1.12.06

A caminho de Lamego


Quantos anos tinha? Onze? Doze, talvez? Mais ou menos por aí. Bem, era muito jovem, e o meu bom amigo Pedro tinha-me convidado para ir passar uns dias a casa da avó dele em Lamego. Porque não? Dava-me relativamente bem com o Pedro (considerando os parâmetros de amizade dos pré-adolescentes), apesar de o Pedro ser, até para a idade, uma criança mimada, muito em prol de fazer birras. Como diria um bom amigo, “a imagem que eu tenho do Pedro é um tipo a refilar com qualquer coisa, com a ponta do nariz vermelha e olhos franzidos.” Susceptível, o rapaz. Saltava-lhe a tampa por qualquer ninharia. Lembro-me que as raparigas da turma chamavam-lhe Mr. Bean, por causa dos olhos de carneiro mal morto, talvez, ou o ar abananado, como dizia a professora de matemática do 6º ano: “Mexe-te, Pedro, s-seu b-b-banana!” Cruel, gente cruel. Mas, e depois? A irmã dele até era bem gira, arruivada, olhos claros, cabelo longo e encaracolado... apesar de que era já casada. Mas isso é outra história.
“Quanto tempo é até Lamego?” – perguntei inocentemente ao pai do Pedro antes de arrancarmos, depois do almoço. “Ó, não demora muito! É coisa para poucas horas. Antes da hora de jantar estamos lá.” – respondeu, sempre com aquela voz roufenha de quem acabou de beber dois ou três bagaços. Ás tantas, quem sabe... O pai do Pedro era um tipo alto (penso eu, do meu metro de altura, o homem era gigante), gordo e, sempre que o via, tinha o aspecto de quem acabara de acordar com uma enorme ressaca (característica que o Pedro partilhava). Ás tantas, quem sabe... Era homem religioso, muito católico, e fez questão de me oferecer um livro infantil sobre as histórias da Bíblia aquando da minha primeira comunhão. Mas isso realmente não interessa.
Depois do almoço, lá partimos à aventura, no Renault (de cujo modelo não me recordo), velho mas ali prás curvas! Devo confessar, estimado leitor, que, apesar de o nome desta curta história ser “A caminho de Lamego”, a verdade é que não tenho grande memória da viagem (e muito menos da minha estadia e regresso). Lembro-me que, após algumas horas de viagem (horas a mais do que as necessárias para chegar a Lamego), parámos para comer qualquer coisa. De resto, não me lembro de um único diálogo durante a enfadonha travessia (quiçá, o meu subconsciente não se encarregou de se livrar deste episódio). Lembro-me, isso sim, que, às tantas, o sono levou a melhor, e acabei por deitar a cabeça no colo da mãe do Pedro. Era uma mulher afável, se bem me lembro, mas sem pulso para o temperamento do seu anjinho. E uma cozinheira fantástica, sim; principalmente a cozinhar bacalhau com natas (o prato predilecto do menino, que este devorava avidamente, sempre com natas extra, para ganhar só uns quilinhos a mais). Recordo-me de que era supersticiosa: ai do Pedro se se sentasse em cima da mesa! Não só podia parti-la (nesse aspecto, concordo), como dava azar, ponto ao qual ela dava prioridade. De resto, apenas posso supor que ia no banco de trás comigo para fazer a vontadinha ao Pedro, que devia querer ir à frente. Voltasse eu às cenas que assisti entre ele e a mãe e provavelmente teria dito à pobre mulher: “Força, pá, arrefinfa-lhe uma lambada na tromba!”
Mas, voltemos ao que interessa: a viagem. Ainda hoje me pergunto, no alto da minha maturidade e conhecimento geográfico, como é possível sair de uma qualquer vila nos arredores de Lisboa e só chegar a Lamego muito depois da hora de jantar? Sei que foi há muito tempo, mas, recordando este episódio, e fazendo bem as contas, creio que não estaria a exagerar se dissesse que levámos umas oito horas a chegar à terra prometida. A verdade é que o pai do Pedro conduzia MUITO devagar (para usar um eufemismo), não fosse ser multado por chegar aos 50 Km/h.

Ah, memórias! Que seriamos nós sem elas? Fantasmas de nós mesmos, nem isso...
Depois do sétimo ano, o Pedro anunciou que ia viver de vez para Lamego. Claro, deu-me o número de telefone, já que nos conhecíamos desde os seis, sete anos e sería uma pena se perdêssemos o rasto um do outro. Tentei ligar-lhe, mas o número nunca funcionou e ele também nunca deu notícias.

Hoje, anos passados, ao falar com os meus amigos de longa data, ao redor da mesa, copo na mão, e, após um breve silêncio (ou até mesmo a meio de uma conversa), eis que um de nós sempre pergunta aos outros: “Olha lá! Será que o Pedro já chegou a Lamego?”