Conheço o Luís e o Duarte desde os tempos da faculdade. Sempre achei o Luís um tipo simpático e prestável; um bom amigo. Deixava-me sempre copiar nos testes. Quanto ao Duarte, um mulherengo incorrigível, mas também bom tipo. Uma saída à noite com ele, era mulherio garantido. Anos passados, o Luís casou com o seu amor da faculdade, Ana. Quanto ao Duarte, bem, como disse, incorrigível.
Passaram dez anos desde que, juntos, sempre inseparáveis, acabámos o curso de Economia e Gestão. Há seis anos atrás juntámos esforços para fundar a nossa pequena firma. Desde então que esta está em franco crescimento e a nossa vida ganhou um novo rumo. Ainda assim, não fiquei surpreendido quando o Luís foi preso.
Naquela manhã fria de Janeiro, a notícia caiu como uma bomba sobre a família e amigos. Luís apanhara a mulher com outro homem na sua própria casa e, sem hesitar, matou-os. Mas, não fiquei surpreendido.
O Luís chegou a minha casa por volta das oito e meia da noite, com sangue ainda nas mãos e no corpo, o brilho da loucura nos olhos e a adrenalina ainda a estalar no rosto. Entrou, ensopado até aos ossos pela tempestade que rugia lá fora, a tremer, e, sem dizer palavra, sentou-se no sofá. Levou as mãos ao rosto, inconsciente do sangue da mulher. Lentamente, começou a falar em voz trémula: “Merda, João! Fiz merda! Estou tramado!” Tentei acalmar o pobre e encorajei-o a contar-me o que se tinha passado.
Aparentemente, recebeu uma chamada anónima enquanto trabalhava até tarde no escritório. Do outro lado da linha só conseguiu ouvir a voz abafada de um homem que apenas lhe disse que, naquele momento, Ana estava em casa com outro homem. Ana? Atraiçoá-lo daquela maneira? Recusara-se a acreditar. Ana amava-o! Era uma das poucas certezas que tinha na vida. Pousou o auscultador, ainda perplexo por este estranho acontecimento. Decidiu continuar embrenhado na contabilidade. Ana nunca o trairia. Absurdo! Então, porque continuava a pensar nisso? Raios! Já não conseguia concentrar-se no trabalho. Tinha que ir a casa e tirar esta dúvida da cabeça. Pegou no casaco e nas chaves do BM, e foi disparado para casa. Ao conduzir pelo meio do temporal, não conseguia deixar de ouvir a voz daquele homem martelar-lhe na cabeça sempre a mesma mensagem. Para todos os efeitos, ele sabia o seu nome, o de Ana e sabia que estaria no escritório àquela hora. Seria só uma partida de mau gosto?
Ao chegar a casa, subiu directamente até ao quarto no segundo andar, ofegante, e escancarou a porta, receoso do que iria encontrar. Mas, não encontrou nada. A cama estava impecavelmente arrumada, o quarto estava um brinco. Ao descer as escadas, Luís ria-se de si mesmo. Como pudera pensar que Ana, sua namorada desde os tempos da faculdade, a mulher com quem casara, alguma vez o enganaria? Foi até à cozinha buscar uma cerveja; depois de tanta agitação, bem merecia sentar-se no sofá a ver o jogo, beber um copo e relaxar. Ao chegar à cozinha, porém, deparou-se com aquilo que tanto temia. Ali, mesmo à frente do seu nariz, como um animal, Ana parecia ter perdido todo o pudor que com ele sempre invocara. E o outro homem não era um gajo qualquer: tratava-se do Duarte. Luís ficou cego de cólera, as lágrimas acudiram-lhe aos olhos. Sem qualquer troca de palavras, perante as caras espantadas dos dois amantes, pegou numa faca e, como que possuído, lançou-se sobre eles. Rapidamente, espetou a faca no peito de Duarte, imobilizando-o, deixando-o sufocar no seu próprio sangue. Virou-se, então, para Ana, o rosto distorcido pelo ódio e pela dor. Os olhos azuis de Ana pediam clemência... mas Luís foi impiedoso... Foi assim que ouvi o Luís contar como matara a mulher, perdido entre soluços e lágrimas. Como se lançara sobre ela, cravando a lâmina cega uma e outra vez, cada vez mais rápido, mais violento, no peito, na barriga, no rosto, no seu belo rosto, até que Ana já não era mais do que uma massa indistinta de sangue e carne.
