27.10.07

Um ano excelente




Finalmente chegara. Há mais de 10 anos que não via a Casa Grande. A quinta do avô no Douro, e a Casa Grande que dominava as encostas e as fragas por onde se estendia a quinta. Mas agora ali estava ele, 10 dez anos depois, em frente à enorme e pesada porta de carvalho pintada de vermelho. Rodou a chave, a porta ofereceu alguma resistência, empurrou-a com força, a porta rangeu nos gonzos e então abriu-se com estrondo. O vasto corredor da entrada cheirava a mofo e do tecto pendiam inúmeras teias de aranha. A Casa Grande estava a precisar de reparação urgente. O ambiente de desolação e de abandono aumentava à medida que Luís ia abrindo as portas e as janelas da enorme casa onde fora criado e passara a sua juventude, antes de a ter abandonado, dez anos antes, em guerra aberta com o proprietário, o seu próprio avó.

Luís era órfão de pai e mãe e tinham sido os avós que o tinham criado. Apesar de nunca ter conhecido os pais, que haviam morrido num desastre poucos meses depois do seu nascimento, a infância de Luís fora normal, feliz, pelo menos até o dia em que morrera a avó, tinha Luís 14 anos. Desde essa data o avô tornara-se a pouco e pouco cada vez mais agressivo, mais exigente e mais intolerante, até que se tornou completamente impossível de aturar. Lembrava-se bem do dia em tinham tido a sua última discussão. Fora no vigésimo aniversário de Luís.

O avô enumerara exaustivamente as falhas e pecadilhos do neto, desde o seu fraco aproveitamento na Faculdade de Letras do Porto, para onde tinha ido estudar, à sua incapacidade em arranjar uma namorada “decente”, de modo a dar continuidade à linhagem da família. Tinha dito que Luís era um fraco, um imprestável, que só sobrevivia graças à generosidade dele, seu avô. Nesse dia Luís insultara-o e saíra porta fora para nunca mais voltar. Tinham-se passado 10 anos.

O avô morrera dois meses antes e agora Luís ali estava para tomar posse da Casa Grande. Tinham-se passado dez anos e os espaços e recantos do enorme solar vazio eram-lhe paradoxalmente familiares e estranhos. Foi arejando as divisões até chegar ao escritório do avô. Na semi-penumbra a vasta secretária estava cheia de pó e de papéis velhos. Nas estantes, os livros apodreciam em virtude da humidade. Sentou-se no grande cadeirão, habituou-se ao silêncio e fechou os olhos.

Dez anos. Em dez anos muita coisa muda, mas provavelmente o avô sempre tivera razão. A vida de Luís não tinha sido propriamente um sucesso. Após ter cortado as amarras com o seu único familiar vira-se só e sem dinheiro para se sustentar, quanto mais terminar o curso. Então viera a revolução e as coisas, ao invés de melhorarem, ainda tinham piorado. Perdeu logo o agradável emprego de escriturário que um conhecimento do avô (à revelia deste) lhe arranjara. Nos anos que se seguiram tivera centenas de ofícios, fora trolha, empregado de mesa, vendedor, telefonista e até ladrão.

Por fim, emigrara. Lavara pratos em Paris e andara na apanha do tomate em Inglaterra. Tocara viola no metro de Londres. Na Escócia trabalhara um ano numa fábrica de cortar peixe. No fim de cada turno de 12 horas o cheiro a peixe entranhava-se de tal modo que ainda hoje, por vezes, tinha pesadelos com isso. Na Holanda entretivera-se a apanhar copos numa gigantesca discoteca. Todas as noites, apenas tinha de apanhar os copos e os copos que os clientes pousavam ao deus dará, recolhe-los e depositá-los no balcão de serviço, para que outros, por seu turno, os lavassem e os disponibilizassem o mais depressa possível. Fora nesta última paragem que lhe chegara a notícia da morte do avô. E agora ali estava Luís, para tomar posse da herança. Para mudar, enfim, de vida.

