Tinha de acontecer. Ao fim de trinta e oito anos de uma vida passada nos meandros menos claros da existência, vida essa envolvida em situações mais ou menos obscuras, na companhia de pessoas pouco ou nada recomendáveis e com diversos pecados e pecadilhos escondidos nos cantos do sótão mais inacessível da minha consciência, obviamente, era fatal que o dia de hoje, ou melhor, a sua madrugada, mais tarde ou mais cedo, tinha de ter um lugar e, na verdade, o estranho era que tivesse tardado tanto a acontecer.
Mesmo assim, ser acordado às seis da manhã com alguém a tocar à porta como se nos quisesse deitar a casa abaixo não me fez logo pensar em sarilhos (devo estar a ficar soft) e o meu primeiro impulso foi abrir a porta a ver quem era. Nisto, zás, dois paisanos de olhinhos ruins e de tacha arreganhada do lado de lá da soleira fizeram logo com que se me saltassem as campainhas de alarme, só que já era tarde. Então, quando num timbre que não admitia desmandos o mais velho dos dois mecos se anunciou, «Polícia Judiciária, como se chama?», senti um nó na garganta e lamentei amargamente não me ter deixado estar tranquilamente na cama, tão quentinha, macia, aveludada que a tinha deixado.
Fosse como fosse, nos meus preparos ridículos, de cuecas e de tronco nu, sem me ter precavido com o trinco de segurança, ali estava eu, nada havia a fazer, os sabugos tinham-me caçado como mandam os livros (de madrugada, de madrugada que é quando os meliantes dormem), e eu lá me vi a responder, tentando afastar da postura e da voz quaisquer indícios de comportamento culposo: «Lúcio Ferro, Lúcif para os amigos, Sr. Comandante, de que se trata?..» O mainato mais velho sacou da carteira, enfiou-me um cartão com o devido dístico pelos olhos dentro e retrucou à queima-roupa: «Inspector, se faz favor, Inspector, conhece uma tal de Sílvia Pinto? A dita Sílvia Pinto reside aqui? O seu nome é mesmo Lúcio Ferro? O que faz o senhor na vida?»
A salva de perguntas assim disparada era suficiente para embebedar um peru em véspera de Natal mas eu tinha tanto sono e tanta vontade de regressar ao meu ninho quentinho que nem dei fé do tom agressivo com que era interpelado.
Sílvia Pinto? Não, não me lembrava de nada que metesse gajas com sobrenome e isso tranquilizou-me. É certo que havia uma Sílvia que conhecia dumas cóboiadas no Porto, mas não era Pinto nenhum; havia a Sílvia com quem o meu amigo Hel tinha andado embrulhado, mas essa era mesmo é gavião; havia também a Sílvia "bicos" que conhecia do Intendente, e havia ainda uma outra Sílvia, do Bairro Alto, a quem eu pagara uns jantarinhos e mais umas flores e assim, essa belíssima gralha, uma cabra ladrona. Mas Pinto? «Não, senhor Comandante, não conheço nenhuma Sílvia Pinto, moro aqui sozinho e asseguro-lhe de que me chamo Lúcio Ferro, Lucif para os amigos.»
O sabugo arreganhou outra vez a tacha e o finório mais novo ensaiou meter a patinha a obstruir a porta, estava-se mesmo a ver de que tinham a mania que eram duros e meti logo o meu pé de permeio que isso de pôr o pezinho em ramo verde não me agrada, sobretudo quando se trata de ramo que me pertence de arrendamento escrito e notariado e o finório lá recuou a patinha enquanto ia desafinando, em voz de pássaro-cantor semi-assinistrado pelas vicissitudes dos galhos alheios: «Isso não são maneiras de falar com o senhor Inspector, senhor Lúcio Ferro, Não são maneiras... Conhece ou não Sílvia Pinto? Está ou não sozinho em casa?»
Toda a atitude daquele meco me fazia lembrar um filme negro da série B, só que não estávamos em Hollywood e por outro lado eu tinha demasiado sono para comédias de crianças e assim num repelão abri a porta em toda a sua extensão, deixando-os avaliar longamente o meu magnífico torso, os meus esplêndidos glúteos e, claro está, o avantajado enchumaço que trago no meio das pernas até lhes dizer, já com cara de quem não vai em passaradas: «Chamo-me Lúcio, Lúcio Ferro, Lucif para os amigos, gosto sempre de ter a Lei por amiga e pessoa de bem, Comandante e não conheço Sílvia Pinto alguma. Estou sozinho em casa (era mentira mas eles não tinham nada a ver com isso) e se quiser ver ou saber mais é bom que tenha um mandado, isto não é um regime fascista, pois não?»
