21.12.06

Caminhando


Lembro-me ainda muito bem (agora, talvez melhor do que nunca) daquela prenda que os meus pais me ofereceram. Tinha eu os meus seis anos, e presentearam-me com um belo papagaio vermelho. Voava que era uma maravilha; parecia que quando o vento o fazia levitar gentilmente, nada mais importava. Eu cá em baixo, invejando-o, desejando poder voar como ele e, tal e qual, poder ver o mundo lá do alto. Ás vezes penso como seria bom voltar àqueles tempos. Aos 25 estava eu a acabar o curso. Aquilo é que foi uma festa. Eu e os meus melhores amigos, o Zé e o Miguel. Grande bebedeira; ainda me consigo rir ao pensar que até hoje a festa é apenas uma grande branca na cabeça do Miguel. E como esquecer a primeira namorada? A Ana do 6ºC, de cabelos e olhos castanhos, um sorriso do tamanho do mundo. O dia mais feliz da minha vida foi quando o Joãozinho nasceu, três anos depois do meu casamento. Aqueles grandes olhos claros fixados em mim, curiosos e vivos, transportando a esperança do mundo, mostraram-me que nem tudo está perdido nesta vida. Ora, ora! Há quanto tempo não me lembrava disto? O dia em que o meu pai me quis ensinar a conduzir, aos 15. Acho que a imagem do Ford todo espatifado à frente lhe ficou gravada na memória. Ah, mãe! Será que te agradeci tudo o que me ensinaste? Todo o apoio e carinho que me deste? Aos 32 casei. Conheci-a na casa do Zé. Fiquei absorvido pelo brilho dos seus olhos do azul mais puro e pelo seu rosto de uma inocência quase infantil. A partir daí nunca mais nos largámos. Tanto ficou por dizer tanto ficou por fazer tanto ficou por lembrar nunca há tempo nunca há vagar porra! Nunca há tempo p’ra ver o sol p’ra admirar o mundo p’ra te olhar nos olhos p’ra me perder neles! Não há vagar p’á puta da vida p’ra dizer que te amo e que és tudo p’ra mim e que sem ti não sou eu mas sombra da Morte o fantasma de um homem. Porquê hã porquê!? Ele é trabalho ele é contas ele é dívidas ele é um monte de merdas sem sentido e que não servem p’ra nada! P’ra rigorosamente nada! Nada! Há agora tem que haver eu quero que haja! Eu quero! Quero!... …Eu quero... Mas não há… Enfim, ainda vivi bons tempos… e são estes que prefiro lembrar. Para me alegrar, talvez? Ou para me convencer de que fui um homem bom, apesar de tudo? Fui feliz? Não sei. E agora, não interessa muito, é tarde. Estou na minha última caminhada, a mais longa de todas, mas a mais breve. Ouvi dizer, já não sei onde, que não dói nada. É o que digo ao Joãozinho quando o levo ao médico: é só uma pica, campeão. Vais ver que passa num instante é só uma pica passa logo não vou sentir não vou saber, depois, é só esperar, perdido em memórias, vivendo de novo, espero o desnascer, o partir, sozinho, no escuro, nú, indefeso, chorando por ti, pela saudade que terei, pela dor que vou deixar, só, sem pensar mais sem sentir mais sem saber mais. Já a sinto chegar. Abraça-me. Embala-me. Leva-me contigo. Diz-me que tudo está bem e leva-me… até ao fim sem retorno… naquela nova viagem.