16.8.07

Props-Ba

Props-Ba. Não sabia que raio de bar era aquele, nem exactamente onde estava, mas tinha que parar, tinha que parar! Tinha que se acalmar ou ainda tinha um ataque! Estacionou e saiu do carro, para o meio do temporal, em direcção ao bar com o nome peculiar. Tinha que se sentar por um instante. Beber qualquer coisa, sim. Depois logo via o que fazer quando tudo estivesse terminado. Afinal, pouco passava da meia-noite. O Inverno ia longo, a sua silhueta escura atravessava a estrada deserta em direcção ao bar pouco iluminado, mas que parecia emanar uma certa classe. O néon azul deu-lhe as boas vindas. Pedro entrou, percorreu um curto corredor, atravessou a cortina calmamente, embora a tensão fosse evidente no seu rosto e no seu caminhar até ao balcão. O bar aparentava ser um local discreto e calmo. À sua esquerda encontrava-se o longo balcão em madeira escura e na parte direita viam-se algumas mesas cujas cadeiras estavam ocupadas por pessoas a conversar e a beber, os seus rostos indistintos escondidos pela sombra. A um canto, uma pequena banda de jazz ia soltando notas para o ar.
O balcão estava apenas ocupado por um homem alto e elegante. Os seus olhos iam passando do copo à sua frente para o relógio e, sem pressa, ia dando um gole no whisky. Pedro sentou-se uns bancos afastado, no canto, só; nesta altura, companhia era a última coisa de que precisava. Acenou discretamente à bartender e pediu um whiskey duplo sem gelo, que lhe foi servido com gestos rápidos e precisos. Sofregamente, segurou no copo, levou a mão trémula à boca e sorveu um longo trago, apenas para tossir doentiamente de seguida, curvado sobre o balcão.
- Não está habituado a beber whiskey? – perguntou uma voz de homem, clara e descontraída. Pedro virou a cabeça rapidamente na direcção da voz, constatando, sem surpresa, que esta provinha do homem uns bancos ao lado. Este levantou-se, pegou na sua bebida e dirigiu-se ao lugar de Pedro. Posso? – perguntou a Pedro em tom educado, estendendo a sua mão esguia para o banco vizinho.
O homem aguardou elegantemente de pé, a mão ainda estendida, um sorriso afável e discreto, uma resposta. Pedro, ainda aturdido pelo espanto, encarou o rosto deste estranho personagem. Que quereria ele? Saberia de alguma coisa? Estaria ali para o apanhar? Disparate! Não passava de um estranho num bar. Sem reflectir, Pedro sentiu os seus lábios secos proferir uma resposta afirmativa e, de um momento para o outro, passara a estar acompanhado. Seguiu-se um longo silêncio; poderia ter durado uns segundos apenas, ou até alguns minutos, Pedro não sabia. Ia apenas observando, mais curioso que temeroso, sob a fraca luz do balcão, o rosto do homem enquanto este passava, com uma certa tranquilidade, os olhos esverdeados da bebida para o relógio e deste de volta para a bebida. Pousou o copo vazio no balcão, cofiou o bigode e a pêra loiros e virou o rosto magro e pálido para Pedro, aguardando uma resposta.
- Então?
- Então…? – retorquiu Pedro, não compreendendo a pergunta.
- Whiskey… Não está habituado a beber whiskey.
- Eu… não, de facto, não. – respondeu com voz tremida, recordando a pergunta do estranho, que parecia ter já horas de distância. – Não costumo beber. - Sorveu o resto da bebida e suspirou, caindo no silêncio.
Ouvia-se apenas o som de vozes a conversar na distância e o jazz que preenchia os restantes silêncios. Ao fundo, a bartender, uma rapariga jovem, talvez com os seus vinte anos, não muito alta, com cabelo curto encaracolado e movimentos discretos, estava de costas, colocando-se em bicos dos pés para guardar umas garrafas no lugar.
O estranho capturou o olhar de Pedro, sorriu e recomeçou casualmente:
- É uma rapariga interessante, não é? – perguntou num sussurro com um tom de cumplicidade, inclinando-se na direcção de Pedro. Este quase saltou do banco ao ouvir a questão.
- Não…! Quer dizer, é…! Estava apenas… - balbuciou Pedro nervosamente, em jeito de justificação. O estranho soltou uma curta gargalhada.
- Calma, amigo. Estamos numa conversa entre homens, não tem que ficar nervoso. Sem dar hipótese de resposta, virou-se para a frente e dirigiu-se à bartender.
- Mariana? Dois bourbons duplos com gelo, por favor. Mariana afastou-se tão calmamente como se aproximara, indo preparar as bebidas. – Eu pago-lhe um copo. – disse o homem a Pedro, piscando-lhe um olho.
- Eu realmente não devia...
- Vá, vá, eu deixo que me pague o próximo. – atalhou o estranho com leveza.
Mariana voltara com passos leves e servira as bebidas. Sem se aperceber bem, já Pedro levava o copo à boca seca.
- Mariana? – o estranho dirigiu-se de novo à bartender; colocando a mão sobre a dela assim que esta pousou o copo, sorriu e sussurrou: - Que tenho de fazer para ganhar o teu amor, minha querida?
Mariana virou o rosto para o homem, os seus olhos brilhavam na escuridão do bar. Retirou a mão com delicadeza e esboçou um sorriso frio: - Basta que pagues a conta, querido. – Virou costas sem mais uma palavra e afastou-se.
O homem sorriu e pareceu lembrar-se que Pedro estava a seu lado.

