Era mais uma noite de Junho na vida agitada do Russo. Como todos os dias, trabalhava e estudava, mas a noite de sexta-feira estava sempre reservada para a sua ida já rotineira ao bar onde trabalhava o Johnny, que conhecera na faculdade, um sujeito alto e magro, com uma língua demasiado comprida e uma voz demasiado estridente, mas que, no entanto, lá ia pagando uma imperial ou outra ao Russo. Antes de sair de casa, fez a barba, que já começava a escurecer-lhe as feições, vestiu a camisa e as calças pretas, o casaco de cabedal castanho, seu companheiro de longa data, calçou os sapatos engraxados, penteou apressado o cabelo negro e olhou-se no espelho, reparando que as rugas denunciavam já um rosto trintão e que, aqui e ali, despontava um ou outro cabelo branco. Ainda assim, era preciso mais para demover o seu espírito. Sentia-se jovem e enérgico! «Agora, sim, Russo! Estás pronto para sair».
Saiu de casa, passou a mão pela cabeça do cão do vizinho, que o saudou com grande alarido, e foi caminhando a passo lento para o bar do Johnny, observando descontraído os arredores e as pessoas que passeavam pelas ruas cinzentas da cidade, iluminada pelo sol poente. Depressa avistou o bar e, sem perder tempo, entrou, descendo alguns degraus de pedra. O bar era velho e escuro, todavia, também acolhedor e surpreendentemente fresco nas noites de Verão; não era de estranhar, portanto, que estivesse apinhado de gente falando ruidosamente ou dançando. O fumo do tabaco entranhava-se no ar. As paredes estavam ocupadas por prateleiras, exibindo uma colecção de garrafas vazias oriundas dos países mais improváveis. O Russo não se demorou a contemplar este cenário familiar, indo ocupar sem delongas o único lugar vazio ao balcão.
- Então, Johnny? Tudo bem? O quê que contas?
- Olha, o Russo! – exclamou Johnny, apertando-lhe entusiasticamente a mão. - Estás bom, pá?
- Antes de mais nada, tira-me aí uma imperial. – pediu o Russo; depois, mudando de tom: - Vai-se indo, vai-se indo. – respondeu mecanicamente, com um suspiro, tamborilando com a base do cigarro no balcão de madeira.
- Pareces cansado… - observou Johnny, apoiado no balcão. - As gajas não te largam, estou mesmo a ver. – brincou, sorrindo de esguelha.
- Oh, antes fosse! Olha a imperial. - lembrou o Russo. - Pois, pá, um gajo quer trabalhar de dia, quer ir para a faculdade à noite e, depois, ainda quer estar com boa cara para as miúdas. – disse, meio em tom de piada. – Obrigado. – agradeceu, quando Johnny lhe serviu a imperial, dando de imediato um longo trago que quase esvaziou o copo. – E bem preciso, que já não calha nada cá ao Russo há umas semanas. – acrescentou, riscando um fósforo e acendendo o cigarro, e observando, absorto, a ténue nuvem que se formava em frente dos seus olhos.
Johnny soltou uma gargalhada curta, mas estridente.
- Anima-te, Russo! – disse, falando mais alto do que o necessário. – É Verão, o que não falta aí é estrangeira toda maluca! – acrescentou, entusiasmado, quase deixando cair o copo que limpava distraída e afincadamente desde que começara a conversar com o Russo.
- Olha, tira aí outra. – pediu, apontando para o copo. - Por falar nisso, como está isto de mulherio? – perguntou calmamente, olhando em volta, ignorando os comentários espalhafatosos de Johnny acerca dos atributos físicos das estrangeiras que passavam pelo bar.
- Então, Russo, companheiro, não me digas que ainda não topaste as duas «bifas» ali na mesa do canto? – perguntou, de olhos muito abertos, aparentemente estupefacto por ter escapado ao Russo informação tão óbvia. – Olha a idade, estás a perder qualidades…
O Russo já deixara de ouvir os comentários jocosos de Johnny em relação à sua idade, nos quais dizia que o Russo já não é o que era, e que a idade fazia aquilo a um gajo… O seu olhar atento e experiente já há muito que começara a perscrutar todos os cantos e recantos do bar, o balcão, as mesas, detectando sem demora as duas inglesas da mesa que o bartender apontara. Acendeu um cigarro com a ponta do outro. Verdade seja dita, Johnny podia ser um puto (por vezes, até irritante), mas tinha bom gosto. Ambas de vestido e chinelos, a pele clara já discretamente avermelhada pelo sol de Junho, as duas inglesas bebiam e riam animadamente, sem, todavia, chegarem ao ponto de chamarem a atenção.
- É cedo, Johnny, é cedo. – comentou, despreocupado. - Deixa correr o marfim. – brincou, escondendo o discreto sorriso com a imperial, que levou aos lábios, bebendo demoradamente. – Entretanto, tira-me outra.
Com um olho no dinheiro que lhe restava para pagar as imperiais e com o outro nas inglesas, o Russo ia bebendo e observando-as a deitar abaixo copo atrás de copo, trocava algumas palavras amigas com caras já conhecidas e lá voltava, de vez em quando, a dar trela ao Johnny. Finalmente, disse:
- Bem, Johnny, até já. – anunciou.
