23.8.08

Pais e filhos



«(...) O nosso relacionamento era bom, se bem que moldado por um certo acanhamento; por vezes tinha a sensação de que ele me lia os mais íntimos pensamentos, que me prescrutava sem ter de me fazer perguntas. Na altura em que ele ainda era vivo pensava ser muito diferente dele, embora me agradassem, talvez em demasia, as mulheres com quem se passeava. Acho que, nesse particular mundano, tínhamos gostos muito semelhantes. Cheguei mesmo a sentir um vago ciúme da maneira pela qual as minhas amigas o olhavam e falavam dele.

Médico, trabalhava muito, tinha-se especializado em psiquiatria na Inglaterra e, aparentemente, gostava da profissão, embora com ela ganhasse imenso dinheiro, coisa que era contrária aos seus princípios marxistas. Austero, não era dado a falas brejeiras mas, quando dizia algo, as suas palavras faziam sentido e elucidavam qualquer conversa.

Gostava de tratar doentes com depressões. Estava convecido de que a grande maioria destas tinha na sua génese repressões sexuais (foi por intermédio dele que me interessei por William Reich), associadas, dizia, a carências afectivas que remontavam ao ventre materno.

Quando a minha mãe morreu começou a ter mais namoros e a passar fins-de-semana fora com maior frequência, tendo aparecido um dia em casa com uma mulher bela que parecia muito interessada por ele. Mas, talvez por causa da consciência que tinha da loucura, não parecia levá-la a sério, o que a mim me perturbava muito.

Afinal, contrariamente ao que vagamente se chegou a recear no círculo mais fechado da família, de morrer com um problema cardíaco, veio súbita e estupidamente a falecer num acidente de automóvel, quando ia para clínica, como sempre fizera todos os dias, numa estrada que conhecia de olhos fechados, ao derrapar numa mancha de óleo e embater num camião de 10 toneladas. (...)»

A partir de um rascunho deitado fora por José Dias Ferro, homem de quem me orgulho de ser filho.