12.4.07

A coleira


Tinha acabado de sair do emprego e descia a avenida na companhia de um colega quando de repente se sentiu nu. Sentiu-se despido em público. Instintivamente, levou a mão ao pescoço e então percebeu o porquê da angustiante sensação que o percorria: faltava-lhe a coleira. Onde diabo a poderia ter pousado, onde estaria a coleira que já há tantos e tantos anos o acompanhava onde quer que fosse? Queixou-se para o colega que lhe faltava a coleira e que não se lembrava onde a tinha deixado, mas tinha a certeza que não fora no emprego e o colega tentou reconfortá-lo, dizendo-lhe que se calhar a deixara em casa.

Que não, que não, respondeu, que saía de casa sempre com a coleira e embora durante o dia a tirasse por várias vezes, nomeadamente no canil onde ambos trabalhavam, ou nos transportes públicos, ou noutros sítios por onde passasse, chegava a casa sempre com ela. Sentia-se mal, um calafrio invadiu-o. Tinha perdido a coleira. Onde iria arranjar outra? Seria possível arranjar outra, pelo menos com a mesma qualidade da coleira que perdera? Seria possível que a coleira voltasse a aparecer? O colega tentava infrutiferamente animá-lo; ora com a promessa de irem partilhar juntos uma lata de Pedigree Pal ao Cais do Sodré enquanto apreciavam as cadelinhas da Primavera, ora com a afirmação de que coleiras há muitas e mesmo que esta não aparecesse podia sempre arranjar outra. Nem uma coisa nem a outra o convenceram.

Sim, era verdade que coleiras há muitas, que vêm em todas as cores, feitios e preços mas nenhuma era a sua coleira. Todas as outras eram coleiras anónimas, eram coleiras que não tinham nada que ver consigo. É que a sua coleira definia-o: não era o mesmo sem ela, estava tão habituado àquela coleira que só a ideia de que a pudesse ter perdido o aterrorizava. A coleira era parte integrante do seu ser, da sua personalidade, da sua forma de estar no mundo. Era como se tivesse perdido uma parte de si próprio; era a coleira que lhe conferia carisma; a coleira era como se fosse a sua chapa de matrícula; a coleira conferia-lhe a dignidade e a circunspecção que tanto apreciava. E sentiu-se ainda pior ao constatar a dimensão da sua irresponsabilidade, a qual fora tão longe ao ponto de fazer com que perdesse parte de si mesmo.

Por tudo isso, quando chegou a casa e verificou que o casaco que há tantos anos o acompanhava, fizesse chuva ou sol, para toda a parte onde os seus pés o levassem, ficara esquecido na mesinha da entrada, soltou um profundo suspiro de alívio.