Levantou-se do seu lugar ao balcão, fixou a mesa das inglesas, e decidiu arriscar. Ia atirar o barro contra a parede, ia meter conversa. Avançando com passos seguros para a mesa, o álcool aos poucos aquecendo-lhe o corpo e animando-lhe a alma, o Russo sentia-se com sorte. Podia já vislumbrar o cabelo louro descendo pelos ombros de uma delas, que falava entusiasmada para a amiga; esta, por seu lado, exibia um sorriso discreto e ia acenando em concordância. Chegou rapidamente ao pé das turistas, que já haviam detectado a sua aproximação, e, no seu tom decidido, mas subtil:
- Excuse me, is this sit taken? – perguntou, empregando uma pronúncia perfeita.
- Well… - começou uma delas de modo atrapalhado, olhando de relance para a amiga, que a atalhou:
- No, not at all. – respondeu, sorrindo, divertida pela situação, e pronunciando bem as palavras.
A conversa ia-se desenrolando rapidamente. Se havia coisa que o Russo tinha era traquejo, principalmente para as inglesas, que conhecia de ginjeira. Sabia bem que muitas delas viajavam e não recusavam uma boa aventura. Afinal, onde já se viu inglesa que foi a Portugal e não conheceu o Russo? Tudo corria bem, lá ia o Russo conversando, a dar uma de Richard Burton, sempre espirituoso e magnânimo. Uma das inglesas era notavelmente mais tímida e pouco participava na conversa. Já a segunda, a que sem hesitar permitira ao Russo sentar-se à mesa, não mostrava dificuldades em acompanhar a lábia deste. Em pouco tempo, já a conversa chegara à pior coisa que cada um alguma vez fizera. As inglesas iam confessando, sem qualquer pudor (até a mais tímida), entre ocasionais sorrisos de malvadez e olhares provocadores, um ou outro acto promíscuo ou uma vingança inofensiva contra uma amiga. Brincadeiras de criança, quando comparadas com a rodagem do Russo.
- What about you? - inquiriu confiante a mais extrovertida, o cotovelo apoiado sobre a mesa e o queixo sobre a palma da mão, aproximando o rosto do do Russo. – What is the most mischievous thing you’ve ever done? – insistiu, murmurando a pergunta, e olhando provocante nos olhos castanhos do Russo.
Desceu sobre a mesa um silêncio pesado e desconfortável. O Russo inclinou-se, ocupou o pouco espaço que restava entre o rosto da inglesa e o seu, fixou os olhos azuis claros dela, e confessou a maior malvadez que alguma vez fizera.
- Well - começou o Russo, a sua expressão agora fria e dura, – how can I put this? – perguntou, mais a si mesmo do que às interlocutoras, que se inclinavam para escutar melhor, acrescentando: – To be blunt, I killed my wife. I’m pretty sure that's the most mischievous thing I’ve ever done. – rematou, levando calmamente, num gesto triunfal, o copo à boca. As inglesas, atónitas, num misto de surpresa e medo, mexiam os lábios sem, contudo, omitirem qualquer som. O Russo, atalhando o seu silêncio: - It was quite simple, really. Every night we would drink a glass of red wine at dinner. I just had to pour some small doses of arsenic into her drink, everyday. The poison got its toll in due time. – acrescentou o Russo numa voz fria e calma, entre longas baforadas de fumo, como se relatasse a forma como abatera o cão.
A atmosfera era agora esmagadora, mais pela confissão fria do Russo, do que pelas pessoas a conversar e pela música ensurdecedora.
- But… Why'd you… I mean… – tentou retorquir incrédula, mas sem sucesso, a mais tímida. O Russo sorriu ante a atrapalhação amedrontada da turista. Levou o cigarro aos lábios, soltou uma baforada particularmente agradável, apagou-o no cinzeiro, e constatou pesarosamente que a imperial já tinha morrido e que não tinha dinheiro para mais.
- Why, you ask? – recomeçou, sem pressa, e carregando bem nas sílabas. - The slut was cheating on me (Oh, yes, I’m a very proud man). – fez uma pausa e continuou. - I wanted her out of the picture, anyway; I needed “our” money to pay some old debts. – concluiu, bebendo contrariado o resto da imperial. Pousou o copo, levantou o olhar da mesa e comentou, num tom nostálgico: - Funny thing, we met at this pub.
As inglesas continuavam a observar com atenção o Russo, quiçá tentando detectar na sua expressão a denúncia de uma mentira, mas o rosto descontraído e o olhar perdido revelavam somente uma mente à deriva, ao que parecia, em recordações particularmente agradáveis.
De súbito, despertado pela visão do relógio da parede do bar, o Russo apercebeu-se de que se fazia tarde e que era hora de ir embora. Amanhã tinha que ir ao mecânico tratar do arranjo do carro, tinha que ir trabalhar, tinha aulas, enfim, mais um dia como qualquer outro. As contas não se pagavam sozinhas.
- Well, ladies, I'm enjoying your company very much, but I'm afraid I must be going now. - declarou o Russo, com um sorriso atencioso e doce. – I hope you take no offense.
- No! Of course not! – responderam, quase em uníssono.
- Tchau!
O Russo levantou-se, avançou para a saída, despediu-se de Johnny com um aceno e um sorriso (deixando sem resposta os seus olhares inquisitivos e os seus «Então? Então?» entredentes), e saiu porta fora, saudado pela noite quente.
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