16.5.08

A mulher da saia branca

Foi um toque quase musical que ouvi ressoar na porta naquele final de tarde de segunda-feira. Só podia ser o Vasco. Já não nos víamos há mais de um mês e ele tinha ficado de passar em minha casa para bebermos um copo e pormos a conversa em dia, e, pela toada da mão na porta, até vinha bem disposto. Abri-lhe a porta, antecipando um final de tarde bem passado, entre conversas de futuro e recordações, copos e gargalhadas. Entrou e logo selámos a ausência um do outro com um aperto de mão caloroso e uma troca de palmadas de mãos nas costas. Perguntou-me da vida, como corria a faculdade; perguntei-lhe da vida, como ia o novo emprego. Tudo corria bem. – Vou ali à cozinha buscar duas cervejas. Põe-te à vontade. – anunciei, enquanto, na cozinha, abria duas garrafas. Voltei à sala para constatar o meu bom amigo absorto em pensamentos particularmente agradáveis, que se espelhavam no rosto em forma de sorriso embasbacado e olhos reluzentes perdidos no espaço. Percebi que ali havia gato ou, o que era mais provável, gata. Desenrolei-lhe a língua com facilidade e assim ouvi o relato minucioso e entusiasmado do Vasco sobre a nova vizinha do 3º esquerdo. Não era a primeira vez que a via nem a primeira ocasião em que reparava nela, mas naquele dia, atingira-o de forma diferente. Contou-me como, ao entrar no prédio, visão inesperada, a viu sair do elevador com pés pequenos e frágeis enfaixados pelas fitas dos sapatos de salto que lhe ressoaram no peito a cada passo dado na sua direcção. Vestia uma saia branca apenas um pouco abaixo do joelho e o seu andar exalava uma desconcertante feminilidade. O negro da blusa era apenas ultrapassado pelo negro dos caracóis bamboleantes. Passou por ele com um sorriso resplandecente, lançando um olhar cheio de castanho quente, e dos lábios libertou-se um suave «bom dia» ao qual Vasco, disfarçando o ar atónito (pelos vistos, com pouco sucesso), pôde apenas responder com um som gutural que não chegava a ser uma tentativa de cumprimento. Era mais do que óbvio para mim: o meu amigo, um sujeito até nada atreito às facilidades volúveis do coração, desenvolvera um fraquinho por esta mulher a quem ele, à falta de lhe ter perguntado o nome, chamava «a mulher da saia branca». E, agora, pedia-me um favor.
- Uma carta, Vasco?
- Sim, sim, uma carta!
- Mas…
- Francisco, quero que me ajudes a escrever uma carta. Estou realmente interessado nela e sabes bem como tenho dificuldades em abordar uma mulher que me interesse.
- Bem… pois, posso fazer-te o jeitinho, mas uma carta…
- Tu tens jeito, Francisco, já li coisas tuas. Vá!
Com um suspiro conformado perante o olhar implorante do Vasco, aceitei, para júbilo do meu companheiro. Não queria nada ter de lhe fazer aquilo, nada!, mas ele acabara de me encostar à parede. De caneta em riste, escrevi, metaforizei, sonhei e pintei uma mulher que também já conhecia e habitava as minhas fantasias. Não se estava a afigurar nada fácil fazer isto ao meu amigo. Finda a carta, o Vasco guardou-a com mãos escrupulosas na pasta, desejando não amarrotar nem uma linha das que ele julgava que conquistariam o coração da mulher da saia branca. O resto da tarde passou-se como previsto.

Quando partiu, dei por mim a aguardar o resultado com impaciência…

O estrondo vindo do lado de fora parecia querer arrombar a porta à força de nós dos dedos. Quem seria a besta e o que quereria a um domingo? Sem surpresa, sabia bem a quem pertencia aquele punho furioso a descarregar frustração na minha porta de pintura e verniz recentes. Espreitei pelo óculo apenas para confirmar o rosto do Vasco transpirando impaciência e os olhos a rebentar humilhação. Com um sorriso, abri a porta como se não fosse nada comigo.
- Vasco! Entra, ‘tás bom? – saudei-o calorosamente.
- Não ‘tou nada bom, pá, nada bom! – desabafou ao irromper porta adentro.
- Então?
- A carta, Francisco, a carta!
- Pois, a carta para a tal mulher! Que tal correu? – perguntei em tom casual.
- Que tal correu, que tal correu? Riu-se, explodiu em gargalhadas à minha frente! Fiz figura de urso! – bradou em urros de incredulidade.
- Mas… mas – balbuciei, - estava tão bem escrita!
- Já viste bem como isto acaba? – perguntou em tom agressivo. Lançou a mão ao bolso e sacou do papel amachucado, percorreu com os olhos as linhas ridiculizadas pela mulher da saia branca e leu: «O sol morrerá apenas para pontilhar o breu do céu em pontos brilhantes, sob os quais celebraremos o nosso ósculo.» - Mas que merda é esta!? Eu estava convencido de que sabias o que estavas a fazer!
- Ó, calminha aí! Pediste-me para escrever uma carta de declaração a esta tal mulher. Fiz o que pude. Não tenho culpa que ela não tenha apreciado. Além disso, podias ter lido antes de a entregar…
De olhar incrédulo, maxilar rijo e dedos encolhendo-se em punhos tensos, foi neste estado que o Vasco saiu de minha casa, furioso, resmungando entre dentes que ainda havia de descobrir o que raio era um ósculo, e a fazer tremer a casa com o bater da porta atrás dele. Gosto muito dele… do Vasco. É um bom amigo. Espero de todo o coração que este pequeno percalço não venha arruinar a nossa amizade. Foi com pesar que soube do fraquinho dele por ela e é com remorsos que penso que lhe lixei a carta para a mulher da saia branca. Mas tinha de ser… Tinha de lhe pôr um travão. Na verdade, a mulher da saia branca tem nome. Conheci-a ainda antes do Vasco. É a Joana, a bela Joana. Tal como o Vasco, também eu não pude deixar de reparar nos caracóis negros, nos olhos castanhos e, sim, também presenciei a saia branca dançando num passo feito de sugestão de pernas quando vi chegar, vindo do fundo do corredor iluminado de sol da faculdade, o som de saltos transportando os passos ligeiros da figura de elegante graça da minha colega. Ao contrário do Vasco, já tive a oportunidade de me rir com o sentido de humor de lâmina afiada, perspicaz, arraigado numa personalidade forte e única (teimosa, até), e de beber o riso e o sorriso que, só por existirem, tornam irrelevante o motivo porque se fazem ver e ouvir ao mundo. Por tudo isto, talvez por mais que não consigo expressar, tirei o Vasco do caminho, como tirarei qualquer um, até descobrir o caminho para o coração da mulher da saia branca.