Até no que respeitava às mulheres o avô tivera razão. Luís nunca casara. Sim, tinha tido algumas aventuras, mas nunca se tinha dado por inteiro, tudo havia sido relações de passagem, como a sua vida aliás, uma vida de passagem. É certo que quando deixara a Casa Grande estava loucamente apaixonado pela filha de um vizinho, Catarina, mas ela não tinha correspondido ao seu amor e isso ainda o tinha ajudado mais quando tomara a resolução de virar costas ao avô.

Abriu os olhos. Dez anos. A secretária estava cheia de pó e de papéis amarelados. Na sua maioria contas e facturas relativas à principal actividade económica do avô: a exploração das vinhas da propriedade. Como tudo se degradara rapidamente! Primeiro a revolução e depois, depois nos últimos anos o avô deveria ter perdido a lucidez por completo. As vinhas, maltratadas, bravias, pouco ou nenhum vinho rendiam, a Casa Grande estava cheia de rachas e de humidades, os muros estavam tombados e as ervas daninhas tinham tomado de assalto o outrora delicado jardim que dava para a entrada.

Mas agora tudo ia mudar. Luís estava ali para isso mesmo. Ia tomar conta de tudo. Fosse como fosse, tudo ia mudar. Podia vender a quinta ou devolver-lhe o seu antigo esplendor, ainda não sabia. Se calhar venderia tudo e com o dinheiro montaria um negócio qualquer. Sim, nada o prendia aquelas encostas íngremes, à terra semeada de vinhedos e de calhaus de granito, a terra de socalcos, gelada no Inverno e abrasadora no Verão. Iria para o Porto, sim, iria para o Porto, estabelecer-se-ia por lá, arranjaria uma mulher e teria filhos.

Experimentou as gavetas da secretária. Estas foram revelando os seus tesouros ocultos, que o fizeram sorrir: pincéis de barba usados, cassetes antigas, esferográficas BIC, frascos vazios de Restaurador Olex (afinal sempre era verdade que o velho pintava o cabelo!), tubos gastos de pasta medicinal Couto e uma série de bugigangas que lhe traziam à memória outros tempos, tempos mais felizes.

A última gaveta estava fechada. Tentou forçá-la, mas não cedeu. Por fim, com um sorriso, reparou numa chave de fendas esquecida a um canto e com esta fez saltar a fechadura.

Reconheceu de imediato as primeiras coisas que viu na gaveta. Eram envelopes de correio. Tinham selos das mais diversas paragens. Eram as cartas (poucas, como agora verificava) que ao longo dos anos enviara ao avô. Estavam todas por abrir. Pegou no molhe das cartas e atirou-o furiosamente para o chão, fazendo levantar uma nuvem de pó.

Sem saber porquê, sentiu-se triste. Calejara-se para este momento, mas não esperara encontrar assim as suas cartas, ainda seladas, ainda por abrir. Um último insulto do velho, mesmo já depois de ter ido a enterrar, o pulha do avô nunca abrira as cartas que lhe enviara, muitas vezes em momentos de fraqueza, em situações desesperadas.

Espreitou para o interior da gaveta. Lá mesmo ao fundo, escondido, estava um embrulho. Puxou-o, sacou-o para fora e começou a examiná-lo. Sentiu um calafrio. O embrulho era-lhe dirigido: “Entregar ao Luís, da parte da Catarina”.

Rasgou o embrulho e tirou para fora o conteúdo. A primeira coisa que o embrulho revelou surpreendeu-o bastante: uma garrafa de vinho tinto. Atrás da garrafa, outro envelope, com uma carta manuscrita. Começou a ler:

“Peso da Régua, 26 de Novembro de 1973

Querido Luís,

Escrevo-te duas semanas após a tua partida, com imensa saudade de ti e mágoa pelas últimas palavras que te dirigi. Meu amor, estou tão arrependida de ter recusado as tuas propostas, mas tão arrependida que nem podes imaginar! As duas últimas semanas foram um inferno, só agora vejo a falta que realmente me fazes! Não consigo viver sem ti e a mamã e o papá também dizem que tu és um rapaz de valor e que fiz muito mal em achar que era cedo demais para unirmos os nossos destinos. Vê lá tu que o papá, quando soube que nos tínhamos separado até abanou a cabeça e disse “que rapariga, tonta, que rapariga tonta!”. Volta, meu querido, volta e casaremos como desejavas e, se o teu avô não te quiser receber, o meu pai diz que tem para ti trabalho a gerir as nossas quintas do Douro. Volta Luís, volta meu carinho, volta por favor…

