23 Março de 1993, 07H45.