Eu escutava atentamente o Luís, absorvido pelo seu relato, e percebia que parte dele tinha gostado de tudo aquilo. As suas palavras não o revelavam, mas os seus gestos e aquele brilho nos olhos que só os loucos possuem e os sãos invejam, denuciavam-no.
Desde a faculdade que sempre soube que havia mais no Luís do que a vista alcançava... só não conseguia ver onde, ou o quê. Algo podre, no fundo... pronto a explodir, a consumir tudo o que diziam que ele era: simpático, afável, atencioso... num segundo, num instante de loucura. Sabia bem que aconteceria, mais cedo ou mais tarde, tal como sabia que estaria na primeira fila, a assistir.
“O que é que vou fazer agora? Tens que me ajudar, João, tens que me ajudar!” “Calma! Por esta noite, vais para aquela pensão aqui perto. Mais ninguém sabe desta história, pois não, Luís? Amanhã, logo vemos.” Luís não estava em estado de contestar. Ajudei-o a levantar-se do sofá, dei-lhe umas roupas lavadas e disse-lhe que depois ligava.
Na manhã seguinte, nunca cheguei a ligar ao Luís. Aparentemente, a Polícia recebeu uma chamada anónima de um homem que o denunciou.
Ah! Luís, Luís! Vou ter saudades! Apesar de tudo, até gostava dele.
Só lamento que a Ana tenha tido este desfecho trágico. Que desperdício! Mas, já a tinha avisado quando descobri o segredo dela. Paga-se uns copos ao Duarte e a língua solta-se que nem um trapo. Desta vez, saiu-lhe caro. Eu gostava da Ana. Ainda lhe dei a escolher… devia ter-me levado a sério. Infelizmente, desde a faculdade que ela sempre resistiu aos meus avanços. Grande cabra! Casa-se com um zero como o Luís, enrola-se com um falhado como o Duarte e tem a coragem de me continuar a dizer não!? Mas, como disse, já a tinha avisado...
Agora, com o Duarte morto e o Luís na cadeia, não resta ninguém para dirigir o nosso negócio… a não ser eu. Resta-me apenas tomar o leme da minha firma em plena ascensão, sozinho.
Passaram dez anos desde que, juntos, sempre inseparáveis, acabámos o curso de Economia e Gestão. Há seis anos atrás juntámos esforços para fundar a nossa pequena firma. Desde então que esta está em franco crescimento e a nossa vida ganhou um novo rumo. Ainda assim, não fiquei surpreendido quando o Luís foi preso.
Naquela manhã fria de Janeiro, a notícia caiu como uma bomba sobre a família e amigos. Luís apanhara a mulher com outro homem na sua própria casa e, sem hesitar, matou-os. Mas, não fiquei surpreendido.
O Luís chegou a minha casa por volta das oito e meia da noite, com sangue ainda nas mãos e no corpo, o brilho da loucura nos olhos e a adrenalina ainda a estalar no rosto. Entrou, ensopado até aos ossos pela tempestade que rugia lá fora, a tremer, e, sem dizer palavra, sentou-se no sofá. Levou as mãos ao rosto, inconsciente do sangue da mulher. Lentamente, começou a falar em voz trémula: “Merda, João! Fiz merda! Estou tramado!” Tentei acalmar o pobre e encorajei-o a contar-me o que se tinha passado.
Aparentemente, recebeu uma chamada anónima enquanto trabalhava até tarde no escritório. Do outro lado da linha só conseguiu ouvir a voz abafada de um homem que apenas lhe disse que, naquele momento, Ana estava em casa com outro homem. Ana? Atraiçoá-lo daquela maneira? Recusara-se a acreditar. Ana amava-o! Era uma das poucas certezas que tinha na vida. Pousou o auscultador, ainda perplexo por este estranho acontecimento. Decidiu continuar embrenhado na contabilidade. Ana nunca o trairia. Absurdo! Então, porque continuava a pensar nisso? Raios! Já não conseguia concentrar-se no trabalho. Tinha que ir a casa e tirar esta dúvida da cabeça. Pegou no casaco e nas chaves do BM, e foi disparado para casa. Ao conduzir pelo meio do temporal, não conseguia deixar de ouvir a voz daquele homem martelar-lhe na cabeça sempre a mesma mensagem. Para todos os efeitos, ele sabia o seu nome, o de Ana e sabia que estaria no escritório àquela hora. Seria só uma partida de mau gosto?
