27.5.06

Nada a perder



Vou contar-vos um pequeno segredo. Não suporto Proust. Abomino a Recherche e tenho menos do que paciência para os devaneios maneiristas de Marcel. É um pouco como a vaga de calor que se abate sobre o nosso país: também a não suporto.

Ainda agora estava pendurado na soleira da janela a fumar uma broca e a recordar o meu passado de criança. Sabem, é como a madalena e o chá do Proust. O cheiro do vento quente combinava-se na perfeição com o aroma do haxe quando, subitamente, me vi rapaz, na mesma soleira da mesma janela a fumar o mesmo xarro e no entanto a pensar que tinha toda a vida à minha frente e que me iria vir a ser um médico de sucesso, tal e qual o foi o meu avô, herói e modelo de sempre. Tinha-me treze anos e via o meu primo Jorge que me partilhava da ganza e dos sonhos, embora no caso dele sempre tivesse sido sonho das letras via jornalismo.

De repente acordei. Foi uma rajada mais forte ou teria sido um travo a mais a óleo. Fiz-me médico e o meu primo jornalista e mandei foder a medicina e ele o jornalismo. Acho que se fez feliz, com ou sem jornalismo, mas nada sei dele há uns dez anos. Quanto a mim, não me fiz nada. Fiz um tipo deitado numa cama a sorver dos lençois o cheiro a lavanda e a inocência da minha meninice.

Fui sintonizar o ar condicionado, preparar um martini, ligar o portátil, sentar-me à vossa frente e contar-vos tudo de segredos que já não comovem a ninguém. Em que é que falhei? Pouco interessa agora para o caso, o fim está próximo e não é a altura de me pôr com cogitações metafísicas. Nem sequer a mim me interessam e posso falar-vos delas na terceira pessoa, como se fossem o retrato imaginário de um qualquer tipo mais ou menos lunático. E não ateu ou sequer agnóstico.

No outro dia, um gajo qualquer cujo nome não me recorda teve a distinta lata de me ameaçar com tolices que para ele serão importantes mas que para mim não passam disso mesmo: tolices. Dizia o gajo que tinha, e passo a citar, "uma espada de dâmocles" suspensa sobre a minha cabeça. Com isso, julgava porventura que me intimidava. Daqui lhe digo que antes assim fosse. Era bom sinal. Sinal de que estava falar para alguém que ainda tivesse algo a perder.