9.4.07

O Estranho



O estranho entrou silencioso no Bar do Ferro, demasiado silencioso, quer para o meu quer para o gosto do Ferro, por volta das duas da tarde, num dia de sol a um feriado, e foi sub-repticiamente encostar-se ao balcão, bem nas costas do Ferro, que se entretinha precisamente no momento em que o estranho entrou a arrefecer dois ovos cozidos na pia e fez de conta que não era nada com ele.

Eu, ao canto, apreciava o idílico cenário doméstico que se me oferecia à vista: os pombos lá fora arrulhando de volta dumas migalhas antigas; a mulher do tanoeiro mirando sem esperança o fim da rua de onde a viatura do patrão/amante geralmente surgia; e o próprio Ferro, descontraído, ocupado com os seus labores íntimos, ao mesmo tempo que eu fingia que lia o jornal, quando, enfim, desviei a atenção para o estranho.

O Ferro virou-se para ele no momento em que os meus olhos se cruzavam com os do estranho e aproveitou para o observar sem pressas. Nisto pareceu reparar que tinha os ovos nas mãos, fez descair a vista neles e disse em voz baixa, um pouco para si, um pouco para a plateia:

Tu arribas sempre à costa, arribas sempre, mais tarde ou mais cedo.

O estranho franziu os sobrolhos e não disse nada. Tinha os olhos fixos na bandeira do Brasil que o Ferro se esquecera de tirar do parapeito desde o último Mundial, em França, vestia bem e notava-se que fora recentemente à tosquia; os sapatos estavam engraxados e as calças traziam vinco.

Não era um cavalheiro, mas também não era um pato. Para mim não passava de um desconhecido, embora não me parecesse que fosse um pato; era um tipo estranho. O Ferro viu tudo isso por detrás dos seus grandes óculos graduados, enquanto eu me entretinha cofiando a barba rala e o estranho acendia um cigarro. Tabaco importado, o que indicava barcos, Gitannes, se não estou em erro.

Tudo parecia bem à superfície e contudo algo de perturbador se intrometera no doce princípio de tarde que resolvera proporcionar a mim próprio.

É verdade que no Bar do Ferro tudo o que é estranho não merece comentários, bem pelo contrário, e se calhar era por isso mesmo que nessa sexta-feira resolvera lá ir, trocar dois dedos de conversa e talvez almoçar com o velho, que não via há muito tempo, mas que permanecia sendo uma das poucas âncoras que ainda me prendiam ao mundo da vida real, do dinheiro, da saúde, da amizade e da necessidade em se preservar tudo isso, ao menos enquanto um tipo está vivo e o médico ainda não lhe diagnosticou cancro do pulmão, cirrose hepática ou SIDA, ou outras coisas que são muito piores mas que não se escrevem numa entrada de um blogue como este porque há pessoas que ainda não morreram e a quem talvez desagradasse esse tipo de confidência.

A verdade é que era sexta-feira e feriado e eu não tinha mais nada para fazer que me desse tanto ou tão pouco prazer como ler o jornal às duas da tarde no Bar do Ferro. Tinha acabado no dia anterior de pôr uma garota com dono, uma das boas, e sentia-me nostálgico sem me sentir culpado. Sentia-me bem e não iria deixar que um estranho qualquer se intrometesse nos planos que tinha delineado para o resto do dia. Afinal de contas, não só era feriado como também era sexta-feira e eu sentia-me deveras cansado.

Entretinha-me nestas considerações, embebido na contemplação das complicações a que fora sujeito um tal de Marquês de Saavedra, perscrutando o futuro nas rugas da nuca do Velho, apreciando ainda mais a mulher do tanoeiro, que apesar dos seus 30, 35 anos ainda estava uma pêssega muito apetecível, embora se estivesse marimbando para mim, que não para o Ferro, até que reparei que o estranho continuava aboletado ao balcão, sem dizer palavra, quando o Ferro, ruidosamente, lhe virou as costas e se voltou para um prato de legumes cozidos, pondo-se a descascar os ovos que havia arrefecido na pia.

O estranho parecia ausente. Durante uns vinte segundos não se ouviu nada a não ser o barulho da água que corria na pia, o murmúrio dos dedos ágeis do Ferro e as cascas dos ovos a caírem no saco verde do caixote de lixo.

