29.4.07

Chegam as andorinhas



Em Maio chegam as andorinhas
Vêm de África e das Américas

Vêm em grupo ou sozinhas
Vêm libertar estas linhas

Vêm contar ao meu Amor
Vêm ligeiras ao seu encontro
Vêm com as asas de par em par


Vêm a chilrear que o Tempo

É o tempo de sonhar
É o tempo de abrir as mãos e criar.

Mesmo que o Tempo seja
Como este um momento lento

Do Tempo que nunca passa.


Em Maio, chegam as andorinhas.

Pensamento da noite


Com tantos espíritos que há nesta casa, porque razão ainda não tenho eu um copo de Laphroaig à frente?

27.4.07

Clara



Je ne sais pas pourquoi
J'ai toujours cette obsession
De toujours te tuer un peu
Avec des photos sans rigueur ou niveaux.

Peut-être il s’agite de tes yeux
Peut-être de la folie de tes cheveux
Ou peut-être ce le désire de tuer la méfiance
Que m’apporte ta jeune innocence.

Je suis pas certain, Clara chérie.
D’une chose seulement je suis sur:
Tu me rappelez un ciel longtemps
Et une fille que ne m’aime plus.


Photo: Picasso.

26.4.07

Pensamento da noite



Tudo tem um fim. Só a salsicha tem dois.


Provérbio alemão

Abril aos trinta e três







E pronto, lá se voltou a descer a Avenida, em ambiente de amena cavaqueira e salutar diversidade democrática. O camarada Jerónimo, com inegável sentido de humor e no seu estilo inconfundível, meio Rolão Preto, meio Steve Mcqueen, estende-me o braço numa ode ao ísmo futuro, sem acento na sílaba tónica; perante isto, um louco que por lá andava a fazer publicidade às United Colours of the Revolution aplude estasiado; e a vendedora de cravos, que tinha trinta e três anos em 1974 confidencia-me que não percebe nada, patavina mesmo, e que o que está a dar é piramizar. Piramizar, apenas. Valeu a pena? É claro que valeu a pena.

Mais piramizações
aqui.

24.4.07

Viva a Liberdade



É Primavera, o céu está encoberto como eu gosto, amanhã é 25 de Abril e o Primeiro de Maio está já ali ao virar do fim-de-semana. A pasta (grana, muamba, papel, bago, para os tradutores) ainda não entrou na conta, mas há milhares de mulheres bonitas para retratar e o grupo dos poetas camonianos, após um momentâneo desnorte, trabalha agora a todo o gás na dobragem dos decasssílabos. Em suma: viva a vida, viva a Liberdade.

Foto copyright de Promenade du Feu.

23.4.07

Boa tarde, Sónia


Passava já das seis quando Eugénio chegou, apressado e cansado, ao consultório do dentista. Apeou-se à porta, tocou à campainha e aguardou pacientemente que a recepcionista o viesse receber. A porta abriu-se com o estalido da fechadura, rangeu ligeiramente nas dobradiças e, do outro lado, Eugénio foi recebido com um sorriso afável.

“Boa tarde, Dr. Rocha!", cumprimentou Sónia educada, mas calorosamente. “Como está?”
“Boa tarde, Sónia! Estou bem, muito obrigado! E a menina?”, replicou Eugénio no mesmo tom afável, fitando os olhos vivos da interlocutora.”

Eugénio gostava de Sónia. Esta não era particularmente atraente, nem sequer muito bonita. Na verdade, nestes meses de consultas, nunca percebera bem o que o agradava nela, se os olhos azuis e expressivos, se a pele clara e o cabelo negro apanhado atrás, se o jeito extrovertido, ou se apenas o sorriso constrangido que se lhe desenhava nos lábios sempre que tinha de justificar o atraso da doutora. Ah!, não fosse ele casado e…

