13.12.06

O grupo dos cães danados



O Bar do Ferro ainda existe apesar de ter mudado de rua à pala da “remodelação” que a Musgueira sofreu há atrasado. Mudou de sítio, mas a canalha é a mesma e até as baratas parecem ter acompanhado o resto da escumalha na mudança. E que dia épico esse foi, quando a vizinhança do novo bairro do Bar do Ferro deu fé de que a sua propriedade, a qual tão pouco já então valia, passara, de um dia para o outro, a valer o que vale a vida de um gajo que viva os dias enfurnado no Bar do Ferro, ou seja, nada: zero

Como é que o Ferro consegue evitar que a fiscalização lhe feche a porta é uma coisa que ninguém nunca perceberá lá muito bem. Nem no poiso antigo, nem agora no mais moderno. É assim uma merda que parece um anacronismo, e se bem que há uns anos atrás passasse horas e horas a discorrer com os meus botões sobre tão intrigante matéria, hoje em dia não dou dois peidos pelo assunto. Que se foda, é como é e pronto. É como a Religião, não se explica, e a bem dizer, quer a mim quer a ele, até nos convém.

Isto, se bem que eu cá tenha a minha teoria, que tem a ver com eu achar o Ferro um dos bacanos mais “diplomáticos” que alguma vez tive o prazer de conhecer. Mas na volta não será só isso. Enfim, suponho que sejam ainda os “contactos” do Pastor, ou talvez seja tão somente por intermédio dos “bons ofícios” do nosso amigo Olívio, o qual nunca brinca em serviço, e que quando olha um tipo da fiscalização nos olhos até parece que o homem se vai borrar instantaneamente, vítima de um súbito e inexplicável surto de difteria.

Mas eu já vos tenho dado conta de como é a que as coisas se passam com o nosso amigo cigano. O Olívio é um amigão do peito, até porque tê-lo por inimigo, só vos digo que é encurtar abruptamente a esperança de vida a um gajo.

De qualquer maneira, amigos ou não, hoje em dia é muito raro ir ao Bar do Ferro. Tenho outra vida, tenho uma mulher que me agrada, e meti-me em tantas ou tão poucas complicações quando aquela era uma espécie de segunda casa para mim, que actualmente se lá entro de dois em dois meses já é muito. Continuo a lá ir porque não sou gajo para mandar à merda os amigos e porque ultimamente o negócio corre mal ao Ferro, e o Pastor está doente.

Nem é por causa das recordações que evito lá pôr os pés. Okey, eu sei que é uma merda um gajo lembrar-se de andar ao soco e à facada, dia sim dia sim, e de a bebedeira ser num tipo um estado crónico, mas não é por isso.

É porque aquela porra já nada me diz. Foda-se, estou farto de chulos, putas, vadios, gatunos, traficantes, assassinos, e é só isso. Acho que é compreensível e que o Ferro não me leva a mal, por eu me cortar em ir à casa onde ele me ajudou a aprender a atacar os meus sapatos e a não ter vergonha de as solas estarem esburacadas, antes de me passar uma fusca para as unhas e dizer que eu agora já merecia fazer parte da matilha.

É verdade que quando lá entro, não há um único melro que me levante a voz, nem sequer os putos “patrocinados” pela nike, armados em valentes de brincos e correntes de ouro à solta, a nova geração, que procura ganhar uma reputação à conta de fazerem a folha a um duro dos antigos. Não, não tenho quaisquer espigas no bar do Ferro. É que, em primeiros, eu agora porto-me sempre bem e nunca mais lá me voltei a embebedar; em segundos, estão lá o Ferro, o Olívio e o Pastor, o Maine ainda vai aparecendo, e há sempre mais uns quantos primos obscuros e semi-afastados à mão de semear, só para o caso, e o resto da maralha sabe que eu faço parte do grupo dos cães danados, apesar de não o parecer.

Sou uma espécie de menino bonito do grupo dos veteranos, uma espécie de talismã para aqueles gajos, rudes, incultos e maus, mas para quem coisas como honra e amizade não são palavras vãs. É que temos entre nós um código, um código que remonta há uns oito, nove anos atrás.

E sou muito amigo dos quatro apesar de só ser íntimo mesmo do Ferro e do Olívio e de, com o Maine, uma vez quase ter chegado a vias de facto por causa de saias. A vaca da Sónia.

O Pastor é um caso à parte. No grupo é o gajo que mais respeitamos. O Pastor é raro até a falar. Quando fala, abaixamos todos as orelhas. Até o Ferro, que é o dono da casa.

O Pastor foi de todos sempre o mais pacífico, o que nem de longe nem de perto constitui cartão de visita recomendável. Porque quando o Pastor se passa, não é como eu ou como o Maine. Até já tenho pensado que, no dia em que o Pastor morrer, deveremos mandar gravar na sua lápide: “Aqui jaz o Pastor. Uma espécie de António Aleixo do banditismo, nunca fez mal a ninguém, desde que ninguém lhe fizesse mal a ele.”

A coisa é que hoje em dia temos pouco para dizer uns aos outros; eles continuaram criminosos e eu que só o fui por necessidade extrema deixei de o ser há long, long time, e dou graças a Deus, a nosso senhor Jesus Cristo, a nossa senhora sua Mãe e ao Patriarca Miguel, todos os dias. E, por isso e mais algumas merdas que fiz e já esqueci, vou cada vez menos ao bar do Ferro.

Mas, no Domingo vou lá estar outra vez.

Ainda há uns 10 minutos recebi a esse propósito um telefonema do Olívio. O cabrão do Olívio não me falava há uns bons três meses, desde que fomos jantar juntos, e a única coisa que disse, foi: “No Domingo, não te baldas, pois não?” O sacana nem me deu tempo para responder. Se calhar, estava a ligar do telemóvel e não me quis causar sarilhos. Ou na volta não. É mesmo uma onda à Olívio.

Para perceberem melhor a onda do Olívio, atentem no seguinte episódio: Há coisa duns dois anos, não via o Olívio fazia pelo menos seis meses, vou muito bem a descer a Almirante Reis, todo lindo, barbinha feita, cabelinho à pente dois e vaidoso que até metia nojo no casaco de cabedal que a minha gaja da altura me tinha oferecido, dou de caras com o Olívio, à porta da Portugália. Como se nos tivéssemos separado no dia anterior, nem me estendeu o bacalhau, pôs-me a patorra peluda no ombro e disse: “Anda, tava à tua espera, bora beber um copo.” E fomos.

Quando há bocado me ligou, não me causou estranheza nenhuma. Já estava à espera duma cena dessas ou parecida. A bem dizer, telefonassem-me ou não até já tinha comprado um tabuleiro e umas pedras de xadrez que me levaram uma porção bestial do meu orçamento, o qual nada tem nada a ver com o que era noutros tempos, vicissitudes de me ter me ter feito honesto, mas gastei essa guita e sem remorsos por dois belos motivos; em parte, para não fazer feio; e em parte, porque sempre me deu um gozo bestial quando o Ferro arreganha a tacha e me diz, aqueles olhos azuis a faiscar: “Ah, grande Lobo, sabes bem que só jogo às damas!..”

É que, sabem, no Domingo é o aniversário do Ferro e por uma data de razões que não valia a pena estar aqui a enunciar, essa é uma ocasião que não perdia por nada deste mundo. Por nada deste, ou de outro mundo qualquer.