Os gajos recuaram, meio desconcertados com a minha tirada estrambólica, reavaliando quem tinham à sua frente, refazendo os seus juízos, devia de ser por causa dos glúteos, até que o passarão mais velho tossicou e, delicodoce, embora com olhinhos assassinos, me lançou mais uma bicada: «O senhor é um brincalhão, senhor Lucif, mas na polícia não gostamos de brincalhões. O que faz na vida, de uma vez por todas?»
Farto dos tipos e já sabedor de que não tinham vindo por mim (de nome vulgar ou de Pinto nada tenho), respondi-lhes como que a descaso: «Ah, a minha profissão? Sou jornalista, claro (sabia bem o que dizia apesar de não ser bem verdade, ser jornalista é algo que cai sempre bem junto de melros destes, metem logo a cabecinha na areia), mas, geralmente, a estas horas costumo estar a dormir, como todos os outros cidadãos cumpridores», despachei, sardónico.
Olharam um para o outro, à procura de mais milho que me pudessem atirar, percebi que nem migalhas de pão já tinham e o tucano mais velho, ainda mais delicodoce, lá me foi piando um «muito obrigado pela sua colaboração, senhor Lúcio Ferro, estamos apenas a fazer o nosso trabalho e... Claro que iremos verificar o que nos disse...»
«Isso», respondi eu, «verifiquem, verifiquem, podem começar pela passarona aí da minha vizinha», acompanhando as palavras com o gesto da mão a apontar a porta do lado, rematando que compreendia, «que estavam apenas a fazer o seu trabalho» e que se me fossem «dando licença voltava para a cama, ia ter um dia longo na redacção, passar muito bem, muito obrigado». Então, vendo que os tipos nada mais grasnavam nem sequer continuavam a enfunar as suas poses com alegadas penas judiciarescas, de mansinho dei por terminado, julgo que de comum acordo, aquele tegaté surrealista e, devagarinho, fui cerrando a porta, com um ou dois taxativos «bom dia» à mistura com um cordial «adeus» implícito no gesto, até a fechar por completo.
Fingi afastar-me mas, como quem não quer a coisa, deixei-me estar à escuta a ver se lhes ouvia as patinhas a despedirem-se com o bico a dar a dar, mas os abutres não arredavam pé e do lado de lá topei-lhes um cacarejar mais ou menos assim: «Chefe, vai deixar este gambozino fazer pouco de nós? Calma, Antunes, calma, o tipo não sabe de nada e, a bem dizer, nós é que viemos chatear o gajo de madrugada. Olhe, toque aí à vizinha, no mínimo ficamos a saber o que já desconfio. O quê, chefe, o quê? Que viemos aqui ao engano Antunes, ao engano, chiça!»
Ouvi-os tocar à campainha e, pé ante pé, ainda meio apardalado, lá fui andado em direcção ao quarto de dormir. Sentia-me ensonado, estremunhado, vazio. A bocejar deitei-me e o calor que emanava do corpo da bela avezinha que engatara com chilreios românticos e canções proíbidas na noite anterior fez-me sentir protegido, como um passarinho de regresso ao ninho. Em menos de nada caí no sono e esqueci-me de tudo.
Acordei bastante mais tarde, com um, dois, três, quatro beijos melosos no rosto e nos lábios. Abri os olhos e lá estava a minha avezinha, bonita, a sorrir para mim. Sentei-me na cama, pigarreei, reparei que ela já estava vestida e perguntei as horas: «Dez da manhã, meu querido, tenho de ir trabalhar», toma mais beijos, agora no peito e já a seguir no pescoço, «tenho de ir trabalhar, mas volto, adorei, meu gatarrão, adorei!». Adorou, dizia a gaja, que tinha adorado, maravilha, afinal de contas a bebedeira que me dera o lustre conversacional para a engatar não prejudicara o meu desempenho viril e, outra vez a sentir-me entesoado, satisfeito, preguei-lhe um linguado de truz que terminei a seco, talvez um pouco bruscamente demais, ao ser invadido por uma dúvida, uma dúvida que me gelou os ossos e me arrepiou a pele. Ao afastá-la, tacteando-lhe os seios, deitei-lhe a bisca, a ver se pegava ou se estava enganado: «Gostaste mesmo, doce?.. Gostaste?.. Sílvia?..»