- Só vejo dois motivos para um homem meter-se num bar a estas horas para beber. Dinheiro ou mulheres. E, pela qualidade do whiskey que pediu há pouco, aposto que o motivo só pode ser uma mulher. Acertei? – perguntou, exibindo a sua expressão leve.
Pedro não respondeu imediatamente.
Ali perto, ecoava o som estridente de um telemóvel. E tocava, incessante, penetrando dolorosamente nos ouvidos já habituados à suavidade da música do bar. Só quando se apercebeu dos olhares penetrantes vindos das mesas resguardadas pela escuridão é que Pedro lançou, apressado, a mão ao bolso do casaco e atendeu. «Estou sim?» – atendeu numa espécie de pânico. - «Ah, Rui, és tu! Que se passa? Porque é que me estás a ligar a estas horas? Sim… Sim, sim, claro, a reunião. Pois... amanhã, às quatro no banco. Sim, exacto, com o director. Estavas a rever o quê? Pois, a papelada… tratei, tratei. Ok, até amanhã.» Desligou, escondeu com dificuldade um suspiro e limpou a fronte suada com um lenço. Sentia os olhos verdes do interlocutor perscrutarem-no. Olhou-o de soslaio.

- Banco? É banqueiro? Interessante… muito interessante. – comentou o homem, cofiando mais uma vez a pêra. Pedro notou um misto de surpresa e curiosidade no rosto deste estranho personagem. Voltando ao seu sorriso habitual, cortês e afável, acrescentou: - Sendo assim, não se importará, certamente, de pagar a próxima rodada.
- Eu… sim, porque não… Bartender, mais dois por favor. – ouviu Pedro a sua própria voz soltar-se, como se não partisse de si, arrastada.
- Obrigado pela generosidade. – agradeceu o estranho, estendendo um dedo longo em direcção à sua própria testa: - Escapou-lhe aqui um bocadinho...
- Como…?
- Suor… na testa… - disse secamente, levando o novo copo de bourbon à boca. - Isso. - acrescentou, depois de Pedro voltar a passar o lenço pela testa. – Parece nervoso, amigo… agitado. Quer parecer-me que aí há mais do que um rabo de saias. – comentou, acendendo um cigarro e estendendo o maço a Pedro, que agradeceu, pousando o olhar na chama bruxuleante.
Soltou uma baforada rápida.