Fosse como fosse, hoje não estava interessado. As cervejas bebidas entre as bocas do Saramago aos brasileiros e o decote da Cristina começavam a pesar na cabeça, o sono ia entorpecendo os sentidos e o estômago ribombava, faminto. Como de costume, a doutora estava “um bocadinho atrasada.” Esboçando apenas um ténue sorriso em aquiescência, Eugénio afundou-se numa das cadeiras, abriu um livro e aguardou. A seu lado, um rapaz soluçava sem parar, com a mão esquerda agarrada à bochecha, enquanto a mãe tentava, em vão, tranqulizá-lo. Eugénio ia folheando ociosamente as folhas do livro, até que, uma hora mais tarde...
“Dr. Rocha?”, a voz de Sónia interrompeu as cogitações de Eugénio acerca da possibilidade de mudar de clínica dentária. “Já pode entrar. É a primeira porta à esquerda.”
Eugénio guardou lentamente o livro, levantou-se, pegou no casaco, arrastou-se a passo lento até ao consultório e bateu delicadamente à porta. “Entre!”, soou de dentro do consultório a voz suave da doutora. Eugénio empurrou a porta, deparando-se com a elegante dentista, cabelo escuro, encaracolado, olhos castanho esverdeados e uma voz adocicada, e com a sua assistente, que nada ficava a dever à primeira em termos de beleza. Eugénio só esperava que fosse esse o caso no que tocava à sua competência. No fundo, duas mulheres, a típica fantasia masculina. No entanto, ter quatro mãos a mexerem num dente infectado afigurava-se-lhe pouco agradável.
“Eugénio Rocha? Pode sentar-se, por favor.”
Eugénio sentou-se, reclinou-se e lançou um olhar fugaz ao tabuleiro que se encontrava ao lado da cadeira: agulhas, seringas, pinças, enfim, uma panóplia de objectos que mais faziam lembrar instrumentos de tortura. Felizmente, Eugénio, desde garoto, nunca temera dentistas.
“Ora bem, tenho aqui a ficha da doutora Sandra. Vamos começar por fazer um raio-X ao seu dente esquerdo", anunciou a doutora num tom profissional.
“Bem, doutora, na verdade, estou a tratar o dente direito”, apressou-se Eugénio a corrigi-la, esforçando-se por disfarçar o tom irónico. Começava a ter sérias dúvidas quanto à competência da fada dos dentes de serviço. Quando não se distingue a direita da esquerda…
“Ah, sim!”, exclamou. “È verdade. Vamos lá, então. Abra bem a boca.”
A dentista deu início ao já costumeiro e penoso processo de tratamento.
Eugénio sentiu a broca com aquele som de abelha ressacada desfazer lentamente a massa, e a pinça raspar os restos da mesma. Devagar, devagarinho, a diligente agulha da anestesia ia penetrando o dente, o líquido correndo como um rio pelos canais, varrendo implacavelmente quaisquer vestígios de dor enquanto, entre os suspiros de aborrecimento e os discretos gemidos de dor de Eugénio, a doutora ia perguntando, "Está tudo bem? Não está a doer, pois não?"

Novas agulhas se seguiram descendo cuidadosamente dente abaixo... Uma. Eugénio sentia o canal alargar. Duas. Surgia um pico de dor, ainda embrionário. Três, quatro… Ena, quebrei o meu recorde pessoal..., pensou Eugénio divertidamente, não sem uma ponta de amargura.
A doutora ia destramente trocando de instrumento e fazendo o seu trabalho com uma certa genica, satisfação até. O olhar de Eugénio ia perscrutando as paredes: fotos de crianças, presumivelmente os filhos da doutora, um diploma (autêntico, espere-se), propaganda sobre medicina dentária, até descansar no olhar compenetrado da dentista...
“Ai!”
“Magoei-o?”, perguntou a dentista em tom preocupado, detendo a agulha repentinamente.
“Não se preocupe. Continue”, replicou Eugénio no tom mais estóico que conseguiu desencantar naquele momento.
“E pronto! Já está! Pode levantar-se”, informou a dentista, satisfeita.
Óptimo!, pensou Eugénio ao levantar-se apressadamente da cadeira.
“Bem, agora marque consulta para daqui a três semanas, para ver se resolvemos de vez esse problema", recomendou a dentista. “Afinal, já andamos nisto há dois meses!"
“Sim, é verdade!”, concordou Eugénio. “Muito bem. Boa tarde, doutora.”
Extraordinariamente, não fora assim tão penoso e demorado como Eugénio temera. Sem mais delongas, acompanhado por este pensamento, dirigiu-se com nova cara para a recepção, a passo firme, onde Sónia o aguardava, escrevinhando aborrecidamente numas folhas com aspecto oficial, uma madeixa cobrindo-lhe a face esquerda e acariciando-lhe languidamente os lábios.
“Já estamos, Dr. Rocha?”, inquiriu, levantando surpreendida a cabeça, sorrindo distraidamente, ao notar a presença do paciente.
“Sim, sim. Mas, não se preocupe, daqui a três semanas venho visitá-la outra vez.”, disse Eugénio num tom calmo, exibindo um sorriso discreto. “Quanto lhe devo?”
Sónia corou ligeiramente, sorriu, e marcou a consulta para o dia nove de Maio.
“Então, até à próxima vez, Dr. Rocha!”, despediu-se Sónia docemente. "As suas melhoras!"
“Obrigado, Sónia, até dia nove.”

O Dr. Eugénio Rocha, 42 anos, casado, pai de dois filhos, doutorado em Filosofia Medieval, e excelente jogador de poker, nunca voltou a ver Sónia.
No dia seguinte, deu entrada no hospital, vítima de enfarte.
Segundo os médicos, parece que não andava a controlar o colesterol.

22.4.07

Pensamento do dia


"O FMI é muito mais teatro do que outra coisa qualquer. É um monólogo cadenciado, ritmado... Há quem diga que foi o primeiro rap português. Vem na tradição do teatro alemão, de Bertolt Brecht e Helene Weigel. Não fazia o FMI todas as noites. Só fazia quando estava naquele estado e quando o próprio público também estava naquele estado".

José Mário Branco


Foto: Picasso.

20.4.07

A morte do Rato



A que vos vou contar passou-se há uma data de anos, ainda o Bar do Ferro era no outro sítio e eu um jovem cheio de bago. Foi numa noite de sexta-feira e o Ferro estava a gozar em grande: só saíam vodkas, uísques, bacardis, enfim, uma miríade de zurrapas caríssimas, no modesto entendimento do meu querido Velho, e que por isso mesmo o deixavam num estado de êxtase embevecido à medida que servia e recolhia copos e copos a torto e a direito.

