4.12.06
O homem vestido de preto
Em homenagem a Fernando Gaspar.
Numa noite amena de Dezembro de 1966 entrou pela porta principal do restaurante Adega dos Passarinhos, sito à rua Luís de Sá Pessoa, n.º 17, na Alta de Lisboa, aliás, um dos meus poisos habituais ainda e sempre que me desloco à capital, um homem vestido de preto, um homem que trazia arrastada atrás de si uma sombra misteriosa, inteiramente cerzida em desolação e negrume. Um homem de gestos nervosos mas firmes, cabelos negros embora brancos, e os olhos frios, se bem que brilhantes.
Um homem, paradoxalmente, acima de tudo discreto e em simultâneo ofuscante; um homem totalmente desconhecido de todos os outros comensais, um homem com rugas vincadas na testa e as unhas sujas que nem sachos, numas mãos que, a um observador atento, se adivinhavam calejadas por décadas e décadas de labutas dolorosas nos cantos mais ínvios da existência;. um homem com umas mãos que – para os poucos de nós que o conhecíamos e o fitávamos de revés – era notório se esforçava em ocultar. Como quem tem vergonha dos seus dedos, ou pavor de que os outros vissem a nu a crueldade que deles emanava.
Eu, cliente da casa fazia uns dez anos e à semelhança dos mais antigos criados de mesa do afamado estabelecimento, (trata-se de uma tasca que data de 1874 e que albergou em outros tempos memoráveis tertúlias do grupo dos Vencidos da Vida) entre os quais se contavam o sempre afável senhor António Gil, o insofismável apesar da careca senhor Paulo Gomes e o nunca por demais incontornável senhor Teixeira, reconhece-mô-lo de imediato.
Nenhum, de nós, no entanto, deu mostras de se lembrar do homem vestido de preto que daquela maneira invadira, bruscamente, abruptamente, (porque não dizê-lo), uma noite que até essa altura se anunciara perfeitamente legislada na graça de São Salazar, tranquila na benesse dos cinco escudos que acabavam de me pagar, enfim, uma noite de Domingo, morna e aprazível, como são e sempre foram desde então e até hoje, seis do seis de 1986, todas as noites de Domingo na Adega dos Passarinhos no mês de Dezembro.
(Interrompo esta narrativa para vos clarificar alguns pontos que sendo do meu interesse também poderão um dia vir a ser do vosso: necessário é dizer-vos que o homem vestido de preto era persona non grata da casa, muito embora, pela parte que me toca, e estou cem por cento seguro, pela parte que toca desde os empregados passando pelas sopeiras da cozinha até à gerência, ninguém tenha dele razão de queixa, bem pelo contrário. Sempre pagou as suas contas e resolveu discretamente os seus assuntos, com o superavit de generosas gorjetas e jamais perdeu a compostura, apesar de ser seu hábito beber em demasia. Contudo, é persona non grata, vá-se lá saber o motivo, e essa certeza basta para que finjamos ignorá-lo desdenhosamente. Para além disso, fazia pelo menos quatro anos que ninguém lhe punha a vista em cima; tinha-se, uma bela noite de Agosto, a primeira vez que o vira, seis anos antes, assim como chegara, pura e simplesmente volatilizado)
Então, o homem alto vestido de preto, com a gabardina de couro e as calças de flanela, os sapatos polidos, centrou-se no lobby da entrada, as pernas afastadas e os pés bem fincados no chão, como um tipo que nada tem a perder armado em duro, como um tipo que desafia o Mundo inteiro sem a ousadia ou o descaramento de o dizer claramente, e aguardou, impávido, soberano, que alguém dele se ocupasse.
Coube ao bom do velho Teixeira fazer-lhe as honras da casa; num aceno que guardava para os melhores clientes, inquiriu ao homem vestido de preto se desejava jantar ou se vinha por outro motivo. O homem vestido de preto, reparando melancólico que uma mosca acabara de falecer como que por acaso electrocutada no moderníssimo aparelhómetro anti-insectos que o dono da Adega recentemente mandara instalar, acenou afirmativamente e, sem dizer palavra, despiu a gabardina, confiou-a ao pressuroso do Teixeira e foi sentar-se naquela mesa do canto, de onde se podia ver tudo e onde tão poucas vezes o vira eu a jantar, só ou acompanhado, sem ver nada e ao mesmo tempo prestando atenção a tudo.
Como de costume, pediu uma dose de entremeada de porco e um jarro de vinho tinto da casa. A única diferença desde a última vez em que o vira era que lhe faltava uma mulher, os carapaus em molho de escabeche o e o jarro, em vez de ser de litro, era dos pequenos.
