23.4.07

Boa tarde, Sónia


Passava já das seis quando Eugénio chegou, apressado e cansado, ao consultório do dentista. Apeou-se à porta, tocou à campainha e aguardou pacientemente que a recepcionista o viesse receber. A porta abriu-se com o estalido da fechadura, rangeu ligeiramente nas dobradiças e, do outro lado, Eugénio foi recebido com um sorriso afável.

“Boa tarde, Dr. Rocha!", cumprimentou Sónia educada, mas calorosamente. “Como está?”
“Boa tarde, Sónia! Estou bem, muito obrigado! E a menina?”, replicou Eugénio no mesmo tom afável, fitando os olhos vivos da interlocutora.”

Eugénio gostava de Sónia. Esta não era particularmente atraente, nem sequer muito bonita. Na verdade, nestes meses de consultas, nunca percebera bem o que o agradava nela, se os olhos azuis e expressivos, se a pele clara e o cabelo negro apanhado atrás, se o jeito extrovertido, ou se apenas o sorriso constrangido que se lhe desenhava nos lábios sempre que tinha de justificar o atraso da doutora. Ah!, não fosse ele casado e…

Fosse como fosse, hoje não estava interessado. As cervejas bebidas entre as bocas do Saramago aos brasileiros e o decote da Cristina começavam a pesar na cabeça, o sono ia entorpecendo os sentidos e o estômago ribombava, faminto. Como de costume, a doutora estava “um bocadinho atrasada.” Esboçando apenas um ténue sorriso em aquiescência, Eugénio afundou-se numa das cadeiras, abriu um livro e aguardou. A seu lado, um rapaz soluçava sem parar, com a mão esquerda agarrada à bochecha, enquanto a mãe tentava, em vão, tranqulizá-lo. Eugénio ia folheando ociosamente as folhas do livro, até que, uma hora mais tarde...
“Dr. Rocha?”, a voz de Sónia interrompeu as cogitações de Eugénio acerca da possibilidade de mudar de clínica dentária. “Já pode entrar. É a primeira porta à esquerda.”
Eugénio guardou lentamente o livro, levantou-se, pegou no casaco, arrastou-se a passo lento até ao consultório e bateu delicadamente à porta. “Entre!”, soou de dentro do consultório a voz suave da doutora. Eugénio empurrou a porta, deparando-se com a elegante dentista, cabelo escuro, encaracolado, olhos castanho esverdeados e uma voz adocicada, e com a sua assistente, que nada ficava a dever à primeira em termos de beleza. Eugénio só esperava que fosse esse o caso no que tocava à sua competência. No fundo, duas mulheres, a típica fantasia masculina. No entanto, ter quatro mãos a mexerem num dente infectado afigurava-se-lhe pouco agradável.
“Eugénio Rocha? Pode sentar-se, por favor.”
Eugénio sentou-se, reclinou-se e lançou um olhar fugaz ao tabuleiro que se encontrava ao lado da cadeira: agulhas, seringas, pinças, enfim, uma panóplia de objectos que mais faziam lembrar instrumentos de tortura. Felizmente, Eugénio, desde garoto, nunca temera dentistas.
“Ora bem, tenho aqui a ficha da doutora Sandra. Vamos começar por fazer um raio-X ao seu dente esquerdo", anunciou a doutora num tom profissional.
“Bem, doutora, na verdade, estou a tratar o dente direito”, apressou-se Eugénio a corrigi-la, esforçando-se por disfarçar o tom irónico. Começava a ter sérias dúvidas quanto à competência da fada dos dentes de serviço. Quando não se distingue a direita da esquerda…
“Ah, sim!”, exclamou. “È verdade. Vamos lá, então. Abra bem a boca.”
A dentista deu início ao já costumeiro e penoso processo de tratamento.
Eugénio sentiu a broca com aquele som de abelha ressacada desfazer lentamente a massa, e a pinça raspar os restos da mesma. Devagar, devagarinho, a diligente agulha da anestesia ia penetrando o dente, o líquido correndo como um rio pelos canais, varrendo implacavelmente quaisquer vestígios de dor enquanto, entre os suspiros de aborrecimento e os discretos gemidos de dor de Eugénio, a doutora ia perguntando, "Está tudo bem? Não está a doer, pois não?"

Novas agulhas se seguiram descendo cuidadosamente dente abaixo... Uma. Eugénio sentia o canal alargar. Duas. Surgia um pico de dor, ainda embrionário. Três, quatro… Ena, quebrei o meu recorde pessoal..., pensou Eugénio divertidamente, não sem uma ponta de amargura.
A doutora ia destramente trocando de instrumento e fazendo o seu trabalho com uma certa genica, satisfação até. O olhar de Eugénio ia perscrutando as paredes: fotos de crianças, presumivelmente os filhos da doutora, um diploma (autêntico, espere-se), propaganda sobre medicina dentária, até descansar no olhar compenetrado da dentista...
“Ai!”
“Magoei-o?”, perguntou a dentista em tom preocupado, detendo a agulha repentinamente.
“Não se preocupe. Continue”, replicou Eugénio no tom mais estóico que conseguiu desencantar naquele momento.
“E pronto! Já está! Pode levantar-se”, informou a dentista, satisfeita.
Óptimo!, pensou Eugénio ao levantar-se apressadamente da cadeira.
“Bem, agora marque consulta para daqui a três semanas, para ver se resolvemos de vez esse problema", recomendou a dentista. “Afinal, já andamos nisto há dois meses!"
“Sim, é verdade!”, concordou Eugénio. “Muito bem. Boa tarde, doutora.”
Extraordinariamente, não fora assim tão penoso e demorado como Eugénio temera. Sem mais delongas, acompanhado por este pensamento, dirigiu-se com nova cara para a recepção, a passo firme, onde Sónia o aguardava, escrevinhando aborrecidamente numas folhas com aspecto oficial, uma madeixa cobrindo-lhe a face esquerda e acariciando-lhe languidamente os lábios.
“Já estamos, Dr. Rocha?”, inquiriu, levantando surpreendida a cabeça, sorrindo distraidamente, ao notar a presença do paciente.
“Sim, sim. Mas, não se preocupe, daqui a três semanas venho visitá-la outra vez.”, disse Eugénio num tom calmo, exibindo um sorriso discreto. “Quanto lhe devo?”
Sónia corou ligeiramente, sorriu, e marcou a consulta para o dia nove de Maio.
“Então, até à próxima vez, Dr. Rocha!”, despediu-se Sónia docemente. "As suas melhoras!"
“Obrigado, Sónia, até dia nove.”

O Dr. Eugénio Rocha, 42 anos, casado, pai de dois filhos, doutorado em Filosofia Medieval, e excelente jogador de poker, nunca voltou a ver Sónia.
No dia seguinte, deu entrada no hospital, vítima de enfarte.
Segundo os médicos, parece que não andava a controlar o colesterol.