27.2.07

Terapia


Teresa chegou à sala de espera às 11:05 de mais uma manhã de sábado, como vinha já sendo hábito durante este último ano e meio. Entrou na sala vazia, cumprimentou educadamente a recepcionista e sentou-se à espera. Enquanto aguardava a sua vez, ia folheando distraidamente uma revista: mexericos desinteressantes sobre a vida das estrelas, o resumo das novelas, anúncios a produtos de beleza. Teresa deu por si a pensar na sua própria vida e imagem. Tinha 31 anos, era alta, morena e podia mesmo dizer elegante. Tinha olhos castanhos, bonitos, ainda que um pouco afastados, na sua opinião, e cabelo castanho claro liso pelos ombros. Não era o tipo de mulher espampanante, mas não era feia. Nada que um pouco de aprumo e bom gosto não resolvesse.

“Teresa?” A voz delicada da doutora Ana interrompeu bruscamente as reflexões de Teresa. “Pode entrar, por favor.” Teresa levantou-se rapidamente, pegou na mala e dirigiu-se para a porta do consultório, cumprimentou a doutora com um sorriso tímido, atravessou a porta e sentou-se. O consultório passara, com o tempo, de um local estranho e frio a quase uma segunda casa. Na verdade, era um espaço muito simples, mas estranhamente apaziguador. As paredes eram brancas, decoradas com alguns quadros, as cortinas azuis e, à direita, o sol inundava a sala, aquecendo-lhe ternamente o rosto. Era acolhedor. Teresa aprendera a sentir-se confortável naquela pequena sala. A doutora Ana sentou-se no outro lado da secretária, cruzou as mãos sobre a mesa e contemplou Teresa com o olhar e o sorriso afáveis aos quais a habituara ao longo do último ano e meio. Caiu um breve silêncio entre as duas. Teresa sentia-se sempre ligeiramente incomodada ao início, nunca sabia por onde começar. A doutora percebia essa dificuldade e tomava a iniciativa:

- Olá, Teresa! – cumprimentou a doutora, calma, mas calorosamente. Então, como foi a sua semana?
- Foi normal... sem nenhum acontecimento especial – respondeu Teresa hesitante, sem nunca saber como desenvolver o diálogo para além do cumprimento inicial.
- Algum assunto que queira falar em particular, hoje?

Teresa contemplou a doutora demoradamente.
Os olhos de um castanho claro de Ana continuavam fixos na sua paciente e o seu sorriso não se desvanecera. Uma vez mais, a doutora resolveu dar um empurrão à conversa.

- Porque não falamos sobre a sua avó? – interpelou a doutora. – Passaram cerca de duas semanas. Como se tem sentido com toda esta situação?

Teresa era paciente de Ana há já um ano e meio. Começara a consultá-la quando caiu em depressão por o noivo a ter deixado por outra. Diga-se de passagem, os problemas emocionais eram um mal que assolava as mulheres da família. Seja como for, desde então, Teresa isolara-se, raramente saindo com amigos ou vendo alguém. A morte da avó fora a gota d’água.

- Não sei o que lhe dizer. Estou triste... muito. A minha avó criou-me, como sabe. – Teresa esforçava-se para evitar que a voz lhe falhasse. – Foi como perder a minha mãe outra vez. Mas, estou a aguentar-me bem. – respondeu Teresa, pouco convincente.
- Eu sei que está a passar por uma fase difícil, mas tem de se lembrar que tem toda uma família que a apoia. Tem amigos, é querida por todos. Embora agora queira estar sozinha, faça um esforço, vire-se para eles. Saia, tente espairecer. Eu sei que o que lhe estou a pedir é difícil, mas a solidão não a vai ajudar. – disse a doutora, sempre carinhosa, mas firme. – Presumo que também não tem saído com ninguém?

Teresa sorriu, enquanto limpava algumas lágrimas que lhe acorreram ao rosto.

- Bem, na verdade, - começou, hesitante, soltando um breve riso - conheci um homem muito interessante – respondeu Teresa, o sorriso tímido alargando-se lentamente. – Por muito estranho que pareça, conheci-o durante o velório.
- Sim? – encorajou a doutora, tentando esconder a ponta de surpresa que se lhe desenhava na voz. – Não quer partilhar isso?
- Durante o velório, a minha irmã chegou e estava acompanhada por ele. Apresentou-mo; era o namorado dela. Apenas nos cumprimentámos, mas eu soube... eu soube que é com ele que tenho de ficar. – disse Teresa, já sem esconder o sorriso, os olhos faiscantes de felicidade, como se tivesse acabado de declarar uma certeza universal. – Sabe, sabe quando conhece alguém e tem a certeza de que aquela pessoa é o seu destino? Foi isso que senti!

Teresa falava de forma efusiva, o oposto do que mostrara à psicóloga durante o ano e meio de consultas. Ana escutava atentamente, quase maravilhada pela mudança súbita de Teresa. Era quase como se estivesse a conhecer uma outra pessoa. Teresa falava incessantemente sobre este personagem. Descrevia-o repetidamente, obsessivamente até, o cabelo, os olhos, a voz, a forma de falar. “E apenas esteve com ele uns minutos. Quem sabe? Por vezes, não é preciso mais do que isso”, pensou Ana, embora não partilhasse do romantismo ferveroso de Teresa. No entanto, não pôde deixar de perguntar o que certamente Teresa já esperava:

- Mas, - atalhou Ana o devaneio de Teresa – não lhe preocupa o facto de este homem ser o namorado da sua irmã?

Teresa calou-se subitamente e fez-se um silêncio pesado entre as duas.

- Ainda não lhe contei? – perguntou Teresa, surpreendida.

Ana fitava a sua paciente, perplexa, aguardando a novidade. O sorriso de Teresa esvaiu-se até voltar a ser o mesmo sorriso tímido e discreto, e o seu rosto assumiu a gravidade habitual. A sua voz soou fria e distante na resposta:

- A minha irmã teve um acidente de carro. Os travões falharam. Morreu. O funeral é dentro de uns dias. Tenho a certeza de que o verei lá.