20.4.07

A morte do Rato



A que vos vou contar passou-se há uma data de anos, ainda o Bar do Ferro era no outro sítio e eu um jovem cheio de bago. Foi numa noite de sexta-feira e o Ferro estava a gozar em grande: só saíam vodkas, uísques, bacardis, enfim, uma miríade de zurrapas caríssimas, no modesto entendimento do meu querido Velho, e que por isso mesmo o deixavam num estado de êxtase embevecido à medida que servia e recolhia copos e copos a torto e a direito.

Já eu, estava ali apenas com dois propósitos: concluir um negócio e aproveitar o que mais se propiciasse. Na ocasião, o que mais se propiciava era toda feita de pernas e baton. Tinha nível, ainda hoje ao recordá-la não posso deixar de confidenciar que, como a Bibi, não conheci muitas.

Uma garota como já não existem: o cabelo ruivo, os olhos verdes, a pele leite aguado, os lábios vermelho sangue, esguia, ventre elegante, seios enrubescidos, pupilas de fogo. Uma hora antes reservara uma garrafa de uísque ao Ferro e ela desde então não me largara. Estava na dúvida se era porque simpatizara comigo ou por causa do meu bago (grana, para os tradutores), mas momentaneamente resolvi que fora por causa de ambos. Ela também me agradava.

Olhei para trás e contemplei o estreito corredor que era então o Bar do Ferro A juntar à música, só estava malta de fora, pessoal underground, embora bonito. A Sofia, o Rui, a Sónia e outros que observava pela primeira vez. Do Rato, o tipo que fora a razão principal para me encontrar pela terceira noite consecutiva no Bar do Ferro, nem sinal. O som insinuava-se nos copos e a Bibi parecia-me cada vez mais interessante. Contudo, achava que para a levar para a cama teria de possuir argumentos mais sólidos do que um charme fajuto e uma carteira recheada. Embora soubesse bem o que ela queria e o que ela gostava, o que ela queria e o que eu gosto também me excitavam. Ela excitava-me.

Cruzei os olhos com os do Ferro, à época ainda pouco mais do que um barman cortês e atencioso e ao mesmo tempo um rosto já familiar. Sorriu-me e serviu mais dois vodkas a uns tipos esquisitos que acabavam de entrar.

A Bibi ensaiou trocar impressões e eu fingi estar interessado. Uma merda qualquer sobre história d’arte. Ela tinha um sotaque giro, carregava nas vogais, enchendo a boquinha de insinuações suaves, sensuais e ao mesmo tempo acutilantes como punhais. Que bela pequena me saíra na rifa. Para tudo ser perfeito só me faltava fechar o negócio e ir dormir com ela. Comecei a sentir-me um pouco impaciente. Onde diabo poderia estar o Rato que não havia meio de aparecer?

Já conhecia o Rato de outros cabarés. Sabia que ele morava perto do Bar do Ferro. Até tinha a morada dele, um bem raro e valioso. Infalivelmente, o Rato haveria de entrar no Bar do Ferro, nem que fosse para comprar tabaco. O sacana andava fugido. Não que isso me admirasse por aí além, mas o Rato tinha imenso valor para mim e não me convinha nada que alguém ou algo lhe “acontecesse” antes de ele resolver um negócio que tinha pendente comigo.

A música mudara e a Bibi calara-se. Apreciei-a e senti nos seus olhos o meu desejo. Havia de a levar para a cama, desse lá por onde desse. O Rui passou por nós a caminho do WC, sorridente e com uma piada inteligente, embora um tudo ou nada jocosa. Virei costas e tinha-me posto a mirar a Sofia, só para chatear, quando um dos tipos que acabara de entrar, o mais alto, sorvendo o vodka de um trago se aproximou e me abordou em surdina:

– És tu que andas à procura do Rato?

Fiz de conta que não era nada comigo, peguei na Bibi pelo braço e a toque de cotovelo saímos cá para fora. A noite estava amena. Corria uma brisa suave e um cheiro adocicado. Mais adocicado, mais embriagante. O perfume dela. Aproximou-se, tomou-me e eu tomei-a e beijou-me na boca. As nossas pernas enlaçaram-se, e ouso dizer que nos sentimos muito bem. Afastámo-nos.

Reparei no Nuno, um músico desempregado que já tinha visto antes e que tocava bem guitarra portuguesa. Estava a um canto, a praticar acordes. Era um tipo simpático, tímido e talentoso, o que sempre me pareceu uma combinação invulgar. Dei a mão à Bibi e conduzi os nossos passos até ele.

