24.1.07

A Alma Gémea e o Inferno



Para Beatriz


Perguntas se me inquietas? Pois claro que me inquietas, o que é pensas, que é só paleio? Inquietas-me sim, até corro riscos sérios e tu também à pala da inquietação que partilhamos, não é verdade? Aliás, ainda corres mais riscos do que eu, concedo-te isso, tens muito mais a perder, mas e se eu um dia levar um tiro nos cornos à conta da minha inquietação, como é que é? Nada bonito, pois não?

Palácios cor de rosa, luscos-fuscos enegrecidos, encontros românticos à luz da vela, tudo isso é muito giro, pois, e o risco, e a merda do risco, não é inquietante só por si? Achas que corro este risco por gosto? Achas que tenho muito prazer em andar a esconder-me e a imaginar que a próximo viatura não é o tua mas a dele? E que o gajo vem cheio de raiva determinado a acabar com a minha linhagem? E então? Como é que ficava?

Adoro-te? Pois claro que te adoro, pois claro que te desejo e pois claro que não te tenho e que isso me fode o juízo, e então, o que é que podemos fazer acerca disso?

Sinto a tua falta? É óbvio que sinto a tua falta, é óbvio que me magoa não te ter perto, nem que fosse apenas para conversar, para trocarmos impressões da vida e desatinos da existência, para nos, ai que agora já me fugia uma palavra tua para a verdade, mas não foge porque eu não deixo, mesmo quando estou assim, com vontade de te bater. É claro que te quero. E então?

Sim, quero estar contigo, não me canso de partilhar o Mundo contigo, de te ler, de ser lido por ti, e sim, queria assumir em plenitude o que nos une, ou pelo menos o que me une a ti. E então?

... Não pode ser, ou pode? Já sabes bem que mais tarde ou mais cedo teríamos de ir para a cama, e depois? Como é que era, estávamos lixados, não era? E então? Quero ir para a cama contigo? O que é que achas? E tu, vais dizer-me que isso não te passou pela cabeça? Diz-me lá o que é tu achas que gostaríamos de fazer se e quando nos apanhássemos a sós outra vez? Como é que ia ser? Eu sei que provavelmente a iniciativa não iria partir de ti, mas e eu? Achas mesmo que ia ficar impávido e sereno deixando escapar-se-me por entre os dedos a oportunidade única de finalmente te possuir?..

E então, o que é que isso nos adiantava? Sim, e então? Muito, adiantava muito, ou nada, parece-me que nunca o saberemos, dois cobardes que somos mas se o soubéssemos, tudo seria diferente. Sim somos cobardes. Se calhar, se fosse diferente, até reuníamos forças para os deixarmos, para sermos livres, para voarmos até ao céu, dois anjos juntos experimentando piruetas, loopings e outros truques bonitos.

Mas nada disso pode ser, não é verdade? Tu tens o teu marido e eu tenho a minha mulher. Somos ambos pessoas íntegras e a ambos nos horroriza a sordidez de um romance clandestino; mais a mais sabendo nós os dois que tal romance a lado algum nos levaria. Eu não me posso separar, tu idem aspas e então, o que é que íamos fazer?

Ir fazendo o amor, às escondidas de tudo e de todos, só para termos a ínfima consolação de dizer, quando tudo acabasse, de dizer apenas e tão só a nós mesmos na solidão que se renovava, que tínhamos finalmente consumado o nosso Amor, que tínhamos finalmente numa centelha de eternidade sido, enfim, felizes? E porque não?
Por várias razões.

Que merda de amor seria esse? Um amor de quarto de hotel? Um amor de terças e quintas por duas horas? É isso que tu queres? Eu sei que não é isso que tu desejas. Eu sei, meu amor, é também por o saber que te amo tanto. E sei também que isso seria o máximo que nos poderias dar. E sei que eu te forçaria a isso mesmo, porque sou um sacana egoísta e me aproveitaria da tua fragilidade e do meu modo de ser cínico para te arrastar numa aventura sem futuro de onde ambos sairíamos a perder, sendo quase certo que tu perderias muito mais do que eu. E olha que não é nada em que não pense.

Assim: uma fodazinha com uma amiga às terças e quintas que até não me calha nada mal, não senhor, não calha, só que tu não és uma amiga, és a mulher que amo, Tu, Ana Blue, tu és a minha alma gémea.

E, para além disso... Detesto o ridículo e sei que também o detestas. E vivermos assim seria ridículo. Pior, seria grotesco. Não podemos nunca ir por aí. Recorda-me estas palavras sempre que delas me esquecer, imploro-te.

Porque não nos conhecemos antes? Porque não somos livres? Porque trazemos atrás de nós toda esta bagagem de afectos e obrigações, todo este código moral que nos tolhe os movimentos e nos envenena a paixão? Só queria saber isso.

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E se os matássemos?.. Sabes, já pensei nisso, se eles não existissem tudo seria mais simples, não te parece? Podíamos até fazer a coisa à moda de Agatha Christie, afinal ninguém sabe que nos conhecemos, ninguém desconfia que nos amamos, que temos esta voragem um do outro, que somos almas gémeas condenadas e este tormento de existência infernal que nos obriga a silenciar o elo mais sagrado que entre dois seres possa existir. Sim, e se os matássemos?..

Porque não somos livres? Porque não nos conhecemos antes? A resposta é simples: Porque Deus assim não o quis. É uma merda é o que é. Mas é isto e tão só isto. Não dá. Só dá para o que é. Assim, platónico, e eu, por mim, resigno-me a que assim seja. Com sorte, eu um dia, eu e tu, se é que posso falar por ti, sim, um dia até nos esqueceremos de que somos almas gémeas.

Por enquanto, todos os dias antes de me deitar penso em ti e tenho uma vontade louca de subir até ti, mas não pode ser, e porque somos Humanos, sabemos que não pode ser e não o fazemos. Amo-te minha querida.

E não tenho vergonha nenhuma, o que não quer dizer que ande aí a espalhar aos quatro ventos a paixão que sinto pela minha alma gémea. Não, não o faço. É privado. Até me estou nas tintas para as consequências. Não tem nada a ver com consequências. Tem a ver com o amor que te sinto. Porque amor é acima de tudo respeito.

E mesmo que não te amasse, eu gosto muito de ti. E tu sentirás carinho por mim. Por favor, não duvides de mim. Seria incapaz de algum dia te colocar em xeque. O que não quer dizer que não te escreva, como agora, assim despido de preconceitos em frente a todos, e se o faço é porque tenho a absoluta convicção de que estão tão longe, mas tão longe de perceber que te escrevo, que nada nem ninguém poderá um dia sabê-lo.

E jamais te colocaria em xeque. Embora seja um excelente jogador de xadrez. Pergunta ao meu melhor amigo. Pergunta a Bobby Fisher, ou a Dante.. Sabes, eu nunca te colocaria em xeque. Por um motivo tão simples que até incomoda de simplicidade. É que Tu, tu és a minha alma gémea. Se eu te colocasse em xeque, colocava-me a mim próprio em xeque. E que venha o Inferno, se é essa a vontade de Deus.