10.12.06

O rival de sempre



Tudo estava bem encaminhado. Havia sido um árduo caminho até chegar aonde chegara. Mas agora tinha finalmente motivos para sorrir, e para seu próprio espanto não eram motivos egoístas ou cínicos, bem pelo contrário, eram motivos de alegria e de felicidade.

Começara como um brincadeira para matar o tempo, uma brincadeira inocente, porque já não suportava os amigos e a família a repetirem-lhe sempre e sempre a mesma ladainha. Estava farto do silêncio pesado aos domingos, em casa dos pais, sempre que a conversa esmorecia em torno da sua vida e do que iria fazer, agora que passara já um ano desde que Margareth falecera. E estava obstinado em queimar da sua vida uma palavra que passara a abominar desde que M nos deixara; a palavra “sempre”.

Estava também farto das esquivas dos amigos, sempre que se sentia cansado de estar em casa sozinho e lhes telefonava a perguntar se queriam ir beber um copo. Invariavelmente, sempre se escusavam de uma maneira mais ou menos delicada.

Ás vezes, até lhe parecia que tinha sarna e tinha vontade de os mandar a todos a um certo sítio. Depois, com calma, percebia que os amigos eram casados e não podiam pura e simplesmente mandar filhos e mulher para casa dos sogros só para irem beber copos e jogar poker com ele. E quando algum dos velhos comparsas o convidava para jantar, acabava sempre por se sentir como a roda suplente na linha do comboio da amena cavaqueira que se estabelecia entre os vários casais à roda do assado ou do rosbife.

Como passara a detestar os olhares compungidos com que, já depois da sobremesa, whiskies e brandies servidos, as mulheres dos amigos o brindavam! Odiava-as por isso e chegou até a contemplar a hipótese de aliciar algumas, e sabe Deus que umas poucas pareciam mesmo estar a pedi-lo. Mas nunca o fez. Julian sempre fora leal com os amigos, os amigos eram-lhe sagrados. Eram amigos e ponto final. Aí, não detestava a palavra sempre. A seu ver, um amigo era para sempre e ele sempre seria amigo do seu amigo. Sempre.

E assim, um pouco por diversão, um pouco porque não tinha nada melhor para fazer e por que se aborrecia de morte desde que ficara viúvo, resolveu que iria encantar aquela figura que, por mero acaso, surgira na sua vida, num jantar em casa dos pais. Chamava-se Angie, como na canção. Era bonita e subtil e parecia deslocada no ambiente luso-britânico da casa dos pais. Não deu à mãe a satisfação de lhe perguntar quem era aquela pêssega, mais sabia ele que a mãe decerto a convidara tendo-o a si em consideração. Não, não lhe deu essa satisfação, mas Angie agradou-lhe. Era algo que não podia definir mas que lhe agradava e resolver dedicar-se-lhe.

De certo modo, fazê-lo era também uma maneira de escapar ao fatalismo que o perseguia. De certo modo, acho que fazê-lo era uma maneira de Julian escapar à palavra que mais detestava, mesmo nos tempos em que a doença ainda não minara totalmente a sua relação com Margareth; a palavra “sempre”.

E agora ali estava ele, excitado com a surpresa que a vida achara finalmente por bem oferecer-lhe. A princípio tinha sido apenas e só um jogo. É claro que no seu íntimo também desejava saber se ainda possuía aquele poder que os seus antigos colegas da faculdade (entre os quais me incluo) sempre, sempre lhe haviam invejado.

Se ainda tinha dentro dele a capacidade de seduzir uma mulher. Não de seduzir uma criança, essas sempre lhe tinham sido fáceis em demasia. Mas seduzir a uma mulher. De seduzir a uma mulher que estivesse ao seu nível e que lhe desse luta. Uma mulher que não fosse em meias cantigas ou em palavras baratas. Uma mulher a sério. Uma mulher que lhe exigisse tudo e a quem ele em troca também tudo pudesse exigir.

E pensar que tudo começara como uma brincadeira! Dois meses depois e muitas horas na companhia dela, ali estava ele, como se fosse um colegial, suspenso das suas palavras, dos seus gestos, das suas brincadeiras, do seu jeito de o fazer sentir-se completo como nunca se sentira antes. Ali estava ele, a telefonar todas as noites ao seu melhor amigo, que vivia na outra ponta do país, ao seu melhor amigo que tinha coisas sérias em que pensar, maçando-o madrugada fora com os relatos da beleza dela, da astúcia dela, das fraquezas dela que a seus olhos só a tornavam mais encantadora, mais charmosa, mais tudo, mais ainda tudo do que como fora com Margareth!

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Naquele sábado telefonou-me outra vez eram três da manhã e eu estava muito cansado, mas como o Julian sempre foi meu amigo, resolvi escutá-lo, nem que fosse porque a um amigo não se nega nada. A história que me relatou não a acreditei então mas fui forçado a acreditá-la na manhã seguinte.

Surpreendera-a a beijar outro melro. Senti no calor das suas palavras que tinha bebido. E muito. Mas parecia perigosamente lúcido. Disse-me que sempre a vida o tratara assim. Primeiro, quando o cancro lhe roubara a avó, a mulher que o criara quando os pais tinham ido ganhar a vida em Inglaterra. Depois, quando outra doença que os médicos nunca haviam definido lhe roubara Margareth. Mas agora, assegurou-me friamente, o feitiço ia virar-se contra o feiticeiro.

O rival de sempre não lhe ia roubar Angie, nem pensar, ia ele roubar o rival. Ele encarregar-se-ia disso. Meio estremunhado, não percebi o que me queria dizer. Afinal, quem era o rival, questionei-o. Disse que o rival era o de sempre mas que desta vez quem se ficaria a rir era ele e não o rival. Não percebi e disse-lhe para ter juízo. Recomendei que se fosse deitar, pois era já muito tarde e no dia seguinte falaríamos.

No dia seguinte, o jornal contou-me o resto da história: Julian estava preso. Tinha-os morto a ambos. A Angie e a um tipo chamado Paul. Chamado Paul Always.