Já eu, estava ali apenas com dois propósitos: concluir um negócio e aproveitar o que mais se propiciasse. Na ocasião, o que mais se propiciava era toda feita de pernas e baton. Tinha nível, ainda hoje ao recordá-la não posso deixar de confidenciar que, como a Bibi, não conheci muitas.

Uma garota como já não existem: o cabelo ruivo, os olhos verdes, a pele leite aguado, os lábios vermelho sangue, esguia, ventre elegante, seios enrubescidos, pupilas de fogo. Uma hora antes reservara uma garrafa de uísque ao Ferro e ela desde então não me largara. Estava na dúvida se era porque simpatizara comigo ou por causa do meu bago (grana, para os tradutores), mas momentaneamente resolvi que fora por causa de ambos. Ela também me agradava.

Olhei para trás e contemplei o estreito corredor que era então o Bar do Ferro A juntar à música, só estava malta de fora, pessoal underground, embora bonito. A Sofia, o Rui, a Sónia e outros que observava pela primeira vez. Do Rato, o tipo que fora a razão principal para me encontrar pela terceira noite consecutiva no Bar do Ferro, nem sinal. O som insinuava-se nos copos e a Bibi parecia-me cada vez mais interessante. Contudo, achava que para a levar para a cama teria de possuir argumentos mais sólidos do que um charme fajuto e uma carteira recheada. Embora soubesse bem o que ela queria e o que ela gostava, o que ela queria e o que eu gosto também me excitavam. Ela excitava-me.

Cruzei os olhos com os do Ferro, à época ainda pouco mais do que um barman cortês e atencioso e ao mesmo tempo um rosto já familiar. Sorriu-me e serviu mais dois vodkas a uns tipos esquisitos que acabavam de entrar.

A Bibi ensaiou trocar impressões e eu fingi estar interessado. Uma merda qualquer sobre história d’arte. Ela tinha um sotaque giro, carregava nas vogais, enchendo a boquinha de insinuações suaves, sensuais e ao mesmo tempo acutilantes como punhais. Que bela pequena me saíra na rifa. Para tudo ser perfeito só me faltava fechar o negócio e ir dormir com ela. Comecei a sentir-me um pouco impaciente. Onde diabo poderia estar o Rato que não havia meio de aparecer?

Já conhecia o Rato de outros cabarés. Sabia que ele morava perto do Bar do Ferro. Até tinha a morada dele, um bem raro e valioso. Infalivelmente, o Rato haveria de entrar no Bar do Ferro, nem que fosse para comprar tabaco. O sacana andava fugido. Não que isso me admirasse por aí além, mas o Rato tinha imenso valor para mim e não me convinha nada que alguém ou algo lhe “acontecesse” antes de ele resolver um negócio que tinha pendente comigo.

A música mudara e a Bibi calara-se. Apreciei-a e senti nos seus olhos o meu desejo. Havia de a levar para a cama, desse lá por onde desse. O Rui passou por nós a caminho do WC, sorridente e com uma piada inteligente, embora um tudo ou nada jocosa. Virei costas e tinha-me posto a mirar a Sofia, só para chatear, quando um dos tipos que acabara de entrar, o mais alto, sorvendo o vodka de um trago se aproximou e me abordou em surdina:

– És tu que andas à procura do Rato?

Fiz de conta que não era nada comigo, peguei na Bibi pelo braço e a toque de cotovelo saímos cá para fora. A noite estava amena. Corria uma brisa suave e um cheiro adocicado. Mais adocicado, mais embriagante. O perfume dela. Aproximou-se, tomou-me e eu tomei-a e beijou-me na boca. As nossas pernas enlaçaram-se, e ouso dizer que nos sentimos muito bem. Afastámo-nos.

Reparei no Nuno, um músico desempregado que já tinha visto antes e que tocava bem guitarra portuguesa. Estava a um canto, a praticar acordes. Era um tipo simpático, tímido e talentoso, o que sempre me pareceu uma combinação invulgar. Dei a mão à Bibi e conduzi os nossos passos até ele.

Os tipos que eu não conhecia também tinham saído nas nossas costas. Andavam à procura do Rato.

Quando chegámos troquei dois ou três monossílabos de circunstância com o Nuno, só para me sentir um pouco mais seguro, enquanto espiava os gajos de revés e apertava na minha a mão da Bibi. Não sei porquê, a mão dela fez-se um mundo, apercebeu-se, riu contente e deu um beijinho na face do Nuno e ele agradeceu esboçando um trejeito cavalheiresco.

Os gajos aproximaram-se. O mais alto tocou-me ao de leve com um dedo nas costas.
O Nuno tinha agora os olhos pregados no vácuo e o Ferro estava demasiado longe, mesmo que lhe desse na veneta para impor o respeito; ao sair do Bar do Ferro tinha cavado a minha própria sepultura. Pensei na Bibi ao meu lado, aparentemente alheia. Pensei em aplicar no tipo uma paralítica, mas havia sempre o problema dos outros, e mais eles não andavam à minha procura mas sim à procura do Rato, reflecti.