Ao chegar a casa, subiu directamente até ao quarto no segundo andar, ofegante, e escancarou a porta, receoso do que iria encontrar. Mas, não encontrou nada. A cama estava impecavelmente arrumada, o quarto estava um brinco. Ao descer as escadas, Luís ria-se de si mesmo. Como pudera pensar que Ana, sua namorada desde os tempos da faculdade, a mulher com quem casara, alguma vez o enganaria? Foi até à cozinha buscar uma cerveja; depois de tanta agitação, bem merecia sentar-se no sofá a ver o jogo, beber um copo e relaxar. Ao chegar à cozinha, porém, deparou-se com aquilo que tanto temia. Ali, mesmo à frente do seu nariz, como um animal, Ana parecia ter perdido todo o pudor que com ele sempre invocara. E o outro homem não era um gajo qualquer: tratava-se do Duarte. Luís ficou cego de cólera, as lágrimas acudiram-lhe aos olhos. Sem qualquer troca de palavras, perante as caras espantadas dos dois amantes, pegou numa faca e, como que possuído, lançou-se sobre eles. Rapidamente, espetou a faca no peito de Duarte, imobilizando-o, deixando-o sufocar no seu próprio sangue. Virou-se, então, para Ana, o rosto distorcido pelo ódio e pela dor. Os olhos azuis de Ana pediam clemência... mas Luís foi impiedoso... Foi assim que ouvi o Luís contar como matara a mulher, perdido entre soluços e lágrimas. Como se lançara sobre ela, cravando a lâmina cega uma e outra vez, cada vez mais rápido, mais violento, no peito, na barriga, no rosto, no seu belo rosto, até que Ana já não era mais do que uma massa indistinta de sangue e carne.
Eu escutava atentamente o Luís, absorvido pelo seu relato, e percebia que parte dele tinha gostado de tudo aquilo. As suas palavras não o revelavam, mas os seus gestos e aquele brilho nos olhos que só os loucos possuem e os sãos invejam, denuciavam-no.
Desde a faculdade que sempre soube que havia mais no Luís do que a vista alcançava... só não conseguia ver onde, ou o quê. Algo podre, no fundo... pronto a explodir, a consumir tudo o que diziam que ele era: simpático, afável, atencioso... num segundo, num instante de loucura. Sabia bem que aconteceria, mais cedo ou mais tarde, tal como sabia que estaria na primeira fila, a assistir.
“O que é que vou fazer agora? Tens que me ajudar, João, tens que me ajudar!” “Calma! Por esta noite, vais para aquela pensão aqui perto. Mais ninguém sabe desta história, pois não, Luís? Amanhã, logo vemos.” Luís não estava em estado de contestar. Ajudei-o a levantar-se do sofá, dei-lhe umas roupas lavadas e disse-lhe que depois ligava.
Na manhã seguinte, nunca cheguei a ligar ao Luís. Aparentemente, a Polícia recebeu uma chamada anónima de um homem que o denunciou.
Ah! Luís, Luís! Vou ter saudades! Apesar de tudo, até gostava dele.
Só lamento que a Ana tenha tido este desfecho trágico. Que desperdício! Mas, já a tinha avisado quando descobri o segredo dela. Paga-se uns copos ao Duarte e a língua solta-se que nem um trapo. Desta vez, saiu-lhe caro. Eu gostava da Ana. Ainda lhe dei a escolher… devia ter-me levado a sério. Infelizmente, desde a faculdade que ela sempre resistiu aos meus avanços. Grande cabra! Casa-se com um zero como o Luís, enrola-se com um falhado como o Duarte e tem a coragem de me continuar a dizer não!? Mas, como disse, já a tinha avisado...
Agora, com o Duarte morto e o Luís na cadeia, não resta ninguém para dirigir o nosso negócio… a não ser eu. Resta-me apenas tomar o leme da minha firma em plena ascensão, sozinho.
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