De repente, o meu rouxinol meloso transformou-se pterodáctilo brutal: «Sílvia?!? Sílvia?!? Quem julgas que sou, meu sacana, quem julgas que sou?!?» Afastei-me logo do bicho e fingindo um conhecimento que não possuía, sem fazer pevide de como realmente se chamava, gritei, suplicante: «Desculpa, querida, desculpa, enganei-me, enganei-me!» Ela, furibunda, aplicou-me uma sonora bofetada que por pouco não me trilhava os dentes na boca, saiu do quarto possessa, bateu com a porta da rua e desapareceu a duzentos à hora, sem ao menos me dar tempo para lhe cravar o número de telefone.
Apalpei o rosto e não senti sangue, apenas uma espécie de queimadura no lábio superior, espreguicei-me e pus-me a fazer o inventário da coisa. Fora beber caipirinhas na noite anterior. Tinha conhecido aquela gaja num bar qualquer e levara-a para a cama. Dissera-lhe «nunca conheci ninguém como tu», mas depois do sexo (ouch!) e dormíramos abraçados. Pois, tinha sido mesmo isso. Quem quer que a tipa fosse. Depois lembrava-me de dois falcões à procura duma outra gaja. Pois, era isso mesmo, essa outra gaja é que se chamava Sílvia. Sílvia quê?
Afastei o assunto da cabeça, levantei-me pesadamente e ainda como me deitara fui até à cozinha preparar café. Enquanto este subia pensei no que tinha para fazer e cheguei à conclusão de que não fazia nada. Não fazia nada? Não podia ser. Bem, tinha sido jornalista, mas há uns bons 5 anos que não alapava o traseiro numa secretária de redacção. Pois, já me recordava, eu agora era escritor, tinha até dois livros publicados, mas há mais de seis meses que não escrevia nem uma linha, andava bloqueado, não era?
Por fim, sorvi o café em goles demorados e deixei-me ficar sentado na mesa da cozinha a apanhar o sol que me chegava da marquise. Depois fumei um cigarro, que me soube bastante bem. Quando finalmente me ergui da cadeira tudo pareceu encaixar-se e fazer sentido, por mais estúpido que ele fosse. Os bófias, a avezinha furibunda, as caipirinhas, os lençóis revolvidos e manchados, uma tipa chamada Sílvia Pinto procurada pela polícia. Teria sido um sonho? Pouco importava, sorri, cheguei até a gargalhar, era material de primeira água e ainda de cigarro no canto da boca peguei na malga de café, meti uma perna à frente da outra e a esvoaçar na minha nuvem pessoal fui sentar-me à secretária a escrever um texto de estalo.
Mesmo assim, ser acordado às seis da manhã com alguém a tocar à porta como se nos quisesse deitar a casa abaixo não me fez logo pensar em sarilhos (devo estar a ficar soft) e o meu primeiro impulso foi abrir a porta a ver quem era. Nisto, zás, dois paisanos de olhinhos ruins e de tacha arreganhada do lado de lá da soleira fizeram logo com que se me saltassem as campainhas de alarme, só que já era tarde. Então, quando num timbre que não admitia desmandos o mais velho dos dois mecos se anunciou, «Polícia Judiciária, como se chama?», senti um nó na garganta e lamentei amargamente não me ter deixado estar tranquilamente na cama, tão quentinha, macia, aveludada que a tinha deixado.
Fosse como fosse, nos meus preparos ridículos, de cuecas e de tronco nu, sem me ter precavido com o trinco de segurança, ali estava eu, nada havia a fazer, os sabugos tinham-me caçado como mandam os livros (de madrugada, de madrugada que é quando os meliantes dormem), e eu lá me vi a responder, tentando afastar da postura e da voz quaisquer indícios de comportamento culposo: «Lúcio Ferro, Lúcif para os amigos, Sr. Comandante, de que se trata?..» O mainato mais velho sacou da carteira, enfiou-me um cartão com o devido dístico pelos olhos dentro e retrucou à queima-roupa: «Inspector, se faz favor, Inspector, conhece uma tal de Sílvia Pinto? A dita Sílvia Pinto reside aqui? O seu nome é mesmo Lúcio Ferro? O que faz o senhor na vida?»
A salva de perguntas assim disparada era suficiente para embebedar um peru em véspera de Natal mas eu tinha tanto sono e tanta vontade de regressar ao meu ninho quentinho que nem dei fé do tom agressivo com que era interpelado.