O tipo voltou a tocar-me no ombro, desta vez pressionando-me a omoplata. Resolvi ganhar tempo e arriscando-me a levar com um upper-cut à má fé, devagar, virei-me.

Tinha agora uma visão clara dos gajos, o que não me agradou por aí além. O tipo que preenchia quase por completo o meu campo de visão era obtuso e, não sei porquê, o que ele se pôs a dizer fez-me lembrar um disco rachado que toca sem parar:

– És tu que andas à procura do Rato? És tu que andas à procura do Rato?

– Não, sou eu! – Atalhou a Bibi e eu gostei.

Recuara lentamente e quando me vi seguro fui abrindo a butterfly que trago no bolso de trás sempre que as situações assim o exigem. De súbito, o Nuno levantou-se, pigarreou, dedilhou a guitarra e meteu-se a improvisar o Fado 31: Ai, olarilolela, como este não há nenhum, o fado em Portugal é o fado...

O absurdo da situação relaxou-nos a todos. Os dedos da Bibi acariciaram os meus e os olhos do brutamontes enterneceram-se. O Ferro tinha saído para a Rua e cantava com o Nuno, à desgarrada, embora não desviasse os olhos de nós.

Estávamos num impasse e pensei em mandar tudo à merda, convidá-la a vir embora comigo, só que continuava a existir o problema do Rato, o motivo principal de me encontrar naquele antro de vadios a uma hora tão tardia.

Um outro dos tipos, entroncado e mais ou menos da minha altura, achou que eu tinha cara de otário e perguntou, em gozo, como quem afirma a sua posição na matilha:

– Tu és o Rato, pá?

Os outros palhaços desataram à gargalhada, mas o brutamontes já não sorria e quando eu ia para responder a meu lado a voz da Bibi, carregada nas vogais, firmou-se sem margens para dúvidas.

– Não, ele não é o Rato, ele também quer saber onde está o Rato, e se lhe tocas, mato-te.

A última palavra da Bibi fez-me sentir revigorado e então proferi, solenemente:

– Eu não sei onde está o Rato, ou se calhar até sei, mediante um preço. O que têm para negociar?..

Como a minha pequena tirada melodramática ficasse suspensa no ar resolvi retirar-me até ao balcão, quanto mais não fosse porque tinha sede. Pedi um café e o Velho serviu-mo com todos os matadores, pau de canela incluído. Tinha-se de admitir: o Ferro era feito de bronze. Monolítico como a vida.

Lá dentro o Rui voltara do WC e agarrava-se à Sofia como se a sua vida disso dependesse; entretanto, o Luís jogava às damas com o Paulo; ao fundo, a Gilda e a Teresa conversavam. O meu uísque demorava em sair; havia outra vez um tipo a tocar-me no ombro, fodido virei-me e... dei de caras com a Bibi

— Querido, fala com eles, eles têm para a troca.
— Queres?
— Sim, quero, quero que fales com eles.

Fui falar com eles. Perguntei se tinham. O mais alto tomou conta das operações e acenou afirmativamente. Trocámos. Dei-lhes a morada que eles desejavam e o gajo passou-me duas gramas e mais umas notas de banco para a mão. Bazaram.

Com o acordo tácito do Ferro puxei a Bibi e fomos dar um snif na casa de banho. Bebemos um último copo e levei-a para a cama.

Dois dias mais tarde o Ferro teve uma conversa de pé de orelha comigo, a primeira de muitas que ainda não vos contei: o Rato tinha sido assassinado; faca, à saída da porta da sua casa que ficava três ruas mais acima…

19.4.07

Sayonara Portugal



Eu já tinha dito a mim próprio que tinha sido a última vez. Realmente, quando um tipo está mais perto dos quarenta do que dos trinta, andar de um lado para o outro com a casa às costas já não é bem a mesma coisa do que quando se tem vinte anos. Um tipo tem tendência a querer assentar, constituir família e tal. Mas, não sei porquê, estou outra vez a começar a sentir o formigueiro das grandes ocasiões. E uma coisa vos digo, se esta merda não entrar muito em breve nos eixos como eu quero e mereço, então, em Setembro, sayonara Portugal.

17.4.07

Pensamento do dia



Por vezes aquilo que mais procuramos escapa-nos sem que saibamos explicar porquê, deixando-nos apenas uma amarga sensação de impotência. Como se todos os nossos esforços fossem tão válidos como se não fizéssemos absolutamente nada. Parece mau demais para ser verdade, sobretudo quando em simultâneo aquilo que menos desejamos encontrar se está sempre a colocar no caminho. Destino? Deus? Sorte? Azar?.. Ironia. A vida é feita de ironias cruéis. E há que ter sentido de humor, senão estamos fodidos, completamente fodidos.

16.4.07

Pensamento de segunda



"You smell that? Do you smell that? Napalm, son. Nothing else in the world smells like that. I love the smell of napalm in the morning."


Colonel Bill Kilgore, in Apocalypse Now.