Os tipos que eu não conhecia também tinham saído nas nossas costas. Andavam à procura do Rato.

Quando chegámos troquei dois ou três monossílabos de circunstância com o Nuno, só para me sentir um pouco mais seguro, enquanto espiava os gajos de revés e apertava na minha a mão da Bibi. Não sei porquê, a mão dela fez-se um mundo, apercebeu-se, riu contente e deu um beijinho na face do Nuno e ele agradeceu esboçando um trejeito cavalheiresco.

Os gajos aproximaram-se. O mais alto tocou-me ao de leve com um dedo nas costas.
O Nuno tinha agora os olhos pregados no vácuo e o Ferro estava demasiado longe, mesmo que lhe desse na veneta para impor o respeito; ao sair do Bar do Ferro tinha cavado a minha própria sepultura. Pensei na Bibi ao meu lado, aparentemente alheia. Pensei em aplicar no tipo uma paralítica, mas havia sempre o problema dos outros, e mais eles não andavam à minha procura mas sim à procura do Rato, reflecti.

O tipo voltou a tocar-me no ombro, desta vez pressionando-me a omoplata. Resolvi ganhar tempo e arriscando-me a levar com um upper-cut à má fé, devagar, virei-me.

Tinha agora uma visão clara dos gajos, o que não me agradou por aí além. O tipo que preenchia quase por completo o meu campo de visão era obtuso e, não sei porquê, o que ele se pôs a dizer fez-me lembrar um disco rachado que toca sem parar:

– És tu que andas à procura do Rato? És tu que andas à procura do Rato?

– Não, sou eu! – Atalhou a Bibi e eu gostei.

Recuara lentamente e quando me vi seguro fui abrindo a butterfly que trago no bolso de trás sempre que as situações assim o exigem. De súbito, o Nuno levantou-se, pigarreou, dedilhou a guitarra e meteu-se a improvisar o Fado 31: Ai, olarilolela, como este não há nenhum, o fado em Portugal é o fado...

O absurdo da situação relaxou-nos a todos. Os dedos da Bibi acariciaram os meus e os olhos do brutamontes enterneceram-se. O Ferro tinha saído para a Rua e cantava com o Nuno, à desgarrada, embora não desviasse os olhos de nós.

Estávamos num impasse e pensei em mandar tudo à merda, convidá-la a vir embora comigo, só que continuava a existir o problema do Rato, o motivo principal de me encontrar naquele antro de vadios a uma hora tão tardia.

Um outro dos tipos, entroncado e mais ou menos da minha altura, achou que eu tinha cara de otário e perguntou, em gozo, como quem afirma a sua posição na matilha:

– Tu és o Rato, pá?

Os outros palhaços desataram à gargalhada, mas o brutamontes já não sorria e quando eu ia para responder a meu lado a voz da Bibi, carregada nas vogais, firmou-se sem margens para dúvidas.

– Não, ele não é o Rato, ele também quer saber onde está o Rato, e se lhe tocas, mato-te.

A última palavra da Bibi fez-me sentir revigorado e então proferi, solenemente:

– Eu não sei onde está o Rato, ou se calhar até sei, mediante um preço. O que têm para negociar?..

Como a minha pequena tirada melodramática ficasse suspensa no ar resolvi retirar-me até ao balcão, quanto mais não fosse porque tinha sede. Pedi um café e o Velho serviu-mo com todos os matadores, pau de canela incluído. Tinha-se de admitir: o Ferro era feito de bronze. Monolítico como a vida.

Lá dentro o Rui voltara do WC e agarrava-se à Sofia como se a sua vida disso dependesse; entretanto, o Luís jogava às damas com o Paulo; ao fundo, a Gilda e a Teresa conversavam. O meu uísque demorava em sair; havia outra vez um tipo a tocar-me no ombro, fodido virei-me e... dei de caras com a Bibi

— Querido, fala com eles, eles têm para a troca.
— Queres?
— Sim, quero, quero que fales com eles.

Fui falar com eles. Perguntei se tinham. O mais alto tomou conta das operações e acenou afirmativamente. Trocámos. Dei-lhes a morada que eles desejavam e o gajo passou-me duas gramas e mais umas notas de banco para a mão. Bazaram.

Com o acordo tácito do Ferro puxei a Bibi e fomos dar um snif na casa de banho. Bebemos um último copo e levei-a para a cama.

Dois dias mais tarde o Ferro teve uma conversa de pé de orelha comigo, a primeira de muitas que ainda não vos contei: o Rato tinha sido assassinado; faca, à saída da porta da sua casa que ficava três ruas mais acima…