Virei uma página do jornal, fazendo-a sacudir a atmosfera de propósito. A mulher do tanoeiro entrou para dentro do seu estabelecimento e não sei por que motivo senti um apetite tremendo.

Então o Ferro fechou calmamente a torneira e sem virar as costas falou:

Hoje não é dia de comer carne. Hoje não devemos comer carne. Ao menos uma vez por ano abster-me-ei de comer carne e celebrarei condignamente a morte de nosso Senhor.

Não percebi patavina, mas tendo em linha de conta que raramente percebo o Ferro e que isso em nada parece prejudicar o estreito relacionamento que com ele vou mantendo, fiz de conta que assobiava para o lado e tentei focar-me na leitura de uma reportagem acerca do Marques de Saavedra, o qual, afinal, parece que não será de todo em todo um marquês legítimo. O jornal prometia mais desenvolvimentos na semana seguinte.

Estava calor nessa sexta-feira e o pachorrento bairro lisboeta, escorado na preguiça primaveril da Alameda, parecia parado no tempo. Antes de entrar cruzara-me com os gandulos locais, que não me tinham visto e ainda bem tinha-os visto eu a eles enquanto jogavam à bola e tostavam os dorsos rebeldes em frente à Fonte Luminosa e pensara para com os meus botões que teria mais uma hora e meia, trinta, quarenta e cinco minutos de sossego no bar do Ferro, antes deles chegarem e ajavardarem o ambiente por completo.

Foi então que saquei duma esferográfica e me pus a rabiscar num guardanapo que agora me serve de cábula. Apetecia-me fumar um charro mas era cedo demais e por outro lado ainda não tinha almoçado.

O estranho continuava ao balcão, a mão direita no bolso das calças e a esquerda apoiada no cotovelo O Ferro lavava agora umas batatas. Imprimia um ritmo irritante à sua tarefa, um ritmo de quem não admite discussões nem está para brincadeiras. Da mulher do tanoeiro nem sombra.

Então, o estranho pigarreou, quase em câmara lenta, e disse, pausadamente, numa voz impessoal, metálica:

Se não queres comer carne, não comas ovos. Quero tomar um café, quando tiveres tempo. Comi uma açorda de pescada, com pão alentejano, alhinho, azeite, batatinha e coentrada. Foi a Maria que fez. Estava bom. Afinal, não bebo café. O café na tua casa não presta, sabe a água de lavar os tachos que ficaram por lavar do dia anterior.

O Ferro pousou docilmente os ovos na banca. Geria o silêncio assustador que a tirada do estranho provocara. A sua silhueta fazia lembrar um jogador nato; não acossado mas antes à espera da oportunidade de partir o outro aos pedacitos. Lembrei-me do taco que ele guardava por debaixo do balcão do bar. Senti umas gotículas de suor a formarem-se-me na testa.

Quando o Ferro se virou para o estranho já eu tinha colocado a história do Marquês de Saavedra, que afinal não é marquês de parte, preparado para a pior eventualidade, sabedor de que estava encurralado entre a casa de banho e eles os dois, com garrafas, cinzeiros e expositores de vidro entre os três.

Uma merda. Do mal, o menos, em último caso poderia sempre entrincheirar-me por detrás da minha mesa e rezar para que não entrasse mais ninguém antes de tudo estar terminado. Nem mesmo o Marquês de Saavedra eu queria ver a entrar nesse momento, apesar de não lhe dispensar qualquer simpatia.

De súbito, tudo se precipitou. Os olhos de ambos encontraram-se e pareceu-me observar-lhes algo de insólito, um súbito gesto de reconhecimento, uma ternura magoada, tudo misturado num ódio de alta intensidade que se desfez numa fracção de paz de segundo...

E então a mão do Ferro abriu-se e o braço estendeu-se.

O outro apertou-lha ao mesmo tempo que lhe passava uma nota de 50 novinha em folha para as unhas. Acenou um breve cumprimento ao Ferro, que lho retribuiu, quase solene, rodou os olhos pela casa de uma maneira que me pareceu muito triste, virou-nos as costas e foi-se embora.