Tua, Catarina

PS- A garrafa de vinho é um presente do meu pai, ele diz que bem sabe que o nosso vinho não se compara ao vosso, mas disse também que este ano a colheita foi muito boa e que queria dar a provar ao seu futuro genro o néctar que em breve será ele a produzir..

PS 2- Não sei a tua morada meu amor, mas envio-te estas palavras pelo teu avô, fi-lo jurar que tas faria chegar.”

Luís deixou cair a carta. O avô nunca lhe entregara nada. O crápula. Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Dez anos. Dez anos assim perdidos! Catarina. Os olhos verdes de Catarina, a pele macia de Catarina, o sorriso de Catarina, as imagens que lhe acudiam à mente num turbilhão, e o coração que lhe batia desordenadamente. De súbito, levantou-se, atravessou a Casa Grande à pressa e saiu porta fora em direcção à aldeia, à casa onde vivia o Ti Jacinto, o antigo caseiro do avô.

- Ti Jacinto, ti Jacinto!

O velho estava sentado numa cadeirinha de verga a apreciar os tímidos raios de sol da Primavera. Conhecia Luís há muito e, embora não lhe tivesse agradado o que se passara entre avô e neto, a verdade é que não apreciava Luís por aí além. Não apreciava os seus modos citadinos e uma certa arrogância que sempre pressentira no moço e que agora achava ainda mais vincada.

- Diga, menino Luís, algum problema na Casa Grande?
- Não Ti Jacinto, nada disso, tenho uma coisa para lhe perguntar…
- Pergunte menino, que com a graça de Deus e em eu sabendo, com resposta não lhe faltarei…

Luís tossicou e então disse:

-O Ti Jacinto lembra-se do Engenheiro Pais? Aquela da Quinta da Moia? Lembra-se, tinha uma filha, chamada Catarina, sabe o que é feito da família?
- Ah… Espera lá menino… Espere lá que já me estou recordando… Pois, é isso, uma história triste, mais ou menos depois de o menino ter abalado…
- Que história, Ti Jacinto, que história?
- Ah… Pois, em 1974 as coisas não correram lá muito bem ao Engenheiro Pais, sabe como é o Engenheiro Pais era lá dos do reviralho e muita gente não gostou… Perdeu tudo, tudo e morreu, salvo erro em 80, na miséria…
- E a filha, Ti Jacinto, e a filha?
- A filha… Ah… A filha, já sei, abalou lá para Lisboa, sim abalou lá para Lisboa, diz que casou bem e que tem uma porção de filhos. Mas… porque pergunta menino?..
- Por nada Ti Jacinto, por nada.

Luís acenou ao velho, virou costas e encaminhou-se de novo para a Casa Grande. Foi ao escritório, trouxe o embrulho com a carta e a garrafa de vinho. Sentou-se na mesa grande da cozinha, procurou um saca-rolhas e abriu a garrafa. Sentia-se só, muito só. Espreitou o rótulo da garrafa. Dizia: Quinta da Moia, Tinto, Reserva de 1973. Verteu um pouco do vinho para um copo a que entretanto limpara o pó. Beberricou um gole. O Vinho estava bom. Dez anos numa gaveta não o tinham estragado. Desta vez encheu o copo até cima e tragou-o em três longos goles, degustando o perfume, o sabor, a textura e o fim de boca do divino néctar. Por fim, pousou o copo, reconfortado, estalou os lábios e soltou um suspiro de prazer. Abriu de par em par as grandes portadas da cozinha deixando entrar os raios de sol. Voltou a encher o copo e sorriu. Realmente, 1973 tinha sido um ano muito bom. Um ano excelente. Mas, estava certo, de ora em diante ainda seriam melhores. Luís tinha 30 anos e uma fortuna em vinhas do Douro.