Sílvia Pinto? Não, não me lembrava de nada que metesse gajas com sobrenome e isso tranquilizou-me. É certo que havia uma Sílvia que conhecia dumas cóboiadas no Porto, mas não era Pinto nenhum; havia a Sílvia com quem o meu amigo Hel tinha andado embrulhado, mas essa era mesmo é gavião; havia também a Sílvia "bicos" que conhecia do Intendente, e havia ainda uma outra Sílvia, do Bairro Alto, a quem eu pagara uns jantarinhos e mais umas flores e assim, essa belíssima gralha, uma cabra ladrona. Mas Pinto? «Não, senhor Comandante, não conheço nenhuma Sílvia Pinto, moro aqui sozinho e asseguro-lhe de que me chamo Lúcio Ferro, Lucif para os amigos.»
O sabugo arreganhou outra vez a tacha e o finório mais novo ensaiou meter a patinha a obstruir a porta, estava-se mesmo a ver de que tinham a mania que eram duros e meti logo o meu pé de permeio que isso de pôr o pezinho em ramo verde não me agrada, sobretudo quando se trata de ramo que me pertence de arrendamento escrito e notariado e o finório lá recuou a patinha enquanto ia desafinando, em voz de pássaro-cantor semi-assinistrado pelas vicissitudes dos galhos alheios: «Isso não são maneiras de falar com o senhor Inspector, senhor Lúcio Ferro, Não são maneiras... Conhece ou não Sílvia Pinto? Está ou não sozinho em casa?»
Toda a atitude daquele meco me fazia lembrar um filme negro da série B, só que não estávamos em Hollywood e por outro lado eu tinha demasiado sono para comédias de crianças e assim num repelão abri a porta em toda a sua extensão, deixando-os avaliar longamente o meu magnífico torso, os meus esplêndidos glúteos e, claro está, o avantajado enchumaço que trago no meio das pernas até lhes dizer, já com cara de quem não vai em passaradas: «Chamo-me Lúcio, Lúcio Ferro, Lucif para os amigos, gosto sempre de ter a Lei por amiga e pessoa de bem, Comandante e não conheço Sílvia Pinto alguma. Estou sozinho em casa (era mentira mas eles não tinham nada a ver com isso) e se quiser ver ou saber mais é bom que tenha um mandado, isto não é um regime fascista, pois não?»
Os gajos recuaram, meio desconcertados com a minha tirada estrambólica, reavaliando quem tinham à sua frente, refazendo os seus juízos, devia de ser por causa dos glúteos, até que o passarão mais velho tossicou e, delicodoce, embora com olhinhos assassinos, me lançou mais uma bicada: «O senhor é um brincalhão, senhor Lucif, mas na polícia não gostamos de brincalhões. O que faz na vida, de uma vez por todas?»
Farto dos tipos e já sabedor de que não tinham vindo por mim (de nome vulgar ou de Pinto nada tenho), respondi-lhes como que a descaso: «Ah, a minha profissão? Sou jornalista, claro (sabia bem o que dizia apesar de não ser bem verdade, ser jornalista é algo que cai sempre bem junto de melros destes, metem logo a cabecinha na areia), mas, geralmente, a estas horas costumo estar a dormir, como todos os outros cidadãos cumpridores», despachei, sardónico.
Olharam um para o outro, à procura de mais milho que me pudessem atirar, percebi que nem migalhas de pão já tinham e o tucano mais velho, ainda mais delicodoce, lá me foi piando um «muito obrigado pela sua colaboração, senhor Lúcio Ferro, estamos apenas a fazer o nosso trabalho e... Claro que iremos verificar o que nos disse...»
«Isso», respondi eu, «verifiquem, verifiquem, podem começar pela passarona aí da minha vizinha», acompanhando as palavras com o gesto da mão a apontar a porta do lado, rematando que compreendia, «que estavam apenas a fazer o seu trabalho» e que se me fossem «dando licença voltava para a cama, ia ter um dia longo na redacção, passar muito bem, muito obrigado». Então, vendo que os tipos nada mais grasnavam nem sequer continuavam a enfunar as suas poses com alegadas penas judiciarescas, de mansinho dei por terminado, julgo que de comum acordo, aquele tegaté surrealista e, devagarinho, fui cerrando a porta, com um ou dois taxativos «bom dia» à mistura com um cordial «adeus» implícito no gesto, até a fechar por completo.
Fingi afastar-me mas, como quem não quer a coisa, deixei-me estar à escuta a ver se lhes ouvia as patinhas a despedirem-se com o bico a dar a dar, mas os abutres não arredavam pé e do lado de lá topei-lhes um cacarejar mais ou menos assim: «Chefe, vai deixar este gambozino fazer pouco de nós? Calma, Antunes, calma, o tipo não sabe de nada e, a bem dizer, nós é que viemos chatear o gajo de madrugada. Olhe, toque aí à vizinha, no mínimo ficamos a saber o que já desconfio. O quê, chefe, o quê? Que viemos aqui ao engano Antunes, ao engano, chiça!»
