17.6.08

Filosofia do Francis (II)



Faz hoje uns quinze dias que confirmei uma suspeita que já vinha de há algum tempo: o Francis anda a comer duas tipas em simultâneo, o pulha.

No momento em que as minhas suspeitas foram confirmadas confesso que intuitivamente reprovei a sua atitude, até porque, assim que percebeu que apesar da cara feia que lhe apresentei o seu comportamento não era condição sine qua non para o seu padrão de vida, o Francis fez questão de me esfregar as duas na cara, embora, concedo, não literalmente.

Fê-lo é certo e ainda continua a fazê-lo mais com uma fórmula assim «uma de cada vez», sem que, mau grado a água na boca, me fosse dada a oportunidade de trocar dois dedos de prosa com qualquer uma das duas - para minha grande consternação.

Deixei o tempo passar e hoje, finalmente, tive a coragem para o confrontar. De manhã, ele partira um dos meus copos de vinho – o bêbado – e quando o cumprimentei fez-se todo pressuroso – Bom dia Lúcio! Repliquei-lhe que um copo não era um copo e aconselhei-o (vivamente) a que não voltasse a lavar os meus (não o seu conteúdo, claro, pois sei bem que ele o beberia de bom grado, com ou sem a minha aprovação), numa frase cheia até à medula de denotações enfáticas, como, por exemplo, a que realmente lhe dirigi:

Partiste um copo de vinho.

O Francis sorriu com sempre o faz nestas alturas, daquela maneira descontraída que lhe é peculiar e emborcou o resto do pequeno-almoço sem muitas presas, desligado das notícias, do relógio e do abespinhamento que, por seu turno, é sem dúvida peculiar, só que das minhas manhãs de segunda-feira.

Urinei no assunto e quando dei fé tinha-me metido a fazer a barba. Foi nesse momento que pensei em tudo o que acabaram de ler e também noutras coisas e me lembrei de encostar o Francis - a sangue-frio – à parede. Se bem o pensei melhor o fiz e do quarto de banho saiu disparada a seguinte rajada – Olha lá, que merda vem a ser essa de andares a comer duas mulheres ao mesmo tempo, seu imprestável sacana? Não tens vergonha, chulo?..

Acompanhara as palavras com um escarro de espuma de barbear no lavatório ao mesmo tempo que abruptamente cortava o abastecimento de água morna da torneira que ciciava. Esperei, argumentando com o súbito silêncio, contemplando o rosto semi-barbeado, os olhos injectados de sangue mas felizes que me sorriam, sarcasticamente, curiosamente, do lado de lá do espelho. Esperava uma resposta e ainda não ouvira o ranger de uma cadeira ou sequer uma gota de água na porcelana e nem um ruído nem outro se faziam ouvir. A posteriori, era como se estivesse só com o homem do espelho ou pelo menos foi essa a impressão que me ocorreu à medida que os segundos se escoavam e o rosto me secava.

Então, a voz dele cobriu o silêncio de eco, replicando, ainda que atrasada: Gostas de arroz de pato, Lúcio, gostas? - respondi que sim – é um dos meus pratos favoritos – e logo ali o Francis prometeu levar-me a jantar nas duas semanas seguintes. Sem mais, nem menos. Inteira, completa e absolutamente por sua conta. Essas duas semanas terminaram hoje.

No dia seguinte fomos jantar e, fiel à sua promessa, tudo o que pedi me foi servido e pago por ele. A cena repetiu-se, dia após dia, refeição após refeição. Ingeri chá dos Barbados e cerveja alemã. Comi arroz de pato, bacalhau à Brás, leitão da Bairrada, cozido à portuguesa, até Yorkshire pudding, ovos mexidos, salada de gambas grelhadas, salmão fumado, leite de cabra, fermento de cevada e champanhe de vinho eu bebi, Santo Deus!

Por fim, com a gula saciada, disse-lhe que não valia mais a pena, que me apeteciam umas torradinhas e muito café da cafeteira do senegal de casa –a acompanhar com a medida justa de águas naturais del cano com gelo.

Permaneceu inflexível. Que não, que não, que prometera, que jurara levar-me a comer fora três refeições por dia e que nada se interporia entre ele e a promessa que jurara cumprir para comigo.

Franzi o sobrolho, pigarreei e respondi-lhe - Sabes, ‘tou uma beca farto de comer no restaurante,

Francis. Fez-se um clarão nos seus olhos foscos e pareceu-me entrever na pausa uma candura chave que nunca antes entrevira. De pronto, senti que tinha perdido a parada. Atirei com umas gotículas de after-shave ao rosto, despejei o autoclismo e preparei-me mentalmente para o enxovalho, pois que tão bem me dou com o Francis.

Este, o enxovalho, embora discreto, não se fez esperar. - Estás a ver, Lúcio? – sim, eu estava a ver. – Vês, Lúcio? Nem sempre comida caseira, nem sempre comida de restaurante, meu rapaz – o segredo é variar, variar - e, à medida que a mão se adiantava na descodificação de mais um talking de um dos seus amores, a sua voz descambou numa risada tão insana quanto triunfal.