12.5.08

Inspiração árdua

No momento em que os primeiros raios de sol daquela tarde de primavera entravam e iluminavam a entrada da carpintaria, vinda da luz, a jovem mulher entrou com passos firmes, chegou-se ao balcão e disse sem ponta de hesitação nas sílabas: «Venho encomendar-lhe um texto». Perante palavras e tom tão seguros, o carpinteiro ficou, por momentos, tentando encontrar pensamento de resposta. A mulher tamborilava uns dedos longos e impacientes no balcão sujo de serradura. O modesto carpinteiro desvendou-a de imediato autoritária e cheia de domínio, não só pelas palavras aguçadas e modos confiantes, mas também porque, à medida que subia os olhos pelo rosto, não conseguiu atravessar as lentes negras que lhe obscureciam a sinceridade. Porém, havia algo de cativante nela. Nisto, a resposta parecia ainda tentar percorrer um caminho tortuoso até à língua. Ela interrompeu o processo sem cerimónia: «deve ser descritivo (mas sóbrio), breve, ter orações subordinadas completivas, uma corzinha de hipálage, disjunções emoldurando as janelas e verbos ditransitivos à entrada. Voltarei ao fim da tarde para efectuar o pagamento, SE o trabalho me agradar». Já virara costas no momento em que o carpinteiro, em aflição submissa e em jeito de desculpa, respondeu: «Mas, menina, eu costumo trabalhar mais com verbos estativos, nem sempre transitivos, domino alguma coisa na área das conjunções. E com esse prazo, certamente compreenderá…» «Desenrasque-se!» Cortou-lhe a palavra com a lâmina afiada de voz fina. Silenciou-o. Com ar não menos altivo do que o que carregava ao entrar, e batendo o salto severo e cadenciado no chão, afastou-se em passos curtos para a azáfama da rua.

O homem esperou até que o som dos passos sobre o chão de madeira se escoasse no barulho da cidade. E agora? Estava perfeitamente habituado a trabalhar com ferramentas simples: adjectivos, advérbios, despretensiosos verbos e outros que tais. Embora já andasse nestas lides há muito tempo, o seu rudimentar conhecimento de carpintaria não chegava para subordinadas completivas. Sabia bem como construir uma sólida subordinada restritiva, o seu pai ensinara-o, e nunca construíra um texto com uma vírgula fora do sítio. «Trabalho impecável, até ao ponto final!», fora a frase que sempre ouvira da boca de quem nos seus textos entrava e neles se passeava. Além disso, raios!, dominava tão melhor a narrativa! Para que tinha ela de lhe pedir uma descrição?

Nada havia a fazer. Tinha de meter mãos à obra. De certo modo, encarava como desafio a rispidez da falta de um sorriso por parte dela. Encontrando renovada motivação, dirigiu-se até à gaveta das peças, abriu-a com um rangido até meio e espreitou para ver o que sobrava desde que construíra o último texto. Tão em cima da hora, não tivera tempo de renovar o stock. Tirou alguns adjectivos, vários substantivos e algumas preposições. Com eles, esperava alinhavar uns sintagmas que resultassem em frases cativantes. Compreendendo que a gaveta estava perra, esticou o braço até ao fundo. Às cegas, fechou a mão suja de serradura sobre uma massa amorfa e indistinta. Curioso para ver sobre o que se fechara a sua mão, retirou-a do fundo húmido e, para seu espanto, deparou-se com umas quantas isocronias e uns deícticos que já não via há muito tempo. Material de narração, não ia precisar.

Em esforço para não se enganar, erigiu algumas ideias sobre um frágil modelo descritivo que desencantara no bafiento e húmido barracão das traseiras. Pegou na pesada caneta e no dicionário novo e, com baques ruidosos, começou a martelar nomes, flexionando-os em género, tentando descortinar o melhor caso e, muitas vezes enganando-se no número, suspirava, destruía o que já fizera e recomeçava. Limpando o suor da testa com a palma seca da mão, levou uns adjectivos da boca aos dedos e, de caneta em riste, tentando nunca deturpar os substantivos, aparafusou-os lenta e cuidadosamente. Sabia-os incompatíveis com alguns nomes e fez o seu melhor para usá-los nas posições certas. Tentara alguma fugaz e comedida adjectivação dupla. Começava a entrar no ritmo. Serrou umas orações, colou-as a outras, afinou uns predicados, e assim se pasmava perante algumas metáforas sinceras e sinestesias oníricas. Com destreza, as preposições iam ligando uns vocábulos e era de peito inchado que constatava perfeitas as conjunções e locuções utilizadas no admirável polimento do texto.

Quanto mais o texto crescia, mais o carpinteiro pensava se estaria à altura de tão exigente pedido. Sentira autoridade na voz da mulher e o facto de não ter visto os seus olhos escondidos pelas lentes escuras dos óculos tornava-a ainda mais distante e inalcançável. Habituara-se a olhar nos olhos de quem lhe pedia textos e a saber logo ali, no ímpeto da conversa, o que queriam. Nunca pensara neste contratempo. Não houvera conversa, muito menos olhar. A reacção dela seria uma surpresa. A lima pensativa e paciente alisava, incessante, advérbios pontiagudos, sinónimos desnecessários, neologismos ridículos. Evitava parêntesis longos, pois sabia que tais, se mal empregues, não tinham serventia maior do que enfraquecer a edificação. As hipálages eram difíceis de encontrar nos tempos que corriam, mas não eram obstáculo insuperável.

Qual pintor que se afasta para admirar o quadro, recuou uns passos para contemplar a sua obra que, longe de estar cómica, era no mínimo invulgar. Conseguira alcançar um perfeito equilíbrio átono, sem nunca chegar a ser aborrecido. Sabia que tinha a tónica no sítio certo. Os acabamentos das janelas emolduradas eram do mais belo e gramatical disjuntivo que já criara. Tinha conjugado os verbos a seu gosto e foi com surpresa que constatou uma capacidade desconhecida para manipular os ditransitivos. Mas era a formosura dos adjectivos, a dinâmica sintáctica e algum génio fonético que faziam do texto a bela construção que o carpinteiro fitava. Pincelando o texto de inspiração, deu a segunda demão com ideias frescas. Gostara de o construir, era diferente. Esperava apenas que agradasse à mulher.

Ao longe, o rufar dos saltos aproximava-se. Transportavam um rosto ainda impávido e de olhar secreto. O texto estava à sua frente e o carpinteiro, observando o perfil feminino desenhado contra a réstia de sol primaveril que morria, pela janela, no chão de madeira encerado da carpintaria, podia jurar um sorriso no canto do lábio e, talvez, um brilho quente iluminando as lentes negras.