2.12.06
O dilema de Júlia
Durante semanas aquele homem cumulara-a de atenções. A primeira vez que topara com ele dera-lhe trela apenas para ser divertir um pouco, excitando-lhe a imaginação, sem no entanto dar grande importância ao caso. No dia seguinte, contudo, ele estava lá de novo e não se havia esquecido dela.
A princípio, Júlia rira de toda a situação e fora-o tolerando, em parte porque lhe achava graça, em parte porque sentia um vazio na sua vida desde que se divorciara do marido e considerara que um flirt inocente, seguro, à distância, nunca a poderia vir a prejudicar.
Aos poucos e poucos, porém, as palavras dele, o seu sentido de humor, a sua argúcia e a sua cultura tinham-na cativado, cada vez mais e mais. Ao ponto de, finalmente, ter resolvido a arriscar-se e começar, também ela, a abrir o livro da sua vida, das suas aspirações, dos seus medos, dos seus desejos, enfim, dos seus sonhos.
Chegou a envergonhar-se de se dar a conhecer assim, de se despir perante um estranho completo, um homem que não conhecia de parte alguma, e cuja sinceridade não tinha modo algum de confirmar. Mas a verdade é que baixava a sua guarda, já não lhe resistia, precisava dele.
Todas as noites, quando se deitava na cama vazia, uma chávena de chá de tília ao lado, bebida que por acaso ele também apreciava, Celine Deon na aparelhagem, era o primeiro homem na sua vida que lhe afirmava também gostar da célebre cantora, e o portátil a fazer as vezes de ponte nos seus jogos cada vez mais amorosos, na sua intimidade, cada vez mais sentida, embora ainda virtual, para Júlia, tudo isso a cativava e a seduzia de uma forma nova, estranha, mas irresistível.
Ao chegar do trabalho, só no seu apartamento pequeno e frio, corria a sentar-se em frente ao computador e a primeira coisa que fazia era verificar se tinha correio dele. Verificar que tinha recebido mensagens de zecoutinho@sapo.pt era para ela uma suprema alegria; animava-se e as faces enrubesciam-lhe, na antecipação de qual o novo jogo que ele tivesse descoberto para partilhar com ela, ou se apenas lhe dizia que a adorava, ou ainda que estava triste porque o dia lhe tinha corrido mal; tudo isso agradava a Júlia e fazia-a pensar que há muito tempo não se sentia tão próxima de alguém.
Quando não tinha mensagens de Zé impacientava-se; ficava nervosa, imaginando uma infinita variedade de cenários para a sua ausência. No primeiro dia contentava-se em pensar que não era nada, que não podia ser nada. No segundo, que ele já não gostava dela, no terceiro, que era casado, tinha mulher e filhos e não se tinha podido esquivar às obrigações familiares para lhe poder dedicar a atenção de que Júlia tanto necessitava. Então, Júlia sofria e sentia-se amargurada, traída, enganada.
Resistia a contactá-lo um, dois, três dias, até que, ó milagre, as suas preces eram atendidas e lá estava ele de novo, acabado de regressar de uma imprevista deslocação ao sul da país em trabalho, morto de saudades da sua gatinha – por esta altura era já assim que se tratavam, ele Águia, ela Gatinha – e mais do que nunca desfazendo-se em atenções, elogiando a inteligência dela, a sua perseverança, o facto de não ter duvidado das intenções da “tua Águia” e de se manter fiel ao sonho que já ambos acalentavam.
Havia algumas coisas nele que a intrigavam. Zé era por vezes de uma sensibilidade, de uma subtileza, que a desconcertava; por outro lado, não havia maneira de ele dar o primeiro passo, de se lançar para a frente, enfim, de fazer o primeiro “move”. Júlia ponderou longamente nesta última situação e chegou à única conclusão possível: o homem era tímido, demasiado tímido e respeitoso para tomar a iniciativa de lhe propor o primeiro encontro ao vivo. E esta dedução, aos olhos de Júlia, ainda tornou Zé mais apetecível, mais irrepreensível, mais tudo aquilo que sempre procurara num homem e nunca encontrara.
Então, Júlia resolveu-se; seria ela a avançar, seria ela a tomar a iniciativa, seria ela a fazer as vezes do “engatatão” e no fundo o papel que estava prestes a desempenhar não lhe desagradava de todo. Embora nunca o tivesse visto, Zé dissera-lhe que tinha 34 anos e, nas suas próprias palavras, afirmara-lhe que “era uma pessoa nem feia nem bonita, mas toda a gente lhe dizia que tinha uns olhos lindos”. Sim, seria Júlia a avançar. Não o conhecia mas sabia que não poderia ser feio. E mesmo que não fosse belo, que importância tinha isso se era por dentro uma criatura tão maravilhosa? Importância nenhuma.
Nessa noite, combinaram finalmente encontrar-se. Seria num local de sonho, a pastelaria Versalhes, na Avenida da República, com as suas luminescências douradas e a fantástica atmosfera art deco a rodeá-los, por volta das sete, quando os últimos raios do sol se extinguem e a lua faz a sua primeira aparição. Um sonho. Um sonho tornado realidade.
Júlia sentia que estava prestes a resolver a incógnita suprema da sua vida, das suas vidas. Ela levaria uma rosa vermelha que depositaria na mesa aonde se sentasse. Seria desse modo que Zé a reconheceria. Júlia insistira nesse ponto, de certo modo parecia-lhe apropriado, já que fora ela a tomar a iniciativa, e teclara-lhe, meio a sério, meio a brincar: “assim, se não gostares do que vires, podes sempre ir-te embora sem te fazeres notar.”
No dia aprazado, Júlia, envergando o seu mais bonito conjunto, sapatos de salto e meias pretas a condizer, munida da sua rosa vermelha, sentou-se na pastelaria Versalhes à espera de Zé. Estava nervosa. O coração batia-lhe apressado e sentia medo. Medo de que ele não gostasse dela, sobretudo. Porque ela, sentia-o, já lhe pertencia de corpo e alma. Amava já aquele ser que tanto carinho, tanto conforto, tanta paz, tanta plenitude trouxera à sua existência até então despojada de sentido.
De repente, uma voz rápida e brusca fê-la dar um pulo na cadeira: “Júlia?” Sentiu um calafrio percorrê-la dos pés à cabeça. Se tivesse um buraco onde se enfiar tê-lo-ia feito. Julgou tudo perdido, viu-se logo envolvida num terrível drama conjugal, pois o proprietário da voz não era ele, mas antes uma mulher, uma mulher de grandes olhos, de olhos azuis, penetrantes.
“Júlia?” questionou de novo a voz, desta vez já menos brusca. E Júlia não teve coragem de responder. Instintivamente, percebera tudo: era a mulher dele, ele era casado e ela tinha descoberto e tinha vindo pessoalmente colocar na devida linha a insolente rival.
“Júlia?”, inquiriu novamente a voz. E Júlia foi-se abaixo, foi-se literalmente abaixo, murmurando, tremulamente, fazendo-se muito pequenina na cadeira: “Sim, sou eu.” Do lado de lá da mesa a voz respondeu-lhe, agora num tom que era simultaneamente meigo e caloroso: “Olá, eu sou a Zé.”
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