19.6.06

Ética

Um dos meus melhores amigos é o Olívio. O Olívio é cigano, 47 anos, 12 dos quais passados à sombra (inocente das três vezes) bigode preto, espesso como palha de aço, olhos azuis claros à Hitler, a seis, sempre carregada, no bolso interior do casaco e o citrôen escuro, de alta cilindrada, mas sem pressas.

Conheci o Olívio no princípio da década de 90, no Cais. Numa noite de sexta-feira, no Texas. Tinha-me corrido bem o dia a transportar os pretos, da rede dos passes do Libânio, do Governo Civil para o Casal, do Casal para o Governo Civil. Era um bom arranjo o que tinha com o Libânio. Os pretos precisavam de passes e eu e o Libânio de dinheiro.

Ao fim do dia trazia a carteira recheada com duzentas mocas em guito e cinco gramolas em coca. O Texas, bem como o Amsterdam e o Europa antes disso, estava em grande. Só putas e putas e putas e uma mão ínfima de clientes. Perfeito.

Uma das miúdas em particular, uma morena de olhos verdes, com umas curvas de meter o membro dum morto em pé e um vestido preto mais curto do que a minha esperança de vida trazia-me de olhos em bico desde o princípio da noite. Foi no Texas que tudo começou a dar para o torto: coisas de casas de meninas.

Com um snif a mais que fora dar ao quarto de banho fiquei impulsivo e, em menos de nada, um grupo de cabo-verdianos entrou numa de me fazer a folha.

Palavra puxa encontrão, encontrão puxa putas a falar alto e já estou cá fora na rua – à espera dos cabrões. Também, tinha as costas quentes. Não era à toa que dava gorjas de milenas ao portas e aos seguras. Começam os gajos a sair, entra o Olívio.

Coincidências. Isto é, explico melhor: o Olívio vai a entrar e um dos gajos, na precipitação, quase que lhe atira os dentes ao passeio. Digamos que se enganou. È chato, mas acontece. O Olívio não gostou nada. Nadinha mesmo. O outro ainda tentou fazer-se à boca, que não era nada com ele e quê, mas não colou. Num minuto, o Olívio, com o meu desinteressado auxílio, despacha os três e desmarca os sapatos.

Nesse noite ainda bebemos um e outro copo, trocámos pontos de encontro, contactos, conhecimentos e até perspectivas de negócios em comum.

A minha amizade pelo Olívio nasceu nesse dia mas veio a consolidar-se muito mais tarde. Três anos mais tarde, numa noite de Julho de 1995. No Bar do Ferro, naquilo que era antigamente o Bairro das Galinheiras (sita a Camarate).

Uma tasca barra pesada. Nada de putedo no bar do Ferro. Só marginais, vadios, rufias, foragidos à Justiça, drogados, bandidos, espertalhões, músicos e tipos como eu. Enfim, um sítio lindo. Traficava-se, roubava-se discutia-se, polemizava-se, cantava-se, bebia-se, assassinava-se, batia-se, escutava-se e apostava-se com o Ferro sobre o vencedor da próxima partida de dados. (Paz à sua alma).

Ocasionalmente, os graúdos locais traziam as mulheres consigo. Nessa noite o Nuno, acompanhado do cunhado, o Maradona, vinha mostrar à sociedade a mulher loura; aquela que me trazia de beiço e a quem escrevia poemas inflamados quando me via embriagado a golpes de tequilla sunrise. Um traço fenomenal. Linda de morrer. Sensual e furtiva como só uma beleza da Musgueira alguma vez almejaria ser.

Para não variar, deu asneira. O Nuno ficou em pruridos com a forma como olhei para a mulher dele e armou-se um estrilho do caralho. De fininho, selecto, mais uma vez, o Olívio entrou em cena. A coisa resolveu-se em menos de cinco minutos e ele nem precisou de sacar a seis.

Ontem, fui jantar com o Olívio. Está mais velho, rugoso, mas não perdeu os olhos assassinos nem a total coolness de mãos. Continua a andar com a fusca e a ser um gajo de pouquíssimas palavras.

Somos diferentes, eu e o Olívio. Temos tão pouco em comum que a nossa amizade é quase um anacronismo. Mas é uma bela amizade. Ter-lhe levado tabaco a Pinheiro da Cruz decerto ajudou. Mas não foi o mais importante para ele. O Olívio gosta de mim e diz que nunca conheceu um gajo como eu.

Ao fim de duas horas o jantar estava comido e bebido, tudo fora dito e provavelmente só voltarei a vê-lo daqui a uns anos. Provavelmente, quando mais precisar da sua ajuda. Tem a ver com um conceito actualmente em desuso:

Ética.