12.4.07

A coleira


Tinha acabado de sair do emprego e descia a avenida na companhia de um colega quando de repente se sentiu nu. Sentiu-se despido em público. Instintivamente, levou a mão ao pescoço e então percebeu o porquê da angustiante sensação que o percorria: faltava-lhe a coleira. Onde diabo a poderia ter pousado, onde estaria a coleira que já há tantos e tantos anos o acompanhava onde quer que fosse? Queixou-se para o colega que lhe faltava a coleira e que não se lembrava onde a tinha deixado, mas tinha a certeza que não fora no emprego e o colega tentou reconfortá-lo, dizendo-lhe que se calhar a deixara em casa.

Que não, que não, respondeu, que saía de casa sempre com a coleira e embora durante o dia a tirasse por várias vezes, nomeadamente no canil onde ambos trabalhavam, ou nos transportes públicos, ou noutros sítios por onde passasse, chegava a casa sempre com ela. Sentia-se mal, um calafrio invadiu-o. Tinha perdido a coleira. Onde iria arranjar outra? Seria possível arranjar outra, pelo menos com a mesma qualidade da coleira que perdera? Seria possível que a coleira voltasse a aparecer? O colega tentava infrutiferamente animá-lo; ora com a promessa de irem partilhar juntos uma lata de Pedigree Pal ao Cais do Sodré enquanto apreciavam as cadelinhas da Primavera, ora com a afirmação de que coleiras há muitas e mesmo que esta não aparecesse podia sempre arranjar outra. Nem uma coisa nem a outra o convenceram.

Sim, era verdade que coleiras há muitas, que vêm em todas as cores, feitios e preços mas nenhuma era a sua coleira. Todas as outras eram coleiras anónimas, eram coleiras que não tinham nada que ver consigo. É que a sua coleira definia-o: não era o mesmo sem ela, estava tão habituado àquela coleira que só a ideia de que a pudesse ter perdido o aterrorizava. A coleira era parte integrante do seu ser, da sua personalidade, da sua forma de estar no mundo. Era como se tivesse perdido uma parte de si próprio; era a coleira que lhe conferia carisma; a coleira era como se fosse a sua chapa de matrícula; a coleira conferia-lhe a dignidade e a circunspecção que tanto apreciava. E sentiu-se ainda pior ao constatar a dimensão da sua irresponsabilidade, a qual fora tão longe ao ponto de fazer com que perdesse parte de si mesmo.

Por tudo isso, quando chegou a casa e verificou que o casaco que há tantos anos o acompanhava, fizesse chuva ou sol, para toda a parte onde os seus pés o levassem, ficara esquecido na mesinha da entrada, soltou um profundo suspiro de alívio.

11.4.07

Pensamento do dia


"It may be the cock that crows, but it is the hen that lays the eggs."


Margaret Thatcher

10.4.07

O toque dela...

Antigamente, eu ia para cama com a mesma camisa que tinha usado durante o dia e calçava meias pretas desirmanadas. Antigamente, bebia que nem um perdido, cantava que nem um tordo e acabava a noite a soletrar decassílabos de Camões na beirada de uma casa de Fado antes de adormecer borracho na soleira da porta do meu carro, que não me atrevia a conduzir todavia, embora o guiasse para onde ele tivesse de ir, porque era e sou uma pessoa responsável que gosta de trabalhar e Antigamente jamais me vi ao volante ébrio; coisa que hoje já não sucede.

Antigamente, todos os fins-de-semana, por volta das sete da manhã de Domingo, ia trabalhar, porque sempre tive génio de contrição e me dava gozo trabalhar aos Domingos, quando todos os outros dormiam e assim dormir e folgar quando todos os outros trabalhavam. Mas isso, esses tempos, eram os tempos do Antigamente. Hoje, tenho as meias passajadas e passadas a ferro numa gaveta – durmo vestido de pijama.

9.4.07

O Estranho



O estranho entrou silencioso no Bar do Ferro, demasiado silencioso, quer para o meu quer para o gosto do Ferro, por volta das duas da tarde, num dia de sol a um feriado, e foi sub-repticiamente encostar-se ao balcão, bem nas costas do Ferro, que se entretinha precisamente no momento em que o estranho entrou a arrefecer dois ovos cozidos na pia e fez de conta que não era nada com ele.

Eu, ao canto, apreciava o idílico cenário doméstico que se me oferecia à vista: os pombos lá fora arrulhando de volta dumas migalhas antigas; a mulher do tanoeiro mirando sem esperança o fim da rua de onde a viatura do patrão/amante geralmente surgia; e o próprio Ferro, descontraído, ocupado com os seus labores íntimos, ao mesmo tempo que eu fingia que lia o jornal, quando, enfim, desviei a atenção para o estranho.

O Ferro virou-se para ele no momento em que os meus olhos se cruzavam com os do estranho e aproveitou para o observar sem pressas. Nisto pareceu reparar que tinha os ovos nas mãos, fez descair a vista neles e disse em voz baixa, um pouco para si, um pouco para a plateia:

Tu arribas sempre à costa, arribas sempre, mais tarde ou mais cedo.

O estranho franziu os sobrolhos e não disse nada. Tinha os olhos fixos na bandeira do Brasil que o Ferro se esquecera de tirar do parapeito desde o último Mundial, em França, vestia bem e notava-se que fora recentemente à tosquia; os sapatos estavam engraxados e as calças traziam vinco.

