10.10.07

Um dia na vida de Xis




Xis está sentado à secretária, tem um livro aberto à sua frente, com muitos números, setas, gráficos e algumas imagens. Vê-se que Xis está enfadado com a leitura e pelo seu semblante pode deduzir-se que não está a conseguir absorver a informação patente no livro. Toca o telefone.

- Tou, filho?
- Sim?
- Olha, o teu pai e eu, blablablabla, e assim estivemos a pensar e blablablabla, e então chegámos a conclusão de que, blablabla. O que é que, blablabla, achas disto?
- Não acho nada. Ou melhor, acho que sim, como quiseres.
- Então pronto, blablablabla, fica, blabla, combinado. Beijinho Xis.
- Beijinho mãe.


Xis pousa o telefone e regressa à leitura. Está na página 47 e ainda não logrou perceber o objectivo do texto que tem à sua frente. Na verdade, as quarenta e sete páginas anteriores não passam de uma névoa sem sentido que o traz apreensivo. Suspira e faz mais um esforço para se concentrar na leitura. Página 48. Toca o telefone.

- Tou, fofinho?
- Sim?
- Querido, blablabla, e então, blablablabla, e depois, blablablabla, e assim, blablablabla, estás a ouvir?
- Sim. Continua.
- Está bem, meu doce, blabla, e eu sinto blablablabla, e tu ainda, blablablabla, por, blablabla, por mim?
- Sim, claro. Óbvio.
- Então está bem, blablablabla, gosto de ti, blablablabla, beijinho.
- Beijinho. Também gosto de ti.


Xis pousa o telefone e regressa de novo à leitura. Os minutos passam silenciosos. Acende um cigarro. Fará sentido a dedução que acaba de lhe ocorrer? Pondera-a sob vários prismas. Se Y é prefixo de Z e em H o radical não permite sufixo… Então, então… Mas, está quase lá, espera, já está quase a fazer senti… Toca o telefone.

- Tou, é o Xis?
- Sim, doutor, como está? Sou eu mesmo.
- Olhe, Xis, estive a pensar que, blablablabla, pode aumentar o ritmo do trabalho, blablabla, sei que o Xis, blablabla e como confio em si, blablabla, considero que, blablabla, o Xis está em condições de, blablablabla, ter isso pronto, blablablabla, uma semana antes do que tínhamos combinado?
- Sim, claro, doutor.
- Então pronto, blablabla, não se esqueça de, blablabla, sou quem sabe, até segunda Xis.
- Até segunda doutor


Xis pousa o telefone e regressa à leitura. O que é que tinha deduzido mesmo? Y, prefixo de Z, casos de radicais que não permitem sufixos… Exemplos? Exemplos?!? Xis não consegue retomar o fio do seu raciocínio. Fecha o livro e liga o computador. Vai para os seus documentos e abre um ficheiro PDF intitulado “Doutortrabalhodeinvestigação”. Corre a página até o ponto onde o trabalho ficara na última vez em que abrira o ficheiro. Tenta concentrar-se:

“O modelo dinâmico da produção e do ritmo da fala apresentado é passível de dar conta de dados de duração natural, predizendo com alto valor de correlação o padrão global de acentuação ligado à implementação da duração encontrada em frases naturais sujeitas a variação da taxa de elocução.”

Xis relê o que acaba de escrever. Uma e duas vezes. Não faz sentido algum. A variação da taxa de elocução não está interrelacionada com o padrão global da acentuação, mas mais com factores climatéricos, psicossomáticos e geográficos, pese o facto de as técnicas de investigação de tipologia rítmica negarem essa realidade…

Não, não faz sentido. Ou fará? Xis busca na memória tudo o que lhe foi transmitido acerca de dados de duração natural, mas desta vez procura corroborar a hipótese pela negativa: será possível predizer o padrão global da acentuação em frases anti-naturais sujeitas a não variações da taxa da deselocução? Por muito que tente, com o auxílio de gráficos, fluxogramas e imagens, Xis não consegue verificar a segunda hipótese o que o deixa frustrado e a olhar para o vazio.

É preciso dizer contudo que Xis não está a ter um dia fácil. Nada fácil. Mas a percepção dessa realidade força-o a não pensar e então arruma o assunto de uma vez. Xis não é parvo de todo e descobriu há muito que as únicas coisas importantes são aquelas que não fazem qualquer sentido. Porque, claro, só em relação a essas podem aparecer tipos como Xis ou como o doutor que, não fazendo patavina desses assuntos, os revestem de uma tal maquilhagem que leva todos os outros a supor que Xis e o doutor e outros como eles são tipos entendidos e sabedores que merecem o aplauso dos seus pares, presença assídua em congressos universitários e licenças sabáticas com ordenados acima da média. Pois. Xis não é parvo de todo.

Entretanto, e talvez por isso, Xis descobriu a solução para o problema que o apoquentava e escreve com um ar de total enfadamento:

“O modelo proposto gera a duração segmental para línguas que manipulam a duração como parâmetro de controle prosódico para assinalar o acento frasal ao longo do enunciado.”

Xix sorri com um ar de triunfo, grava e fecha o documento. Afasta o teclado e deixa cair pesadamente a cabeça em cima do tampo da mesa. Fecha os olhos. Escuta os carros que passam na rua. Quanto tempo Xis ficou assim nem ele se recordaria. Finalmente, o telefone tocou de novo.

- Xis? Sou eu pá!
- Olá, diz coisas.
- Olha, que tal irmos beber umas cervejinhas e ir ver umas gajas boas?..


A pergunta fica suspensa no éter. Xis reflecte durante alguns segundos. Olha em torno de si e fixa a janela no canto oposto do quarto. O sol brilha na janela.

- Xis? Então, pá, o que é que dizes?
- Digo que sim, digo que estas tuas palavrinhas são as mais sensatas e inteligentes que hoje me foi dado ouvir, ler ou escrever. Daqui a meia hora, no sítio do costume? Até já.



Foto: Picasso.