Encontrando-me eu naquele êxtase confiante que medeia entre a segundo copo de três e os restantes, fitei-o de modo descarado, longamente, mas o homem vestido de preto não se desconcertou. Pareceu-me que tinha mais cabelos brancos do que da última vez e que os seus olhos eram ainda mais brilhantes, ainda mais alucinados, se é que possível descrever tamanha alucinação como a que lhe vi luzir nessa felizmente já distante noite, subitamente tornada gélida, em Dezembro de 1966.
Recordo-me ainda de que no aparelho de imagens a preto e branco o Braga dava uma tareia à Académica, (o que me convinha a mim e aos da casa, ou não fossem eles e este vosso humilde criado acérrimos simpatizantes do FC Porto). A vinte minutos do fim, parecia o campeonato decidido, quando o Júlio, por demais conhecido como o bêbado do bairro, me chamou discretamente à atenção, (coisa no Júlio extremamente rara.) para a mesa do canto onde se encontrava o homem vestido de preto.
Até hoje estou convencido de que se não fosse esse reparo tímido do bêbado do Júlio nunca mais me teria lembrado do homem vestido de preto, do homem de olhos brilhantes vestido de preto que sozinho não via ninguém e ao mesmo tempo parecia vislumbrar o Universo inteiro.
Foi quando o Júlio me desviou a atenção do jogo no qual o meu clube tantas esperanças depositava, que me apeteceu dar ao homem vestido de preto um bom par de estaladas. Porém, não o fiz. Li nos seus olhos algo de indizível, perturbador, angustiante, algo de que até hoje não me esqueci e estou em crer que é esse o motivo pelo qual vinte anos depois senti a necessidade de confiar ao papel este aparentemente prosaico episódio.
Incomodado, virei-lhe as costas, na minha vã determinação de desfrutar de uma noite de domingo normal, apreciando apenas os dribles de Sousa para Zé Miguel, os cortes de carrinho de Frasco, bem como as sempre incompreendidas acções dos bandeirinhas, que todos nós os da Adega dos Passarinhos logo comentávamos, acalorados, imbuídos de uma estranha fraternidade, a qual, como é óbvio, logo e ainda hoje se esfumava mal o apito final do árbitro se faz ouvir.
Em vão o tentei, dizia-vos, mas pareceu-me impossível regressar a esse tão simples e contudo tão elaborado prazer dos meus domingos à noite na Adega dos Passarinhos.
Na altura em que os meus olhos de novo recaíram sobre ele, quase que tinha terminado o seu repasto. Apanhei-o no preciso momento em que o senhor Teixeira, sem qualquer desdém e até num modo que me pareceu a mim respeitoso em demasiada, não prestando ao jogo do Braga que tudo decidia a mínima pevide, com uma clarividência que me pareceu por demais estranha, lhe perguntava, atencioso: “O senhor vai desejar mais alguma coisa?..”
O restaurante inteiro pareceu-me parar no tempo, suspenso da resposta do homem vestido de preto. Pareceu-me até que inclusive que os que o não conheciam, sentiam no ar que algo de grave estava prestes a suceder, embora ninguém pudesse, em abono da verdade, prever exactamente o quê ou quem.
Por graça ou acaso do destino, na televisão uma lesão interrompera o jogo e o silêncio do ruído ecoava ensurdecedor a partir do estádio agora mudo até vir embater de chofre nas paredes engorduradas da sala de refeições, num estribilho que me lembrou uma canção diabólica.
Então, o homem vestido de preto replicou, naquela voz grave e seca que reconhecemos todos sem excepção com temor, naquela voz desprovida de qualquer sentimento, naquela voz que era como se fosse a de um homem morto e vivo apenas por segunda ou terceira ou sexta prestação, num sorriso cúmplice que só o Teixeira pareceu compreender: “Hoje, Senhor Teixeira, apenas desejo beber um whisky e prestar atenção ao vosso jogo. Estou de folga, como de costume, sempre que vos venho visitar.”
E, como de costume, o Braga acabou por ser goleado pela Académica. Como de costume, o Porto acabou por perder o campeonato. E, como de costume, as nossas vidas acabaram por perder qualquer sentido nesse momento, sem que eu ou mais ninguém tivesse dado fé de que a história sempre se repetia quando o homem vestido de preto estava presente. Mesmo quando estava de folga.
Provavelmente, era por essa razão que o considerávamos persona non grata, era por esse motivo que o odiávamos como não odiávamos a mais ninguém. O homem vestido de preto tinha vindo visitar-nos.
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