30.11.06
Querida Lu
O fio de ouro que me ofereceste não chegou a aquecer o peito. Fui miseravelmente roubado, e o pior é que nem me recordo de o ter sido. Só o sei porque também me falta o casaco e carteira. Provavelmente, terá sido uma mulher. Dalila, se não estou em erro.
Uma dessas gajas que de vez em quando visito (já sei que não gostas, mas, o que queres, estou só e sinto a solidão à flor da pele, tenho necessidade de calor, duma mulher) geralmente quando estou ébrio. E roubou-me, azar.
Na verdade, para não me lembrar de nada, nem sequer de termos feito o amor, é um daqueles casos em que o senhor Augusto do café diria que merecia ter sido roubado. (O senhor Augusto permanece igual a si próprio: é ainda e sempre do Benfica e palhas não palhas pergunta por ti, sempre guloso).
Do mal o menos, suponho que quando esta missiva te encontrar estarei vivo e de boa saúde, o que, como ela costumava dizer-me, ao deitarmo-nos chegadinhos, naquela vozinha cuja melodia nunca mais voltei a encontrar, “já não é nada mau, meu lobinho, meu lindo peitinho de tigre, és o mais bonito robino dos bosques que alguma vez vi, meu amor.”
Sinto falta. É quase como quando o filho da mãe do Vitelo me esmigalhou a perna; uma dor física, para lá do imaginável, um sofrimento, aquelas setenta e duas horas em que estive à espera do parafuso que teve de vir da América, e na espera as enfermeiras a acharem por bem – todos os dias, duas vezes por dia – mudar a roupa da cama e mexer com a minha perna estilhaçada. Foda-se, dói muito.
A dor até à morte. Ou até ao Inferno. O fim do Amor. E o sexo, o fim do sexo.
Íntimo, como só com ela podia ser. Minto, não digo a verdade, o sexo, como só pode ser, o sexo até ao Paraíso, o sexo que nos fazia renascer, o gosto dos seus lábios na minha boca ansiosa, a mão delicada com as unhas gentis arranhando os meus ombros suados, o sexo, o sexo que era amor e que não esqueço, malvado seja, malvado.
É assim que dói. E é também assim que morro, morro aos poucos, lentamente e em luta comigo mesmo.
Não gosto da mãe, nem tão pouco do imbecil da ovelha negra, embora se calhar devesse, pois ele é um Homem com H grande, mau grado as suas malfeitorias. Quase que nem gosto de ti. Desculpa, mas é a amargura do que sinto que me faz magoar-te deste modo.
Desculpa este estúpido desabafo, mas ela não me deixa, apesar de todos os truques fajutos que utilizo para a esconder de mim, ela não me deixa e ponto final. Já se passou tanto tempo e está sempre, sempre, Sempre, no pensamento.
É quando me levanto, ainda a meio a dormir, sinto no rosto o beijo travesso que ela me costumava oferecer, ainda eu estou embalado no seu regaço, ainda acaricio o seu ventre de fada; é ao acordar, que a sinto procurar as minhas mãos, beijando-as apressadamente, dizendo que tinha de ir mas que voltaria “lobinho”, e “sim minha rosa, amo-te.”, respondia eu e depois sobrava o leite com chocolate morno que ela preparara e que me fazia bem ao estômago e à disposição de vencer o dia; antes mesmo de sentir a vida e as suas exigências diárias batendo-nos à porta, Diabo!.. Merda! Puta que a pariu!
Sabes, é obra manita, sonho com a vida, com o futuro e desperto todos os dias a pensar no passado, a pensar nela. Essa cabra que roubou o meu coração, a minha alma, a minha vontade de falar contigo. Odeio-a. Detesto-a.
Do mau o menos, deixei o telefone, a máquina fotográfica e o relógio em casa, e isso não me gamaram. Horroroso, é a coisa dos documentos. Vai ser um dinheirão e um inferno de repartições a pedinchar segundas vias. (Sabes como são as coisas no nosso país). E um olho negro. Uma via Sacra.
Fora isso, estou bem, embora sinta falta de ti como não sinto falta de comer. Aliás, comer para quê? Não vais gostar mas faz dois dias que não como nada, nem um pedaço de pão, só bebo. Nem me apetece cozinhar, manita.
Hoje à tarde, adivinhando uma vontade adiada e com a segurança do pré no bolso, (sim, já recebi e estou bem de dinheiro) meti-me com a Ana. Recordas-te dela?
Era a feiosa do primeiro esquerdo. Mudou, fez-se mais mulher e está bonita. Não um naco, mas bonita. A propósito, já nem sei bem de quê, disse-lhe, e passo a citar-te: “Ó Ana, está muito bonita, se não fossemos vizinhos, cantava-lhe a canção do bandido.”
A questão, manita, é que nem a Ana me leva a sério. Acho que também ela não esqueceu a minha mulher, se é que ainda lhe posso chamar isso. Não passo dum reles poltrão, mana, e parece-me que todos os seres humanos com quem me cruzo o adivinham ao fim de duas palavras mal conversadas.
Ela faz-me falta. Isso é verdade. Até me roubam ou se calhar sou eu quem sugere aos filhos da puta o saque da noite, porque assim não desejo viver, e anseio pela morte que os cobardes dos cabrões que me roubam preferem não me proporcionar, os porcos.
Talvez seja só impressão mana, mas tenho para comigo a ideia de que não vou muito mais longe do que isto se ela não me quiser. E daí, talvez não. Como é aquele provérbio manhoso? O tempo, pois, o tempo.
Mudando de assunto, como te tem tratado a vida? O trabalho, continua a dar-te que fazer? E o teu homem, segue a cumprir na cama, ao menos? Um beijo ao meu sobrinho, já deve estar um magalo, suponho que te dê suficientes problemas, sem que tenhas ainda de escutar os desatinos do teu irmão,
Abraços e beijos para todos,
Lobo.
Porto, Campanhã, 16 de Abril de 1992.
Subscribe to:
Comment Feed (RSS)
|