Ouvi-os tocar à campainha e, pé ante pé, ainda meio apardalado, lá fui andado em direcção ao quarto de dormir. Sentia-me ensonado, estremunhado, vazio. A bocejar deitei-me e o calor que emanava do corpo da bela avezinha que engatara com chilreios românticos e canções proíbidas na noite anterior fez-me sentir protegido, como um passarinho de regresso ao ninho. Em menos de nada caí no sono e esqueci-me de tudo.
Acordei bastante mais tarde, com um, dois, três, quatro beijos melosos no rosto e nos lábios. Abri os olhos e lá estava a minha avezinha, bonita, a sorrir para mim. Sentei-me na cama, pigarreei, reparei que ela já estava vestida e perguntei as horas: «Dez da manhã, meu querido, tenho de ir trabalhar», toma mais beijos, agora no peito e já a seguir no pescoço, «tenho de ir trabalhar, mas volto, adorei, meu gatarrão, adorei!». Adorou, dizia a gaja, que tinha adorado, maravilha, afinal de contas a bebedeira que me dera o lustre conversacional para a engatar não prejudicara o meu desempenho viril e, outra vez a sentir-me entesoado, satisfeito, preguei-lhe um linguado de truz que terminei a seco, talvez um pouco bruscamente demais, ao ser invadido por uma dúvida, uma dúvida que me gelou os ossos e me arrepiou a pele. Ao afastá-la, tacteando-lhe os seios, deitei-lhe a bisca, a ver se pegava ou se estava enganado: «Gostaste mesmo, doce?.. Gostaste?.. Sílvia?..»
De repente, o meu rouxinol meloso transformou-se pterodáctilo brutal: «Sílvia?!? Sílvia?!? Quem julgas que sou, meu sacana, quem julgas que sou?!?» Afastei-me logo do bicho e fingindo um conhecimento que não possuía, sem fazer pevide de como realmente se chamava, gritei, suplicante: «Desculpa, querida, desculpa, enganei-me, enganei-me!» Ela, furibunda, aplicou-me uma sonora bofetada que por pouco não me trilhava os dentes na boca, saiu do quarto possessa, bateu com a porta da rua e desapareceu a duzentos à hora, sem ao menos me dar tempo para lhe cravar o número de telefone.
Apalpei o rosto e não senti sangue, apenas uma espécie de queimadura no lábio superior, espreguicei-me e pus-me a fazer o inventário da coisa. Fora beber caipirinhas na noite anterior. Tinha conhecido aquela gaja num bar qualquer e levara-a para a cama. Dissera-lhe «nunca conheci ninguém como tu», mas depois do sexo (ouch!) e dormíramos abraçados. Pois, tinha sido mesmo isso. Quem quer que a tipa fosse. Depois lembrava-me de dois falcões à procura duma outra gaja. Pois, era isso mesmo, essa outra gaja é que se chamava Sílvia. Sílvia quê?
Afastei o assunto da cabeça, levantei-me pesadamente e ainda como me deitara fui até à cozinha preparar café. Enquanto este subia pensei no que tinha para fazer e cheguei à conclusão de que não fazia nada. Não fazia nada? Não podia ser. Bem, tinha sido jornalista, mas há uns bons 5 anos que não alapava o traseiro numa secretária de redacção. Pois, já me recordava, eu agora era escritor, tinha até dois livros publicados, mas há mais de seis meses que não escrevia nem uma linha, andava bloqueado, não era?
Por fim, sorvi o café em goles demorados e deixei-me ficar sentado na mesa da cozinha a apanhar o sol que me chegava da marquise. Depois fumei um cigarro, que me soube bastante bem. Quando finalmente me ergui da cadeira tudo pareceu encaixar-se e fazer sentido, por mais estúpido que ele fosse. Os bófias, a avezinha furibunda, as caipirinhas, os lençóis revolvidos e manchados, uma tipa chamada Sílvia Pinto procurada pela polícia. Teria sido um sonho? Pouco importava, sorri, cheguei até a gargalhar, era material de primeira água e ainda de cigarro no canto da boca peguei na malga de café, meti uma perna à frente da outra e a esvoaçar na minha nuvem pessoal fui sentar-me à secretária a escrever um texto de estalo.
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