- E que tem com isso!? – inquiriu Pedro intempestivo, arrependendo-se logo de seguida da sua própria agressividade.
A expressão do homem endureceu.
- Peço desculpa… De facto, não é da minha conta… - o homem voltou a demorar o olhar no relógio. Já passava da uma.
- Porque está sempre a ver as horas? - perguntou Pedro irreflectidamente.
- Daqui a um bocado tenho que ir trabalhar.
- A estas horas? O que é que faz?
O homem fitou-o nos olhos e exibiu um sorriso trocista. Pedro hesitou.
- Ora, eu diria que os meus afazeres só a mim me dizem respeito.
- Ouça, peço desculpa pela forma como o tratei há pouco. É que tenho andado... Problemas com a mulher. Sabe como é... - desabafou Pedro secamente, apagando o cigarro que ainda ia a meio. Lembrara-se que estava a tentar deixar. Bebeu um longo gole do bourbon.
- Já vi que lhe ganhou o gosto. – notou o estranho com surpresa. – Hm, casamento… já estive nesse barco e saí dele com vida. A custo, mas saí. – acrescentou, erguendo lentamente o copo.
- Alguma vez o traiu? - a questão pareceu ter rompido da boca de Pedro como se da explosão de um vulcão há muito adormecido se tratasse. O estranho pousou o copo antes mesmo de beber. Ergueu as sobrancelhas, surpreendido pela natureza da pergunta, e respondeu com segurança.
- Não.
- Como sabe?
- Sei.
A silhueta de Mariana ia passeando de cá para lá do balcão, trazendo a bandeja repleta de copos vazios e levando-a com outros tantos cheios. Pedro apenas desprendia o olhar da bartender quando tinha a certeza de não estar a ser ouvido.
- Mas como pode ter a certeza!? – sussurrou, com uma certa aspereza.
- Acredite, eu sei.
- Pois, eu sei que a minha me traiu! Talvez mais do que uma vez e continua a trair. Arrasta-se há anos… Há outro, eu sei! Tenho provas, mandei segui-la! – exclamou Pedro com os olhos fixos no balcão. A expressão do estranho tornou-se grave e férrea. – Tenho um amigo que conhece um sujeito obscuro… Mandei matá-la! Não vou suportar nem mais uma humilhação!
- Contratar um tipo que nunca viu mais gordo para… não acha que é uma atitude drástica? – perguntou em tom delicado, meio divertido.
- Não acredita em mim!? – rugiu Pedro, não reconhecendo a sua própria voz, que parecera ter ganhado vida própria.
Ao fundo, ouviu-se o som de um copo partir-se em estilhaços. Um cliente deixara cair a bebida perto da mesa de snooker e Mariana apressara-se a ir ver o que se passava. Tê-lo-iam ouvido? Teria falado demasiado alto? E que estava a fazer a conversar sobre isto com um perfeito desconhecido!? Levantou-se de um salto. Perdeu o equilíbrio. Sentiu uma mão no ombro e olhou para trás, apenas para ouvir a voz já familiar.
- Calma, amigo, sente-se. Parece que já bebeu para além da conta, hã?
- Não, estou bem… Foi só uma tontura...
- Deixe lá, homem, acontece aos mais fortes. Eu tenho que ir embora agora. Venha, eu dou-lhe uma boleia até onde precisar.
Pedro estudou os olhos do homem, mas não encontrou mais do que um olhar amigo e pronto a ajudar.
- Desculpe o incómodo... desculpe. - balbuciou Pedro, tentando recompor-se. O estranho exibiu um sorriso amável.
- Não faz mal, não faz mal! A chuva e o vento frio vão pôr-lhe a cabeça no lugar em menos de nada. - disse o estranho, enquanto pegava na pasta e ajudava Pedro a equilibrar-se. – Vamos lá!
O vento rugia lá fora e batia nas janelas como se tentasse derrubar o edifício. Chovia intensamente no momento em que os dois homens pisaram a rua. Caminhavam lado a lado. Pedro, esforçando-se por ignorar a chuva que lhe chicoteava a face com ferocidade e o álcool que lhe toldava os sentidos, observava o homem com atenção. Que estranho encontro aquele. E como fora descuidado! Será que iria denunciá-lo? Ou pensaria apenas que não passava da algaraviada de um bêbedo de bar? O tipo não era ameaçador, poderia facilmente dominá-lo e, se necessário, matá-lo. Em todo o caso…

- É já ali. – apontou o homem para o beco, interrompendo as cogitações de Pedro. Viraram a rua em passo apressado, entraram no beco e, de súbito, o estranho estacou.
- Passa-se alguma coisa? – perguntou Pedro, agitado pelos seus pensamentos, o corpo ensopado pela chuva gelada. Um comboio de ideias atravessou-lhe a mente. Tentaria o sujeito alguma coisa contra ele?
- Peço imensa desculpa, mas… - apalpou os bolsos, - parece-me que deixei as chaves no bar. Vá andando. Está a ver aquele Ford ali mesmo ao fundo? Volto num instante. Rodou nos calcanhares e começou a andar em passo apressado. Pedro viu-o afastar-se, voltou costas e arrastou-se para o carro. Afinal, tudo não passava de um temor infundado. O corpo de Pedro caiu pesadamente sobre a pedra fria e escura. A água da chuva ia lavando o sangue que jorrava abundantemente da sua nuca, exactamente no ponto onde a bala penetrara o crânio.
Não muito longe, aproximavam-se passos por sobre as poças e o estranho parou junto do cadáver de Pedro. Guardou o revólver na pasta, virou costas ao corpo inerte, tirou o telemóvel do bolso de dentro do casaco e começou a avançar para o carro. - Estou? Nem imaginas com quem acabo de beber uns copos. Não… Tenta outra vez… Não… Acertaste! Não estou a gozar, é a sério! E então? E então despachei-o. Claro! Num beco... as ruas estão vazias. Eu sei o que faço. Mas queres saber a melhor? Esta não adivinhas. Parece que o imbecil tinha contratado um assassino para te matar esta noite. Para parecer um assalto... coisa simples. Confessou, já com os copos. O idiota! Afinal, parece que hoje sempre tenho a noite livre… e tu também.