Não era um cavalheiro, mas também não era um pato. Para mim não passava de um desconhecido, embora não me parecesse que fosse um pato; era um tipo estranho. O Ferro viu tudo isso por detrás dos seus grandes óculos graduados, enquanto eu me entretinha cofiando a barba rala e o estranho acendia um cigarro. Tabaco importado, o que indicava barcos, Gitannes, se não estou em erro.

Tudo parecia bem à superfície e contudo algo de perturbador se intrometera no doce princípio de tarde que resolvera proporcionar a mim próprio.

É verdade que no Bar do Ferro tudo o que é estranho não merece comentários, bem pelo contrário, e se calhar era por isso mesmo que nessa sexta-feira resolvera lá ir, trocar dois dedos de conversa e talvez almoçar com o velho, que não via há muito tempo, mas que permanecia sendo uma das poucas âncoras que ainda me prendiam ao mundo da vida real, do dinheiro, da saúde, da amizade e da necessidade em se preservar tudo isso, ao menos enquanto um tipo está vivo e o médico ainda não lhe diagnosticou cancro do pulmão, cirrose hepática ou SIDA, ou outras coisas que são muito piores mas que não se escrevem numa entrada de um blogue como este porque há pessoas que ainda não morreram e a quem talvez desagradasse esse tipo de confidência.

A verdade é que era sexta-feira e feriado e eu não tinha mais nada para fazer que me desse tanto ou tão pouco prazer como ler o jornal às duas da tarde no Bar do Ferro. Tinha acabado no dia anterior de pôr uma garota com dono, uma das boas, e sentia-me nostálgico sem me sentir culpado. Sentia-me bem e não iria deixar que um estranho qualquer se intrometesse nos planos que tinha delineado para o resto do dia. Afinal de contas, não só era feriado como também era sexta-feira e eu sentia-me deveras cansado.

Entretinha-me nestas considerações, embebido na contemplação das complicações a que fora sujeito um tal de Marquês de Saavedra, perscrutando o futuro nas rugas da nuca do Velho, apreciando ainda mais a mulher do tanoeiro, que apesar dos seus 30, 35 anos ainda estava uma pêssega muito apetecível, embora se estivesse marimbando para mim, que não para o Ferro, até que reparei que o estranho continuava aboletado ao balcão, sem dizer palavra, quando o Ferro, ruidosamente, lhe virou as costas e se voltou para um prato de legumes cozidos, pondo-se a descascar os ovos que havia arrefecido na pia.

O estranho parecia ausente. Durante uns vinte segundos não se ouviu nada a não ser o barulho da água que corria na pia, o murmúrio dos dedos ágeis do Ferro e as cascas dos ovos a caírem no saco verde do caixote de lixo.

Virei uma página do jornal, fazendo-a sacudir a atmosfera de propósito. A mulher do tanoeiro entrou para dentro do seu estabelecimento e não sei por que motivo senti um apetite tremendo.

Então o Ferro fechou calmamente a torneira e sem virar as costas falou:

Hoje não é dia de comer carne. Hoje não devemos comer carne. Ao menos uma vez por ano abster-me-ei de comer carne e celebrarei condignamente a morte de nosso Senhor.

Não percebi patavina, mas tendo em linha de conta que raramente percebo o Ferro e que isso em nada parece prejudicar o estreito relacionamento que com ele vou mantendo, fiz de conta que assobiava para o lado e tentei focar-me na leitura de uma reportagem acerca do Marques de Saavedra, o qual, afinal, parece que não será de todo em todo um marquês legítimo. O jornal prometia mais desenvolvimentos na semana seguinte.

Estava calor nessa sexta-feira e o pachorrento bairro lisboeta, escorado na preguiça primaveril da Alameda, parecia parado no tempo. Antes de entrar cruzara-me com os gandulos locais, que não me tinham visto e ainda bem tinha-os visto eu a eles enquanto jogavam à bola e tostavam os dorsos rebeldes em frente à Fonte Luminosa e pensara para com os meus botões que teria mais uma hora e meia, trinta, quarenta e cinco minutos de sossego no bar do Ferro, antes deles chegarem e ajavardarem o ambiente por completo.

Foi então que saquei duma esferográfica e me pus a rabiscar num guardanapo que agora me serve de cábula. Apetecia-me fumar um charro mas era cedo demais e por outro lado ainda não tinha almoçado.

O estranho continuava ao balcão, a mão direita no bolso das calças e a esquerda apoiada no cotovelo O Ferro lavava agora umas batatas. Imprimia um ritmo irritante à sua tarefa, um ritmo de quem não admite discussões nem está para brincadeiras. Da mulher do tanoeiro nem sombra.

Então, o estranho pigarreou, quase em câmara lenta, e disse, pausadamente, numa voz impessoal, metálica:

Se não queres comer carne, não comas ovos. Quero tomar um café, quando tiveres tempo. Comi uma açorda de pescada, com pão alentejano, alhinho, azeite, batatinha e coentrada. Foi a Maria que fez. Estava bom. Afinal, não bebo café. O café na tua casa não presta, sabe a água de lavar os tachos que ficaram por lavar do dia anterior.

