6.2.08

Shall I kill him?



Tenho uma confissão a fazer. É a medo que a faço. Não é fácil vir aqui e do nada revelar a minha mais mesquinha verdade. Mas ela não deixa de ser verdadeira e, se assim o é, mais vale que confesse tudo já - agora - do que continuar silencioso, vivendo na angústia que este segredo me provoca.

Eu, sim, eu, o Luís Lobo Solitário, moi méme, aqui o je, eu - eu vivo no campo. Não vivo em Bruxelas, nem em Marrocos, nem em Londres ou Paris, nem sequer em Lisboa ou no Porto, mas sim no campo - aqui - em Alguidares de Baixo.

E, o que é pior, apesar de ser um tipo viajado, um moço que já foi a França e à Rússia, é em Alguidares de Baixo, nesta quintarola lúgubre que os meus pais me legaram, que me sinto melhor, é para aqui que eu volto, ainda e sempre quando desejo sentir-me em casa.

Alguidares de Baixo é um terra bonita, onde se faz bom vinho sintético e onde as pessoas conseguem ser ainda menos simpáticas do que no metro de Lisboa em hora de ponta. São todos uns brutinhos em Alguidares de Baixo, mas nem sempre assim o foram.

A minha história, a história dos meus, começa no dealbar do século XIX, longe de Alguidares de Baixo, começa algures numa praia do Norte que ainda hoje ostenta o nome de Mindelo.

Esta história, a história da minha confissão, e a história de Alguidares de Baixo, começa lá atrás, ainda Alguidares de Baixo não se chamava assim; ainda Alguidares de Baixo era apenas uma terreola sem nome, até que, vindo das profundezas da minha árvore genealógica, surgiu o meu trisavô paterno: um soldado que subiu a pulso nas fileiras do exército de D. Pedro, um guerreiro que se bateu pela Pátria e que foi meu trisavô e, antes disso, Duque de Alguidares de Baixo e de São Pedro - o título que o Rei lhe conferiu, logo após os partidários do seu irmão Miguel terem sido vencidos e definitivamente enviados para o caixote de lixo da história. Uma chatice, mas não é dessa história que vos vou contar.

Tudo começou aí. O meu trisavô, um homem rude, um camponês feito soldado, general e por fim Duque, e de quem, reza a lenda, se dizia que até aos noventa anos, quando morreu, bebia cinco litros de vinho por dia e deitava duas minhotas por noite. Enfim, reza a lenda e eu, sei lá o porquê, acredito.


Foi ele o homem que pôs Alguidares de Baixo no mapa e é, em parte, por causa dele que aqui me encontro, ainda em Alguidares de Baixo, a escrever estas linhas, quase 200 anos depois.

O meu trisavô, se o julgarmos pelos parâmetros de hoje, era um homem mau. Para terem uma ideia de como ele via os seus semelhantes e o seu mundo, quando quis casar, foi ao Porto e comprou lá a sua mulher, a um nobre falido, pelo preço de cinquenta barricas de tinto, quatro juntas de bois e dois porcos: um macho pronto a cortar e uma fêmea prenha de quatro leitões cujo destino não ficou registado nos anais da história dos Solitário.

Dessa mulher, Dona Maria Vicentina, uma senhora austera mas justa, pia mas não beata, teve nada menos do que catorze filhos - treze raparigas e um rapaz, Dom Júlio Solitário, que mais tarde viria a ser meu bisavô.

O meu bisavô tinha noções esquisitas para o seu tempo. Fora mandado pelo pai estudar em Paris e de lá viera com ideias demasiado liberais para a época. Ao que consta, tinha gostos estranhos na escolha das suas amantes, dizem as más línguas que não escolhia amantes, mas antes os amantes e, apesar de herdeiro único da fortuna que seu pai amealhara, quase fora deserdado, ou não fosse meu trisavô um homem de sólidos princípios morais.


Estávamos em plena Regeneração, os franceses lá se tinham ido de armas e bagagens, o Rotativismo ensaiava os primeiros passos e no Casino um tal de Eça fazia furor. Tudo no ar augurava mudança. Nada seria como dantes. Mas, como a história se encarregaria de provar, os Solitário estavam em Alguidares de Baixo para ficar; para ficar até hoje, altura em que, finalmente, o último descendente dos Solitário, eu próprio, registo neste blogue a saga da família e em simultâneo o seu segredo e a minha confissão.


«Shall I kill him?» continua (talvez) amanhã.