O Ferro pousou docilmente os ovos na banca. Geria o silêncio assustador que a tirada do estranho provocara. A sua silhueta fazia lembrar um jogador nato; não acossado mas antes à espera da oportunidade de partir o outro aos pedacitos. Lembrei-me do taco que ele guardava por debaixo do balcão do bar. Senti umas gotículas de suor a formarem-se-me na testa.

Quando o Ferro se virou para o estranho já eu tinha colocado a história do Marquês de Saavedra, que afinal não é marquês de parte, preparado para a pior eventualidade, sabedor de que estava encurralado entre a casa de banho e eles os dois, com garrafas, cinzeiros e expositores de vidro entre os três.

Uma merda. Do mal, o menos, em último caso poderia sempre entrincheirar-me por detrás da minha mesa e rezar para que não entrasse mais ninguém antes de tudo estar terminado. Nem mesmo o Marquês de Saavedra eu queria ver a entrar nesse momento, apesar de não lhe dispensar qualquer simpatia.

De súbito, tudo se precipitou. Os olhos de ambos encontraram-se e pareceu-me observar-lhes algo de insólito, um súbito gesto de reconhecimento, uma ternura magoada, tudo misturado num ódio de alta intensidade que se desfez numa fracção de paz de segundo...

E então a mão do Ferro abriu-se e o braço estendeu-se.

O outro apertou-lha ao mesmo tempo que lhe passava uma nota de 50 novinha em folha para as unhas. Acenou um breve cumprimento ao Ferro, que lho retribuiu, quase solene, rodou os olhos pela casa de uma maneira que me pareceu muito triste, virou-nos as costas e foi-se embora.

6.4.07

Pensamento de sexta-feira santa

"Mais vale um pássaro na mão do que um caralho no cu."

José Dias, médico.

3.4.07

Pensamento da noite




To aim and hit, you need one eye only, and one good finger.

Moshe Dayan


1.4.07

Diz que é uma espécie de comentário

Boa noite, caros leitores deste nosso querido Portugal. Hoje decidi meter-me em políticas e deixar de lado a temática obscura e deprimente a que o Lado Negro tão bem vos tem habituado. Sei bem que não me devia meter em políticas, já que porreirinho, porreirinho, é o trabalho, coisa que até tenho em demasia. Porém, sou da opinião (Deus nos livre de as termos neste país) que o programa de hoje da RTP, "Diz que é uma espécie de magazine", merece uma crítica positiva.
Sendo este programa ainda uma das poucas coisas a que vale a pena assistir no monte de esterco que é a televisão portuguesa, hoje o público português foi brindado com um especial Fascismo (ou Fascismo sem tónica no "a"). Como todos sabemos, e embora este tema já esteja consolidado o suficiente, num pseudo-concurso organizado exactamente pela RTP, Salazar foi eleito o maior português de sempre. De sempre, pois não houve e, pelos vistos, nunca haverá português mais português do que este nosso carismático ex-Presidente do Conselho. Na verdade, acho que até o critério de eleição da Miss Marrocos tem mais credibilidade do que o que a RTP utilizou. O que raio é "maior de sempre"? Que é isso de "maior"? O gajo que escreve bem? O gajo que andou à chapada melhor do que os outros? O gajo que soube agarrar-se ao poleiro durante décadas? Para mim, maior é o gajo que é mais alto do que os outros. E agora? Desculpem lá, mas parece-me um critério com lógica.
Estou eu a comer o meu McTasty acompanhado da boa da batata frita e Coca-Cola (sim, a água suja do capitalismo, mas, que porra!, também sou filho de Deus, Nosso Senhor), quando vejo o quarteto fantástico da RTP a entrar em palco, vestido, nada mais nada menos, com o uniforme da Mocidade Portuguesa. A eles ninguém os trava do Mercedes! Numa sonora gargalhada, engasgo-me com a coca-cola e cago a camisa toda com maionese (felizmente, não tinha o uniforme vestido).
Bem, o ponto central de toda esta algaraviada é chamar a atenção para o simples facto de que estes quatro cavalheiros foram os únicos que se lembraram de ver se tinham os tomates no sítio para, de forma mui cáustica e singela, perguntarem "Mas anda tudo estúpido?". De modo ligeiro, mas também sempre sério e com o dedo na ferida, o programa de hoje lembrou o que é um regime fascista, quem era Salazar e ainda mandou umas bocas muito lindas à tentativa sorrateira e porca da extrema-direita (sim, porque não são fascistas) de ir ganhando uns pontos.
Enfim, gostei. Lá alguém se pronunciou decentemente e sem ligar a falsos respeitos sobre toda esta salgalhada.
Agora, pensar por nós é que não podem...

A torre fascista e o Graxa de marfim


Na semana que hoje termina, aqui o amigo Lobo, para além dos seus inúmeros afazeres profissionais (treta, claro, o Lobo não trabalha, caça) também foi a dois colóquios, ou debates, ainda não percebi muito bem a diferença.

É, o Lobo, de vez em quando, gosta de ir a colóquios, debates e pseudo-merdas-intelectuais do género. No primeiro dos debates/colóquios, como estava de ressaca, passei duas horas a tentar perceber do que se tratava e… Não consegui. Mas dou-vos as linhas gerais: foi numa faculdade com um certo prestígio e o orador principal era um meco, perdão, um excelentíssimo professor doutor universitário oriundo de uma não menos prestigiada universidade inglesa.

Pois bem, não percebi de que se tratava. Falou-se de várias coisas. Reti: “Estou aqui para ouvir e não falar” a sério, meu, então porque é que és o orador “estrela” desta porra?; “Multiculturalismo, sim, Portugal tem um problema de má consciência com os países africanos”, pois, sobretudo com o filha da puta do José Eduardo dos Santos que deixa o seu povo morrer de cólera ou será com o Mugabe?; e ainda, “O ensino das línguas angolanas (alguém sabe o que são línguas angolanas?) devia ser incrementado nesta faculdade.” Ai sim? Porquê?..


Confesso que, depois desta, me deu uma enorme vontade de mandar orador e remanescentes coloquiantes à merda, mas, lá está, o Lobo não é parvo de todo e não o fiz. Na verdade, só o fiz quando o cabrão (perdão, excelentíssimo senhor doutor professor universitário de uma prestigiadíssima universidade inglesa se saiu com a seguinte pérola: “Já repararam como os americanos são “narrow-minded" e auto-centrados? Vejam bem que eles não gostam de viajar e é raríssimo visitarem outros países!” Pois. Este badalhoco (perdão, senhor professor doutor universitário) deve conhecer muitos americanos, seguramente, deve ser tu cá tu lá com o Hemingway, com o Paul Auster, com os The Doors (que até sabiam o que se escondia no Lado Negro da Lua sem nunca lá terem ido). Isto passou-me num flash pelo crânio, mas, antes de o dizer, já tinha saído (discretamente, o Lobo não é parvo, repito) porta fora e, depois de uma digressão higiénica pelos bares mais próximos, passei ao segundo colóquio.

O segundo colóquio foi diferente. A primeira diferença é que sensivelmente dez minutos antes de se iniciar o Lobo já estava bêbado, o que, vendo bem, até facilitou a compreensão do que estava em discussão: o debate era sobre racismo.

E bem, para além da repetição exaustiva dos clichés do costume sobre a matéria, é verdade, este debate apresentava uma grande vantagem sobre o primeiro: tinha gajas boas a dar com um pau (porque será que as gajas boas gostam assim tanto de temas pseudo-fracturantes-de-esquerda-progresssista-de-merda?).

Seja como for, para além de gajas boas no debate também se encontrava o meu grande amigo Helel Ben Shahar (que por sorte não estava tão bêbado como eu), e que me chamou a atenção para a jóia discursiva com que um dos oradores (representante do SOS Racismo, sim representante do SOS RACISMO) acabava de brindar a extasiada audiência; discutia-se não sei bem o quê, e diz o tal gajo: “O racismo, neste sentido, não é bom.” Pois. Nem nesse nem noutro, digo eu, mas enfim, se calhar o gajo do SOS Racismo pensa de maneira diferente.

No mesmo dia, fui trabalhar (treta, ver primeiro parágrafo) na companhia do também meu bom amigo Picasso. Como é do vosso conhecimento, o Picas gosta de fotografia. Íamos então a chegar ao tasco onde ambos temos a desdita de fingir que bulimos quando ele me diz: Vais ver Lobo, ali à esquina, está um Graxa que tem uma banquinha típica como tu não encontras em toda a Lisboa. E ainda não a fotografaste, meu grande safadote, reinei eu. O Picas respondeu que conhecia graxas à légua e que estava fartinho de saber que estes não gostam de ser fotografados.

Quando chegámos à dita esquina o meu amigo teve aquele sorriso especial que só lhe vejo quando se sente muito satisfeito: Lá estava a banquinha, solitária, sem o Graxa por perto! É agora, exclamou o Picas, vou fotografar o atelier do Graxa, até que enfim! Eu deixei-me estar a apreciá-lo, enquanto se aproximava (com um prazer todo voluptuoso) da referida banquinha, onde dezenas de boiões de graxa coloridos se ordenavam meticulosamente, compondo, tenho de o admitir, um belo quadro, um motivo citadino verdadeiramente em vias de extinção.

Está o Picas a compor o retrato, prestes a carregar no botão da máquina quando um berro o fez estremecer e lhe estragou a foto. Era o Graxa, que, saído sabe-se lá donde, corria esbracejando em sua direcção, gritando-lhe: É lá, que é lá isso de fotografar a minha banca!?! Arreda, arreda, que ainda te vou à boca!

E o Picas arredou – sem a foto.

E eu escrevi este texto. Tendo presente nele as únicas palavras sensatas que ouvira o dia inteiro, ainda a propósito do racismo, ou seria do fascismo, ou seria do Graxa, acho que era mesmo acerca do que nós somos: “Antes de chamarem fascista a alguém, antes de o desprezarem por o considerarem racista, suíno, o que quer que seja, olhem para dentro de vós, para o pequeno fascista que está em vós, porque, não se esqueçam, isto do fascismo não tem patente, é uma característica presente em todos”.

Obrigado, José Mário, que puta de inquietação.

Pensamento do dia


"Those who insulted the prophet should know that you cannot obscure the sun with a handful of dust. The dust will just get back and blind your own eyes."

Ahmadinejad, Presidente do Irão, há uns mesitos atrás.